A exploração da demanda reprimida como vantagem mercadológica

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Introdução

São cerca de 700 milhões de Reais que entram a cada ano no município de Porto Alegre através do Fundo Municipal de Saúde, gerenciado pelo prefeito e secretário municipal, sob fiscalização do Conselho Municipal de Saúde. Portanto uma parte importante na engrenagem da economia da capital dos gaúchos depende desta fonte de recursos.

Nesta sentença curta estão articulados explicita e implicitamente conceitos e relações sociais que não estamos acostumados a pensar em conjunto. Economia, ciência e política se articulam para criar instituições. De um lado é preciso decifrar a interação destes diversos fatores e de outro entender a relação desta interação com a permanente realidade de crise do sistema de saúde pública brasileiro.

Veremos que as fronteiras formais são ultrapassadas por uns atores, enquanto outros permanecem imóveis. E cada postura responde a uma dada visão de mundo e explica a manutenção da consecução de interesses privados no ceio do sistema de saúde pública.

A diversidade entre conceitos econômicos e culturais

Há várias maneiras de se pensar o setor da saúde na economia em um de mercado de bens simbólicos unificado na forma monetária. Para efeito de entendimento, consideremos duas:

• Saúde Pública, como gerenciamento das condições do perfil epidemiológico da população. Ou seja, referente à esfera do social e da política, de um lado e dos saberes e das técnicas científicas, de outro;

• Saúde Pública como parte de um mercado monetário dentro da área de serviços, configurando um espaço de confusão entre o interesse público e privado.

No primeiro caso, temos a saúde como componente de um mercado mais amplo, relacionado ao bem comum e aos direitos da cidadania. Um espaço onde a ciência e o saber se articulam na arena democrática. Um bem de civilização, por assim dizer. No segundo, temos o mercado econômico puro. Um tipo peculiar de mercado, o monetário, com uma lei própria, não escrita, mas de estrema eficácia.

As implicações e articulações subentendidas, nestes dois cortes conceituais, são inúmeras:

•Contratos de prestação de serviços de empresas terceirizadas e cooperativas de trabalho (legais e de fachada);
•Credenciamento de diferentes tipos de instituições prestadoras de serviço para o sistema como: hospitais privados, hospitais filantrópicos, sociedades de economia mista, hospitais públicos, hospitais universitários (públicos e privados), fundações de direito privado, fundações públicas, etc;
•Contratos e licitações com fornecedores de equipamentos e insumos;
•Investimento de infra-estrutura em função do crescimento demográfico e perfil epidemiológico flutuante;
•Regulação de fluxos de demanda em função de diagnósticos e tratamentos de pequena, média e alta complexidade, todos implicando em fatias do valor do mercado acima citado;
•Financiamento de candidatos e partidos políticos (legalmente e por caixa dois);
•Relações de clientelismo e coronelismo político travestidos de gestão pública;
•Tráfico de influências no tratamento a demanda reprimida;
•Mercado de trabalho heterogêneo que consome uma parcela significativa dos investimentos globais citados no primeiro parágrafo deste texto.

Cada uma destas implicações mereceria uma análise detalhada. Neste texto nos deteremos sobre os aspectos que dizem respeito diretamente a questão da gestão da tão noticiada demanda reprimida de procedimentos de saúde fornecidos pelo SUS em Porto Alegre. Todos os itens descritos acima têm alguma parcela de relação entre si.

Nos concentraremos nos aspectos mais relevantes para fundamentação da hipótese defendida ao longo deste texto: A demanda reprimida é usada para direcionar entre os atores econômicos da saúde, as fatias do mercado de 700 milhões de reais ao ano representado pelo SUS em Porto Alegre.

Em artigos anteriores já propus a reflexão sobre as razões que levam a concentração de grande parte dos recursos investidos na saúde no Rio Grande do Sul no pólo de saúde de Porto Alegre. Fato que gera a famosa “ambulancioterapia”.

