O Homem e a Rua

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Aproveitando aí alguns ecos e ensejos – uma janela aberta aqui, uma outra porta ali… -, reproduzo logo após a imagem abaixo um comovente conto de Mia Couto. Trata-se de uma história sobre dois personagens bastante conhecidos, o "homem" e a "rua",  além de um diagnóstico preciso sobre os atuais aspectos sociais e profundamente políticos que os envolvem. Será a leitura essa arte de não desviar os olhos?     

O Homem da Rua

Ainda o dia andava à procura do céu, vinha eu em vagaroso carro que mais a mim me conduzia. De repente, um homem atravessou a calçada, desavultado vulto avulso. Uma garrafa o empunhava. E ele, todo súbito e poentio, se embateu frentalmente na viatura. Saltou pelos ares, se aplacando lá mais adiante, onde se iniciava o passeio. Saí do susto para inspeccionar sua sobrevivência.
Me debrucei sobre o restante dele, seu rolado enrodilhado. Não havia sangue nem quebradura de osso. O maltrapalhado estava a salvo, salvo erro. Todavia, me meteu pena: suas vestes eram a sujidade. Havia quase nenhuma roupa em seu sarro. Mesmo o corpo era o que menos lhe pesava. Os olhos estavam parados, na grade do rosto. Me pareciam pedir, o quê nem sei.
De inesperado, o vagabundo se ergueu e apressou umas passadas para encalçar o longe. Se entrecruzou com sua sombra, assustado de haver escuro e luz. Em muito zig e pouco zag ele acabou por se devolver ao chão. Voltei a acudir, cheio dessa culpa que não cabe na razão. Apanhei o vulto, desarranjado, sem estrutura. Pareceu tontolinho, sempre agarrado ao arregalado gargalo. Me deitou olhos muito espantados e pediu desculpa por incómodos. Apalpou o lugar onde se deitava, e disse:
– “Um de nós está morrendo”.
Entreolhei-me a mim e ao restante mundo. Ele se precisou:
– “Estou falando da terra, parece ela está moribundando”.
Lhe disse que o levaria dali para um sítio que fosse dele. Ajudei-lhe a entrar no meu carro. Ele recusou com terminância:
– “Não entro em coisa que serve para levar morto”.
Amparei o desandrajoso. Se sustentou em meu ombro e me foi levando pelo passeio sombrio, através dessa desvastidão onde o negro escurece a preto.
– “Agora o senhor me entorne aqui…
– “Aqui?”
Esfregando-se no pescoço como se as mãos fossem de outrem, acrescentou:
– “Aqui, sim. Quero acordar com dormência de lua”.
Dali ele passou a esbanjar conversa. Quem sabe o homem desjejuava palavra? E dizia sem aparência nenhuma:
– “Bem hajam as folhas, minha cama!”
E explicava-se enquanto alisava as folhagens mortas: quando se deitava lhe doía a curva da terra, a costela quebrada do próprio universo. Assim deitadinho, todo simetrado com o planeta, um subterrâneo rio falava com suas veias.
– “Até foi bom me aleijar um bocado. Ri-se? Nem sabe como é bom haver um chão para a gente ter onde cair”.
E nos trocamos nessa conversa com vontade de ser corpo, encosto, adormecimento. Ficámos a ver as luzinhas da cidade, lá em baixo, a lembrar que o homem sofre de incurável medo de ser noite. O país daquele homem seria a noite. Meu território era o dia, com sua luminesciência tanta que serve mais é para deixarmos de ver.
E pensei: o primeiro alimento é a luz. Nos invade logo quando nascemos. Depois, a luminosidade, com suas infinitas cascatas, nos fica a engordar a alma. Em mim, pelo menos, a primeira saudade é da luz. Direi, então: me falta a minha luz natal? Quem sabe a alma deste homem, sempre ninhado no escuro, emagrecera assim a olhos não-vistos? O homem é bicho diurno. O dia é bicho humano?
Me foi descendo, espesso, o sono. Avancei despedida não sem retirar do bolso algumas notas que estendi em direcção ao desastrado:
– “Deixo o senhor com algum dinheiro. Quem sabe lhe virão, mais tarde, as dores do acidente?”
Para meu espanto ele recusou. Sem veemência, sem nenhum ênfase. Era recusa verdadeira.
– “Posso pedir uma qualquer coisa?
– “Peça.
– “Me dê um pouco mais da sua acompanhia. Só isso: acompanhia”.
Ainda hesitei, inesperando aquele pedido. O homem nem me fitava, estivesse envergonhado. E assim, de cabeça baixa, insistiu:
– “É que, sabe, eu não tenho ninguém. Antes ainda tinha quem me dispensasse migalha de conversa. Mas, agora, já nem. E me dá um medo de me sozinhar por esses aís”.
Quase que falava para dentro, eu devia baixar orelha para o entender. Assim, cabismudo, prosseguiu:
– “Sabe o que faço? Vou dizer… mas o senhor me prometa que não zanga…
– “Prometo.
– “O que eu faço, agora, é me deixar atropelar. É. Ser embatido num resvalo de quase nada. Indenização que peço é só esta: companhia de uma noite”.
Fiquei quieto sem me achar conveniência. Nem gesto nem palavra me defendiam. O atropelado centrou esforço em se erguer, mão sobre o joelho. Já de pé me segurou o cotovelo:
– “Pode ir, à vontade. _nem imagina como senhor me faz bem, me bater e, depois, me falar. Agora já nem sinto dor nem dentro nem fora”.
Anda fiz menção de ficar, perdido entre garganta e coração. Mas o andrajoso levantou o braço, em serena sentença:
– “Vá, meu amigo, vá na sua vida”.
Regressei ao carro. Arranquei-me dali, devagar. Olhei no espelho para retrover o vagabundo. Me lembrei então que nem o nome dele eu anotara. Lhe chamo agora: o homem da rua. Seu nome ficará assim, inominável, simplesmente: homem da rua. Lembrando este tempo em que deixou de haver a rua do homem.

Mia Couto,
Contos do nascer da Terra