Reinventando o cotidiano

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Todas as tardes,
sempre à mesma hora,
vem visitar-me um passarinho amigo…
canta cantigas que eu cantava outrora,
canta coisas que eu sinto, mas não digo.
De onde ele vem, não sei; nem onde mora;
se lembranças me traz, guarda-as consigo.
Sinto, no entanto, quando vai-se embora,
que a minha alma não quer ficar comigo.
Hoje tardou… Há chuva nos caminhos,
mas chuva não faz mal aos passarinhos
e ele há de vir, a tarde festejando…
Lá vem ele, ligeiro como um sonho…
canta coisas tão minhas, que eu suponho
ser o meu coração que vem cantando.

O poema é de Palmira Wanderley, poetisa natalense e uma das precursoras do jornalismo no Rio Grande do Norte. A beleza dos versos de Palmira escorre feito filete de água pura em meio à profusão inquieta de pensamentos.
Uma bonequinha vestida de azul e amarelo contrasta com a mesa de branco cansado; olhar fixo expressando dúvidas; parado no meu. Parece perguntar por que Sofia se foi. Aquele era o seu brinquedo preferido. Repito o gesto impensado pela enésima vez, na tentativa de que dele saia outro som, outro movimento. Puxo a cordinha, ela novamente se move do mesmo modo e o consultório é invadido pela mesma melodia.
A boca fica seca, falta ar, há algo que sufoca. Mas a vida continua. Há pessoas lá fora à espera de “acolhimento” e relatórios a serem preenchidos. Seria prudente “esquecer” aquela sensação de engasgo que se repete em algumas situações desde os tempos de graduação quando não se podia ter “tempo para sentir” por ter que atender rapidamente e ganhar o “tempo de memorizar” termos que até hoje não foram usados.
Permaneço na sala a percorrer emaranhados trajetos.
Ano de 1996. Na zona rural de um município vizinho, primeiras equipes da tão propagada Estratégia Saúde da Família. Planejamento local, reuniões, agenda organizada: atendimentos pela manhã, visitas domiciliares à tarde. Uma criança rompe a rotina e adentra pela unidade aos gritos: “minha mãe tá tendo bebê”! Médica e enfermeira se entreolham assustadas. A técnica em enfermagem rapidamente pega um par de luvas e um pequeno pacote de curativos; a equipe segue a criança até a casa. No escuro quarto, a inesquecível cena: um bebê chorava entre as pernas da mãe que descansava tranqüilamente na cama sobre os lençóis encharcados. Ao ver as mãos trêmulas da enfermeira ao cortar o cordão, a mulher tentou confortá-la: “já pari oito assim”. A jovem enfermeira sorriu agradecida. O cordão umbilical fora cortado e a placenta expulsa espontaneamente. Alívio, emoção e alegria! A mãe, já com o filho nos braços, apontou para uma caixa de papelão no canto do quarto de onde foi retirada uma coberta azul. Depois do susto, a equipe saiu pela localidade exibindo à vizinhança, Gabriel, o filho de Maria das Graças, nascido em casa.

Outra rua, outra esquina: Rosa. Divide a casa de três cômodos e a aposentadoria com os netos, nora e filho. Simpática senhora conhecida por todos do bairro; oitenta anos, anda com dificuldade. Carrega nas mãos uma garrafa térmica com chá e uma sacola com biscoitos. No caminho, pontos de parada para descansar, cumprimentar os vizinhos e ficar a par das novidades. Todo dia, atravessa o quarteirão em direção à casa da amiga. Margarida, também idosa, mora sozinha e foi vítima de um AVC. Rosa a ajuda no banho, confere se tomou os remédios, põe duas cadeiras na calçada. Ficam a conversar olhando o movimento da rua enquanto tomam chá.

Em poucos segundos, o pensamento foge para outros lugares e situações diversas. Aquele menino de apenas seis anos no ponto mais alto da goiabeira me deixa nervosa. A “saudação”, nessas circunstâncias, é sempre a mesma: “Você vai cair daí e se machucar, Antônio!”. Ele apenas ri e acena com a mão. Outro dia, durante a consulta, soube que seu irmão e cunhada foram assassinados enquanto dormiam. Um filho de quatro meses estava entre os dois. Foi o próprio Antônio quem me contou. O bebê ficou com Amélia, mãe do jovem assassinado. Atos de violência se repetem e parecem se tornar banais. Amélia não desiste. Continua a organizar as festas na localidade: natal, dia das crianças, dia das mães. Brechas, aberturas para que feixes de luz entrem nos espaços estreitos. Meios de transformar o cenário; de reverter precariedade, violência e dor em interação, vida e alegria.
 Reinvenções do cotidiano. Lampejos que nos retiram do lugar, forças que nos deslocam e desbloqueiam a criação. Segundos de olhares sobre o outro e sobre nós mesmos revelando o que há de nós no outro e o outro que há em nós; sustos-surpresas no encontro com os diferentes e múltiplos que nos habitam.
Sigo com os atendimentos. Entre repetições, em meio ao vai e vem, persigo os desvios.  Aqueles que insistem em falar das flores e questionam a medicalização da vida. Ganho o mundo com os estradeiros. Embalo-me nas redes dos berços piauienses, nos coletivos, na cadeira da tenda do conto. Me junto aos companheiros de rede; pesco as mensagens das garrafas virtuais e mergulho nos terrorismos poéticos.
Ouso acreditar que outro mundo é possível e que “a vida é sempre uma questão de potência”.