O Mercado de trabalho em saúde e suas peculiaridades

Neste tópico do mercado de trabalho, cabe lembrar todas as complicações de se remunerar o trabalho em um setor específico da economia com uso diversificado de especialidades de mão de obra e capacitação técnica. Acrescentamos o fato que os salários da maioria dos trabalhadores da área da saúde ser muito baixo. Sendo que a diferença entre o maior e o mínimo salário paga na área seja, por sua vez, muito alta.

Na saúde temos uma infinidade de carreiras, modos de contratação e papeis diferenciados conforme os níveis de complexidade de cada tipo de atuação profissional. Estes papéis, em relação ao sistema como um todo, surgirão diferentes se levarmos em conta que o sistema tem setores sub-financiados e outros com financiamento superavitário.

Uma categoria pode, por exemplo, ter relevância na estratégia da exploração mercadológica da prestação de serviços por deterem o privilégio de prescrever procedimentos e gerar gastos.

Assim, um médico no Brasil terá sucesso na carreira na medida em que for capaz de criar em torno de si uma indústria do cuidado por onde passem os fluxos de financiamento como a cirurgia plástica, cirurgia cardiovascular, área de transplantes, atendimento de traumatologia, etc.

Já nos EUA, um médico pode ser bem sucedido na carreira na medida em que vincular seu desempenho ao interesse da indústria farmacêutica, a produção de novas tecnologias ou, se simplesmente, for capaz de glosar procedimentos, gerando lucros para as seguradoras de saúde.

Não é a toa que no Brasil os seguros de saúde são chamados de “planos” de saúde. Esta nomenclatura aponta para a necessidade de integralidade na atenção à saúde. Já nos EUA, para seguirmos com a comparação, os planos de saúde privado são chamados de “seguros” de saúde.

Lá, portanto, a ênfase é na contratualidade individual e com preços diferenciados para cada tipo de cobertura. Na prática, somente os muito ricos podem comprar atendimento integral. Evidentemente, na prática, vemos que no Brasil os planos privados não são integrais e oferecem cobertura para conveniência de consultório e hotelaria, deixando para o SUS o custo com os procedimentos de alta complexidade que são os mais onerosos.

 

 

O capítulo da seguridade social e o estado democrático de direito

Considerando o tema pela abordagem preconizada na constituição brasileira, temos na saúde pública um setor da economia que é singular dentro da regulação da economia de mercado em geral. Ou seja, o sistema de saúde também é regido pelas leis de mercado, mas as extrapola em grande medida com conseqüências culturais e políticas significativas.

O perfil epidemiológico de uma população demanda dos poderes constituídos uma série de ações de cuidado, prevenção e tratamento. Já, quando tratamos de mercadorias e serviços, o acesso dos consumidores se dá por seu padrão aquisitivo e respectiva classe social. Quem pode tem. Quem não pode, não tem e se vê excluído do acesso ao consumo.

O sistema de economia de mercado monetário é um sistema de hierarquização e estratificação social que fundamenta e configura identidades individuais e coletivas. Na prática, fornece a informação de quem é quem no jogo de interesses sociais, a partir do poder econômico.

No entanto, legal e culturalmente não é assim que se dá com o mercado de bens e serviços na área da saúde. Um recurso estabelecido pela pesquisa e produzido pela indústria farmacêutica ou de procedimentos médicos passa a ser automaticamente um direito de todos os cidadãos. Este é o efeito prático mais evidente, ainda que não considerado, de um preceito constitucional que valoriza a vida humana e a igualdade de todos perante a lei. Uma sociedade que segmentasse o direito aos cuidados com a vida de forma legal não seria igualitária ainda que garantisse igualdade de renda entre todos os estratos sociais. A ficção, realidade ou utopia que sustenta a legitimidade democrática depende disso.

Assim, temos no Brasil um preceito constitucional, no capítulo da seguridade social, que é coerente com as premissas do estado democrático de direito. Curiosamente percebemos um paradoxo ao seguirmos comparando sistemas e custos de saúde entre EUA e Brasil.

