Notas sobre Biopoder- Parte IV

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Medicina Genômica

Rabinow e Rose começam este tópico que encerra o artigo sobre Biopoder, lembrando que “as primeiras estratégias biopolíticas, no século XVIII, diziam respeito ao controle da doença e da saúde” (2006, p. 40). Nessas estratégias a conexão entre a aspiração pessoal de ser curado e a necessidade de administrar a saúde da população em nível global era articulada em uma forma de controle consentido. Mas exercido como um poder discricionário a disposição do soberano.

Assim, os pólos desta biopolítica no plano molar estão relacionados ao tratamento da qualidade da água, dos exames periódicos, dos seguros de saúde, da medicina preventiva que operam sobre a saúde coletiva. No plano molecular se relacionam as intervenções clínicas no corpo da pessoa doente em nome da saúde. Um modelo geral que servia a muitas outras articulações entre o normal e o patológico.

Os ganhos de expectativa de vida, que vemos desde o nascimento da clínica estão relacionados aos investimentos sobre a saúde coletiva. Há conhecimento consolidado para remediar e expandir a qualidade e a expectativa de vida nos bolsões de subdesenvolvimento dentro das sociedades desenvolvidas e nos países e continentes subdesenvolvidos, como na África e seus Estados falidos ou precários. Mesmo fora do âmbito das promessas de futuro com a Medicina Genômica. Aqui e agora a vida poderia ser melhor.

No entanto, econômica, médica e eticamente se está apostando alto: Tempo, dinheiro e oportunidades. Ainda é indiscernível se uma genômica das populações poderá ser otimizada para tratar de indivíduos e se virá a substituir ou conviver em algum grau com a clínica baseada na restauração da saúde. Não sabemos se e quando uma bioengenharia poderia estar engajada numa completa reengenharia da própria vida.

Porém é aceitável que uma racionalidade biopolítica em relação à saúde esteja se formando. Conhecimento, poder e subjetividade estão se reconfigurando. Podem-se ver algumas destas mudanças, como as disputas em torno das delimitações e prerrogativas profissionais.

Penso que especialmente o nível de investimentos em infra-estrutura para atender a demanda reprimida é um sintoma de que o terreno está instável, movendo-se como na eminência de uma mudança no paradigma que orienta a indústria da saúde. Os investimentos são apenas o necessário para encobrir parcialmente o escândalo da demanda reprimida. As potencialidades e promessas da medicina genômica podem tornar obsoletos recursos de atenção em saúde que não chegaram a beneficiar uma parcela considerável, talvez a maioria, da população do planeta. Se este ‘know-how’, emergirá e gerará cura com o seu biovalor correspondente é uma economia da esperança como tem afirmado Carlos Novas (Novas e Rose, 2000).

Para embasar suas idéias de que algo novo está acontecendo, Rabinow e Rose apresentam dois exemplos: A pesquisa de Rabinow em 2003 sobre o Celera Diagnostics que pretendia desenvolver “exames diagnósticos que seriam usados maciçamente em laboratórios de referência de forma rotineira, para possibilitar diagnósticos pré-sintomáticos. A partir destes diagnósticos massivos, (desenvolver) intervenções preventivas em uma escala nunca antes imaginada nos próximos cinco anos” (Rabinow e Rose, 2006 p. 51).

Esse primeiro exemplo, se bem sucedido iria mudar as lógicas da medicina e transformar o campo biopolítico. Hoje, no final de 2010 podemos confirmar apenas o caráter altamente especulativo dos prazos projetados para a efetivação ou fracasso destas promessas. Os dados seguem rolando e futurologia é um jogo mais arriscado do que pôquer. Mas são validas as especulações que Rabinow e Rose fazem a respeito da concepção de self que emergiria do sucesso destes investimentos. Talvez até ainda não tenhamos percebido que já não somos mais os mesmos. Mas certamente as respostas mais estáveis a estas altas apostas estão em aberto.

Outro exemplo, também extraído da pesquisa de Rose de 2003 trata da farmacogenômica. A perspectiva de impacto sobre o que de fato será a saúde mental em um mundo em que perfis de DNA ao nível molecular sejam aplicados de forma ampla a população é investigada nesse trabalho. A OMS prevê que em 2020 a depressão será a segunda maior causa de doenças atrás apenas das doenças cardíacas. Observe-se já aqui um novo campo em plena ação: Uma doença que causa doenças, uma doença que é também uma etiologia. A etiologia do sofrimento humano está cada vez mais complexa e de um coletivo de rótulos passamos a rótulos que criam e se combinam em novas tipagens, rótulos abrangendo e constituindo novos rótulos.

Assim é que Rabinow e Rose chamam estas expectativas sobre a compreensão da saúde mental de crenças. Elas têm muitos desencadeantes que geram expectativas amplas sobre a saúde mental. A mais conhecida por nós é a campanha de marketing das empresas farmacêuticas para conscientizar sobre doenças. Também são reconhecidas e investigadas pelos pesquisadores a relação da depressão com uma série de outros diagnósticos.

