E a escuta mudou o olhar

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Em Natal, a equipe de uma Unidade de Saúde da Família enfrentou a desmotivação e fragmentação do trabalho com escuta, discussão e arte, incluindo na produção de saúde as histórias de vida de trabalhadores e usuários

 

A toalha rendada é aberta sobre a mesa e os objetos vão aos poucos se pondo a várias mãos: uma velha lamparina a querosene, um ferro de passar a carvão, uma chaleira, um rádio, um porta-retratos. Na parede, um estandarte de retalhos coloridos exibe versos, mensagens, fragmentos afixados de antigas conversas. Completando a cena, uma cadeira de balanço coberta por uma manta de algodão espera pelo próximo que irá sentar e contar sua história.

Pode parecer estranho à primeira vista, mas o panorama descrito não faz parte da encenação de uma peça de teatro ou de alguma exposição de antiguidades: os artefatos mencionados e a composição do cenário estão ali para produzir saúde. É a Tenda do Conto, experiência que utiliza a contação de histórias para promover o protagonismo e corresponsabilização de usuários e trabalhadores do SUS em Natal (RN).

Em atividade há três anos, o projeto surgiu no bairro de Panatis, localizado na zona norte da capital potiguar, como desdobramento de um trabalho de pesquisa realizado pela enfermeira Jacqueline Abrantes, servidora da Unidade de Saúde da Família do Panatis desde 2002 – ano em que a unidade, que tem uma população adscrita de cerca de 13 mil pessoas, começou a trabalhar sob a Estratégia de Saúde da Família, com quatro equipes. 

Com o título “Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver”, a dissertação de mestrado da enfermeira questionou famílias da região em situação de vulnerabilidade sobre o que elas fazem para enfrentar seus problemas cotidianos. Falta de drenagem e recolhimento adequado do lixo, desemprego e condições precárias de moradia, educação e transporte estão entre as principais dificuldades enfrentadas pela população do bairro. 

“Durante as entrevistas que realizamos, tivemos contato com muitas estratégias de enfrentamento da carência e isolamento da região, e percebemos que muitas delas não eram levadas em conta pelo serviço”, conta Jacqueline. “Eram muitas histórias de vida interessantes e começamos a pensar em como trazer essas histórias para dentro da unidade”.

Inspirado pela declaração de uma das entrevistadas (“Minha vida dava um filme”) foi gestado o primeiro fruto dessa idéia: o documentário “Sobre anjos, borboletas e beija-flores: na aurora do envelhecer”, que reúne depoimentos de usuários de terceira idade contando um pouco sobre suas vivências, privações vividas e superadas, momentos felizes, talentos quase nunca mostrados. Exibido para usuários e trabalhadores da USF do Panatis no dia 27 de setembro de 2007, Dia do Idoso, o vídeo despertou um movimento irreversível na unidade. 

“Percebemos que tínhamos nas mãos algo que, de algum modo, se somava às tantas leituras e reflexões feitas antes, apontando para o início de algumas transformações relacionadas à adoção de práticas voltadas para a inclusão, a autonomia e o protagonismo dos sujeitos”, conta Jacqueline. “Como não dava pra fazer filme com todo mundo, a gente estendeu a idéia fazendo a Tenda do Conto”.

É no recém-inaugurado Centro de Convivência da USF do Panatis que a contação coletiva de histórias é realizada quinzenalmente. A unidade de Soledade I, bairro vizinho, também participa. Mas numa manhã qualquer de maio a Tenda do Conto – que já esteve em hospitais, asilos e até num presídio – formava a roda na área de lazer do Panatis, misto de praça e centro esportivo-cultural.

O violão do dentista Justiniano Homem de Siqueira, que trabalha no Panatis há dois anos, ajuda a aquecer os cerca de quarenta usuários e trabalhadores presentes naquela manhã com canções de outros tempos que já não tocam nas rádios ou na TV. Melodias de Adoniran Barbosa, Humberto Teixeira, Orlando Silva, Pixinguinha e outros correm pelos dedos de Justiniano e ecoam na voz dos participantes. “Aprendi nessa roda que saúde não se cuida só com remédios, mas também com fé, confiança, amizade”, conta o dentista-músico.

Moradora da região, Cleide Maria de Albuquerque, aposentada, 62 anos, é uma das primeiras a tomar assento na aconchegante cadeira reservada aos “contadores”. O bom-dia caloroso das muitas vozes e os objetos dispostos na mesa, inspirados no cenário vivo encontrado nos domicílios de tantos outros moradores da vizinhança, ajudam a se sentir em casa. Dona Cleide respira fundo e começa a compartilhar sua história.

Portadora de um câncer no útero e participante da Tenda do Conto desde a primeira roda, ela conta que viu os cabelos caírem por conta das seções de quimioterapia a que teve que se submeter e que divide os cuidados com a própria saúde com o cuidar do pai de 92 anos, com quem mora. Depois de fazer seu relato, pede que o dentista e violeiro Justiniano a acompanhe numa tradicional canção nordestina, com direito a encenação. 

“Aqui a gente pode compartilhar e ser ouvido. Tem gente que esconde que tem problema, mas eu acho bom contar, porque me faz bem. E ainda posso alertar outras pessoas para se cuidarem”, diz.

Trabalhadora do Panatis há 14 anos, a Agente Comunitária de Saúde Josefa Barros avalia que a possibilidade de ouvir as histórias de vida que perpassam os problemas de saúde é mesmo o grande trunfo da experiência. “A Tenda tem o papel de levar a escuta e o acolhimento aos usuários. Ela permite que a gente saia do nosso espaço rotineiro e conheça a realidade de cada um”, explica. 

A Tenda é, na verdade, apenas uma das manifestações de um jeito diferente de fazer saúde que a equipe do Panatis vem experimentando já há algum tempo. Jeito que também pode ser testemunhado nas rodas de conversa semanais realizadas entre os trabalhadores da unidade para reflexões sobre práticas de saúde. A iniciativa, explica a enfermeira Jacqueline Abrantes, surgiu da necessidade de enfrentar a desmotivação dos trabalhadores, a falta de investimento em qualificação e a fragmentação das práticas.

 

“O município de Natal vive há algum tempo uma crise na saúde, com falta de profissionais e insumos básicos e condições desfavoráveis das estruturas físicas das unidades básicas e hospitalares”, explica. Segundo ela, o cenário se refletia em desânimo, além de dificuldades nas relações entre os profissionais e despreparo para lidar com as dimensões subjetivas das práticas de atenção. 

O aumento do grau de comunicação e interação entre os profissionais, a transversalidade das relações, a ampliação dos espaços de trocas e o surgimento de novos sentidos no fazer cotidiano são citados por Jacqueline como resultados do trabalho das rodas semanais, nas quais textos relacionados à Política Nacional de Humanização costumam ser utilizados como suscitadores de debates sobre temas cotidianos da unidade. 

A Agente Comunitária de Saúde Josefa Barros resume o sentimento geral no Panatis: “Até alguns anos, você fazia o seu trabalho e mais nada: o atendimento era separado do resto, a direção não ouvia, a hierarquia era maior. Hoje a gente trabalha em equipe e troca. O HumanizaSUS ajudou a abrir mais nosso olhar. Você vê que seu trabalho é mais amplo do que imaginava”, conclui.

 

 

 

(Esta reportagem integra a série produzida para a publicação Cadernos HumanizaSUS sobre o tema "Humanização na Atenção Básica", a ser lançada em breve pela PNH).