 Lá, embora a saúde seja considerada um bem individual e de responsabilidade de cada consumidor de acordo com seu perfil de renda, o gasto público em saúde é da ordem dos 800 bilhões de dólares ao ano. No Brasil, a saúde é um direito de todos e uma obrigação do Estado, ou seja, é um direito universal. Mas os gastos públicos, em ascensão, ainda não chagam aos 50 bilhões de dólares ao ano. De modo que, como admitiu recentemente o Presidente Lula, em pronunciamento público, o Brasil ainda investe muito pouco em saúde como política pública.

 

 O pensamento fragmentado e suas conseqüências

 Porém a questão central é que temos uma série de linhas de corte bastante modernas nas formas conceituais de se abordar o tema da saúde. Moderno no sentido que Bruno Latour empresta ao tema. De certa forma fica “cada um no seu quadrado” e aspectos extremamente imbricados e articulados são tratados como distintos. Olharmos mais detalhadamente este processo histórico e cultural nos permite entender como os gastos são feitos. A partir daí poderemos planejar a forma de realizarmos mais e melhores investimentos em saúde.

Estas linhas demarcatórias são socialmente nítidas e eficazes em sua função de dificultar o pensamento do todo. Não obstante, a tradução entre as diversas formas conceituais e práticas em jogo não evita que os híbridos surjam e desempenhem seu papel no contexto geral. Uma espécie de monstro do Dr. Frankenstein, que embora construído a partir de partes de diferentes corpos, pensa e age. Ou seja, há algo de monstruoso no funcionamento dos sistemas de saúde. O que explica, em parte, sua retratação como sendo de permanente estado de crise.

Há então, retomando, linhas demarcadoras que separam e purificam estes aspectos complementares do sistema de saúde:

•Linha da demarcação para a saúde como setor da economia monetária;
•Linha da demarcação para a saúde como espaço político e de aplicação do saber técnico cientifico.

De um lado, a economia monetária e suas leis não escritas. De outro, a política e as ciências da saúde. No primeiro, temos um lugar de mobilização e fiscalização da sociedade (através de suas instâncias oficiais de representação: corporações de trabalhadores, de prestadores de serviço, associações comunitárias e outras ONGs). No segundo, as operações de mercado e as negociatas do submundo das relações entre o público e o privado.

De modo que ao conselheiro de saúde caberá olhar o aspecto político e de gestão dos planos de saúde de cada governo da hora. O conselheiro se concentrará em buscar, para a demanda reprimida e crescente, a melhor terapêutica disponível para o cuidado com a saúde dos indivíduos e das populações. Dificilmente ele conseguirá ver, ao primeiro olhar, os componentes puramente mercadológicos do jogo.

Para ele, a princípio haverá apenas um grande fornecedor último: o Estado. Como gestor do sistema o Estado deverá ser protegido dos ataques privativistas. Mas ao fim e ao cabo ele deve gerenciar e ser o responsável final por fazer a complexa engrenagem mover-se. A componente autodeterminante, desencadeada pelas relações entre as partes formalmente separadas do sistema, não será considerada na instância do controle social. Se for, não será significativa a ponto de determinar seus rumos e prioridades.

A racionalidade política é desta forma separada da racionalidade econômica com o objetivo “ingênuo” de proteger a primeira da segunda. A consideração econômico-monetária é deixada na mão dos interesses privados, os quais devem ser vigiados e reprimidos em favor da face pública do sistema de saúde.

O contraditório é que ao serem excluídos da equação da política os agentes econômicos encontram um nicho privilegiado onde podem agir livremente: A regulação do fluxo da demanda.

 Regulação dos fluxos de demanda

A regulação dos fluxos das demandas é dinâmica. A pressão é efetuada sobre o cotidiano dos serviços de saúde.