A indústria alega que cerca de uma dúzia de medicamentos antidepressivos (terceira geração) fabricados em nível molecular já estão a disposição. Eles poderiam atingir a base neurológica (em nível molecular) dos sintomas depressivos. O uso de exames diagnósticos ao nível do DNA de cada indivíduo permitiria que as atuais substâncias fossem usadas em doses idéias para cada indivíduo: máximo efeito terapêutico e mínimos efeitos colaterais.

As perspectivas prometem, tanto no nível da incidência sobre os corpos e a vida de cada indivíduo, quanto nos cálculos da indústria farmacêutica. Está em aberto a questão a respeito de onde, em que investir e com qual margem de lucro. Se tudo isto se mostrar factível estes exames sairiam do consultório do geneticista para o do clínico geral. O manejo das doenças mentais crônicas seria otimizado na medida em que se faz hoje com doenças cardiovasculares, diabetes, hipertensão, entre outras.

A doença mental poderia vir a cumprir um novo campo de verdade, não mais referente à purificação ou eliminação dos degenerados, mas em nome da qualidade de vida e até da felicidade, apostam Rabinow e Rose.

Percebi que os autores desejam uma genealogia do presente. Lembram que já estivemos em situação semelhante no nascimento da clínica por volta de 1800. Já referi o caso da depressão que está passando de diagnóstico para desajustados em 1955 a uma categoria global ainda na primeira metade do século XXI. Assim, para os autores, o biopoder como um conceito preciso e usado ao lado de investigações empíricas pode ser útil para entender nosso mundo no futuro imediato.

Conclusão

Finalmente, foi gratificante ver que os autores se servem de várias correntes do pensamento para delimitar a seu gosto o conceito que lhes interessa. Produzem-se conceitos em um alto forno que compõe epistemologias divergentes. Se citarmos a fonte está valendo.

Não importa se fazemos escombros de um modo de pensar – como Rabinow e Rose fazem com Agambem e Negri. Logo em seguida nos vemos usando os destroços para fundamentar nossa própria maneira de ver o mundo. De acordo com a epistemologia que nos interessa. Talvez superando a epistemologia e os cortes como afirma Bruno Latour (1994). Parece que vigora, na academia, um pragmatismo que em geral vemos como desencanto do mundo, porém é também um pragmatismo movido a sonhos e quimeras.

O mundo continua vasto o suficiente para que cada um, com o que pode ver, com a lente de seu tempo, tenha uma idéia única e pessoal de mundo. Hoje são muitos os autores. Muitas as epistemologias. Raras as hermenêuticas possíveis e imensas as formas de olhar. Ainda assim o mundo é mais do que cada olhar, mais ainda que a soma de todos os nossos olhares…

Por causa disso não nos cansamos e não desistimos de olhar. Há um mundo para cada um ver. E ele sempre será apenas e absolutamente um mundo pessoal. A despeito dos grandes consensos que definem os períodos históricos. Um arsenal de conceitos é um arsenal de ferramentas e de armas. De acordo com o uso que deles façamos.

Assim é que o conceito de Biopoder tem sido útil para olhar os dilemas das Políticas de Saúde no Brasil. Já dissemos em outros textos que o desafio do Brasil democrático é o de produzir igualdade, dignidade e inclusão em meio a diversidades de modos de ser em nosso país continental. Queremos a implantação e a consolidação do SUS como o bem de civilização que ele representa. A aposta que fazemos na Política Nacional de Humanização do SUS é nossa resposta a este desafio: Produzir a identidade coletiva dos que trabalham em saúde e que mobilizam os biopoderes que estão em jogo na atenção a saúde.

Referências

AGAMBEN, G. (1995). Homo Sacer. Torino, G. Einaudi.

DELEUZE, G. (1995). Postscript on Control Societies. Negotiations. New York, Columbia University Press: 177-182.

DELEUZE, G. (1989). Qu’est-ce qu’un dispositif ? Michel Foucault, philosophe. Paris, Editions de Seuil.

ESCOBAR, Carlos Enrique de. (ORG.) DOSSIER DELEUZE. Rio: Hólon Editorial, 1991.

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HARDT, M. and A. Negri (2000). Empire. Cambridge, Mass., Harvard University Press.

GRAY, John. Cachorros de Palha: Reflexões sobre humanos e outros animais. Rio de Janeiro: Record, 2007.

LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.

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RABINOW, P. (1999). French DNA: trouble in purgatory. Chicago IL, University of Chicago Press

RIBEIRO, Darcy – O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

ROSE, N. (2001). “The politics of life itself.” Theory, Culture & Society 18(6): 1-30.

ROSE, N. (2006). The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power and Subjectivity in the Twenty First Century. Princeton, NJ, Princeton University Press.