O fetiche da roda: seguindo com as reflexões

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 Participei recentemente junto com a consultora da PNH, Sheylla Rodrigues, as enfermeiras Jacqueline Abrantes e Lourdes Freitas, a promotora Elaine, o gestor Wellis Matias, os demais técnicos do Panatis, a professora da UFRN e coordenadora do pro-saúde Hilarina e o jornalista Bruno Aragão, da inauguração do Espaço de Convivência da Unidade do Panatis e  retorno das rodas de conversa, estudos e reflexões das práticas. Tivemos uma manhã prazerosa, acolhidas pela equipe com canções maravilhosas que embalaram a roda. O grupo trouxe questões pertinentes à situação de crise em que se encontra os serviços, à falta de material de higiene e limpeza, de copos descartáveis, de gaze mais apropriada para se fazer os curativos, à falta de médicos e outras tantas mais… As falas  trouxeram de modo claro uma análise critica e real sobre a roda, carregada de sentimentos e de reflexões.  Perguntava-se: qual o significado da roda para cada um de nós, no cotidiano do nosso trabalho? Para que serve? A que se destina? Por que a roda? Que lugar ocupa o método da roda nas relações e processos de trabalho? Ao mesmo tempo em que traziam esses questionamentos, reafirmavam de modo esplendoroso, sensível e teórico, o porquê da roda e o seu significado nas relações e processos de trabalho, repercutindo na produção de saúde e de vida dos profissionais/usuários.


Erasmo, no post:  https://redehumanizasus.net/node/10193 chama atenção para a roda, como um dos métodos de se trabalhar as relações e os processos de trabalho, ancorados nos princípios e diretrizes da PNH, sinalizando para o risco de se banalizar a roda de conversa.  Esclarece que não se trata de qualquer roda, nem de qualquer encontro, onde se joga conversa fora… Não, não é isso. A roda tem um sentido, um propósito, visa produzir mudanças e estratégias de intervenções, transformar palavras e idéias em atos. Atos de intervenções que produzam mudanças na vida das pessoas.  Fiquei me perguntando: o que o levou a   atribuir a roda uma vivencia de objeto fetiche num movimento equivocado dela mesma?  Isso me fez pensar e a fazer algumas reflexões.  Objeto  fetiche, segundo suas palavras, e como tal, algo fictício, mágico, como se tivesse vida própria, quase que idealizado. Carregados de afetos. Neste contexto, podemos pensar nesta roda como um momento mágico, idealizado, resposta para todas as dificuldades e limitações do humano, a roda pode tudo! Ela é onipresente e onipotente! Tudo é possível nesta roda, naquele momento em que ela está acontecendo. Ela tem o poder de resolver todos os problemas.  Será? Que problemas ela se propõe a resolver? Mas, por que a roda? O que é a roda?  Quem faz a roda acontecer? Será como num passe de mágica, que ela gira sozinha? Será ela um objeto fetiche e, portanto, imaginário? Resposta para todas as questões? Neste sentido, não é à toa que ele traz um outro significado para a roda, para compreender os ruídos provocados, decorrentes  da frustração que causa em alguns atores  implicados. Como ele pontua muito bem na fala de um participante: " falamos o que pensamos e isso é muito bom. Mas, o que está mudando? Falamos, falamos e nada muda…" Mas, o que queremos mudar? O que acontece que as palavras surgem apenas como recurso catártico e não são capazes de transformar a situação-problema?  O que estamos fazendo e como queremos agir para mudar? Ao adquirir por analogia, esse significante de objeto fetiche, podemos dizer que estamos transitando no contexto pulsional, narcísico, marcado pela onipotência, no qual tudo é possível e o coletivo pode tudo. Não é mais o individuo, mas o grupo que traz as aspirações, afetos, carências e dificuldades, que marcam um descompasso no real dos seus ideais narcísicos, como uma maneira de reparar as feridas narcísicas impostas pela vida, na esperança de aliviar a angústia e o desespero diante dessas marcas que fazem parte da sua história de vida. É o outro, o sistema, a instituição, a roda que vai dar conta do meu desamparo diante de necessidades tão gritantes e desesperadoras que se materializam na falta de material, de estrutura, de pessoal e de tantas outras coisas… Lembro-me da fala de um profissional dentista do Panatis, que toca maravilhosamente bem violão, e ao se referir sobre a roda, ele ressalta além das potencialidades que a grupalidade provoca, que o coletivo é  incorruptível , ele estaria menos vulnerável a ações corruptas. O que as pessoas falam sobre a roda? Espaço de troca, de aprendizagem, de conhecimento, de descobertas, de crescimento, de esperanças, de acolhimento, de aconchego…  Ninguém se refere à roda enquanto espaço de tensão, de conflitos e de embates, ou seja, de desprazer…E neste sentido, talvez estejamos transformando essas rodas imaginariamente em objetos fetiches quando não provocamos as feridas narcísicas. E como tal, espaço idealizado de prazer e de garantia  que os desejos individuais/coletivos vão se realizar…  A partir do momento em que tudo posso, nos afastamos do nosso senso critico, dos dados de realidade e das nossas  possibilidades concretas e limitações, somos inscritos enquanto humanos na falta e essa falta se traduz no fato de que não podemos tudo, vai existir sempre um fosso entre o que desejo e aquilo que consigo realizar, cabe a cada um de nós descobrir como lidar com isso,  com essa hiância ao longo da vida….E a roda, "equivocadamente", surge como objeto de satisfação e de desejo, ela vai dar conta das minhas demandas, através da demanda do coletivo. Como muito bem pontua Erasmo, qualquer mudança que introduzimos nos processos de trabalho instiga mudanças não só na forma como trabalhamos, mas também na nossa vida.  E estamos por inteiro na roda, com nossos ideais narcísicos, nossos afetos,  nossas fantasias e ilusões…Somos afetados e nos deixamos afetar por este processo. E isso é o primeiro passo, para que  possa ocorrer alguma elaboração psíquica, para que as palavras produzam sentido, mudanças.  A grande questão,  como coloca Erasmo, é confundir o vislumbre da mudança com a própria mudança. Esse talvez seja o ponto nevrálgico da roda, que como um equilibrista tensiona e seduz a platéia com os seus movimentos, causando um vislumbre (pulsional) sem cair do trapézio, o mesmo se passa com a roda. Faz-se necessário esse vislumbre para que ela faça girar, sem se perder na ilusão, ou melhor, sem cair do trapézio, para que a roda possa  produzir sentidos. Em outras palavras, significa aprender a lidar com esses restos carregados de afetos entre o   desejo do sujeito/coletivo e o que realmente acontece.  Talvez seja isso que alimente o desalento de algumas pessoas mergulhadas no equivoco do “fetiche da roda”, concluírem que a mudança se tornou impossível na medida em que a roda não produziu no concreto a mudança que gratifica narcisicamente o  seu Eu/coletivo, assim como, por transferir para o outro/roda a solução para os problemas que se apresentam.  

Como nos fala Gastão Wagner:
A ampliação da autonomia de uma pessoa depende sempre da ampliação de sua capacidade de compreender e de agir sobre o mundo e sobre si mesma.O trabalho em saúde objetiva alterar uma situação considerada inadequada; aposta em um devir, isto é, em um processo de mudança. Implica, portanto, na intervenção ativa de sujeitos que irão mobilizar recursos para alterar a situação negativa. Dificilmente haverá projeto compartilhado, alguma forma de co-gestão, sem a construção de objetos de investimento que motivem usuários, equipes e redes de apoio a saírem de si mesmos sem abandonar-se (CAMPOS, 2006)
 Um abraço, Conceição Valença.