Esta, por ser imediata, não é gerida na esfera das plataformas macro-políticas. O atendimento da demanda é financiado com recursos arrecadados no passado imediato. O gasto é feito no cotidiano de eterna crise. E a crise é retratada e falada na mídia impressa e eletrônica até a náusea. Isto gera o efeito, talvez não pensado, de se deixar a sociedade num estado de ansiedade constante em relação aos sistemas de saúde. Esta é uma razão que pode explicar a dificuldade de se efetivar o controle social e qualificar o planejamento voltado para o bem comum.

A fiscalização destes gastos é feita por órgãos técnicos do Ministério da Saúde, como o DENASUS, pelos Tribunais de Contas e outros, com mais ou menos permeabilidade a pressões políticas. No entanto todos herméticos e técnicos o suficiente para não ecoarem na arena do senso comum em que o controle social é realizado.

Enquanto isso, os agentes econômicos vêem um mercado de consumo crescente (com uma fonte de recursos confiável: o tesouro nacional) favorecido pela eterna demanda reprimida. No contexto da fila de espera o investimento é mais seguro e tem sempre um retorno muito provável.

Pois, na medida em que novas terapêuticas são produzidas para um mercado usuário sempre crescente (e flutuante conforme as curvas do recenseamento epidemiológico) a estratégia de concorrência entre fornecedores de serviço extrapola as simples leis de mercado para sofrer impactos vindos de outros setores da economia simbólica. Os campos em jogo são outros e a conversão de capitais tem mais volatilidade quando a pressão para o consumo tem evidentes componentes midiático, políticos, sociais e culturais.

E lá, na instância do controle social, a luta segue em torno de plataformas voltadas para o médio e longo prazo. As conferências produzem elencos de medidas a serem tomadas de modo a zerar a demanda reprimida, a resolver todos os impasses e estabelecer o paraíso na terra.

No entanto, não há iniciativas no sentido de contabilizar o resultado prático dos gastos já feitos. Sabemos que a expectativa de vida aumenta que a mortalidade infantil se reduz a cada década, que temos um dos melhores programas de prevenção e tratamento de HIV/ AIDS do mundo.

Mas, não sabemos como, em Porto Alegre, são gastos os recursos destinados à saúde. Sabemos os valores totalizados. Porém quais são os obscuros caminhos de prospecção, seleção e tratamento da demanda de cirurgias de traumatologia, um mercado de cerca de 40 milhões de reais ao ano na capital do Estado? Como chegamos a sustentar as folhas de pagamento entre um grupo tão heterogêneo de carreiras, de jornadas de trabalho de vínculos duplos ou duplificados artificialmente?

 

Considerações finais

Estas são as questões latentes no relato cotidiano de casos de atrazos de salários, fechamento de hospitais e crise de demanda reprimida que a imprensa noticia a cada semana e ao longo de todo o ano durante as últimas décadas. Há cada vez mais coisas a serem consideradas nas tomadas de decisão nesta área. Seja do ponto de vista da gestão de nosso interesse individual e familiar, neste imenso manancial de procedimentos de promoção e de cuidados com a saúde, seja do ponto de vista das políticas públicas.

A implantação do cartão SUS é retardada devido a seu potencial de evidenciar as relações econômicas que florescem nos nichos existentes entre os domínios sociais, políticos e culturais que pensamos de forma separada.

A cada dia que passa questionamos e nos inquietamos com a indicação de uma marca específica de remédio, de uma farmácia em especial ou daquele hospital que é o único em que nossa obstetra aceita realizar o parto ou cesariana de nossas esposas.

Como o somatório destes pequenos gestos individuais, inseridos nas relações terapêuticas, podem definir as fatias de mercado monetário que os agentes econômicos disputam nos Fundos Municipais e nas salas dos secretários de saúde? A resposta exige mais informação classificada que embasa a formulação de respostas cada vez mais complexas.

 

Referências

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 2 ed. São Paulo : Perspectiva, 1987.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.