Estratégias do Biopoder no coração da Infância

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Assistimos recentemente ao Seminário Internacional “A Educação Medicalizada: Dislexia, TDAH e outros supostos transtornos” ( São Paulo, novembro de 2010 ), que constituiu-se numa verdadeira aula de humanização. Foi exemplar também em termos de organização competente das idéias que circulam hoje sobre as ditas “novas” enfermidades da infância contemporânea.

Aula de humanização:

O ponto de partida das comunicações foi a definição do processo de medicalização de todas as esferas da vida como:

“o processo que transforma artificialmente questões não médicas em problemas médicos. Problemas de diferentes ordens são apresentados como “doenças”, “distúrbios” que escamoteiam as grandes questões políticas, sociais, culturais e afetivas que afligem a vida das pessoas. Questões coletivas são tomadas como individuais; problemas sociais e políticos são tornados biológicos. Nesse processo, que gera sofrimento psíquico, a pessoa e sua família são responsabilizadas pelos problemas, enquanto governos, autoridades e profissionais são eximidos de suas responsabilidades” ( manifesto de lançamento do Fórum sobre Medicalização, tirado por consenso pelos participantes do referido seminário ).

Este modo de pensar a experiência de sujeitos ou coletivos, cujo sofrimento passa a ser enquadrado numa categoria diagnóstica, toma a forma para alguns de um cuidado com a saúde. Facilita o acesso ao tratamento e terapêuticas medicamentosas, dizem.

Naturalizar – tornar doença – modos de ser e viver nunca foi cuidar. Ao contrário, seria uma das formas de isolar, responsabilizar e culpabilizar o indivíduo por um sofrimento que, se visto com lentes de maior acuidade e respeito, revelam os modos como se produziram tais realidades. E faz parte das atribuições éticas de um cuidador na área da saúde pesquisá-las e introduzi-las como mais uma ferramenta de trabalho com os usuários dos serviços de saúde. Desconstruir e reconstruir estas realidades junto com os pacientes é promover saúde.

TDAH, Dislexia, TOD ( “transtorno opositor- desafiador” ): “doenças que comprometem apenas a aprendizagem e o comportamento?”, pergunta-se Maria Aparecida Afonso Moisés? A pediatra, com larga experiência no tratamento de crianças, premida pelo aumento inusitado da demanda por estes diagnósticos, analisa cada exame de neuroimagem, explicitando a confusão e a discordância entre os próprios especialistas. Como uma imagem no cérebro, que revela “distúrbio”, pode atrapalhar apenas uma faceta da vida da criança?

Recorda o consenso do Instituto Nacional de Saúde do congresso americano  ( novembro de 1998 ): a metanálise mostrou que a grande maioria dos trabalhos sobre os temas em questão não preenchia critérios mínimos de cientificidade. Estes estudos não se enquadrariam no campo da racionalidade médica. Seriam “cristalizações de pensamentos mais afeitas ao mundo do preconceito do que ao mundo da ciência”. Maria Aparecida lembra também os mecanismos de pensamento racista que vigoravam no Brasil antigo, quando se atribuía um funcionamento “inferior” em termos de aprendizagem `as crianças negras ( mestiços, degenerados ), decorrente de uma premissa racista sobre sua inteligência.

 

“Zumbi- like”

 

O capítulo da medicalização das condutas que se refere aos medicamentos é algo a parte em termos da omissão e distorção de dados reais nos estudos e terapêutica.

O metilfenidato, conhecido no Brasil como Ritalina ou Concerta – curiosa escolha de nomes, para dizer o mínimo – tem seu mecanismo de funcionamento igualado ao da cocaína e anfetaminas. Exatamente como elas, aumenta a concentração de dopamina no cérebro. O funcionamento se dá por um processo de toxicidade. Retirado o medicamento, cessam os efeitos “terapêuticos”. E não podem ser administrados por muito tempo justamente pelos efeitos danosos como arritmia cardíaca, entre outros.

Adolescentes relataram o efeito “zumbi- like”: sentir-se prisioneiro em seu próprio corpo ( uma espécie de contenção química ). Outros associam a retirada da medicação `a entrada em outras drogas ( pesadas ), como um modo de reaver a sensação de bem estar artificial, maior que outros prazeres da vida.

Jovens que usam a Ritalina como modo de se “ligar” para um melhor rendimento nos estudos, afirmam: “É fácil comprar, é barato e seguro, segundo os médicos”.

 

Forçando o pensar para além ou aquém das práticas, ficam as questões: Por que focar a atenção? Em quê? A quem serve esta necessidade de concentração somente nos conteúdos escolares? Por quê isso está em voga hoje de forma tão obsessiva e massiva?

Steven Strauss, neurologista da Universidade de Maryland, palestrante do mesmo seminário, relata que em tempos de neoliberalismo, as escolas públicas teriam como meta: “read, write and compute”. Produzir trabalhadores, apenas. Nada de ler Shakespeare ou Tolstoi…Nada de pensar…

 

Iza Sardenberg