Entrevista com Lucrécio

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 Manhã chuvosa de uma segunda feira de fevereiro. A redação estava muito abafada, não só pelo efeito do tempo como também pela expectativa da chegada do nosso entrevistado; tanto pela curiosidade como pela apreensão, já que sabíamos da sua aversão à entrevistas – dizia, como um filósofo francês, que dar entrevistas era nada mais que responder aos problemas dos outros. Todos estávamos ansiosos pela presença de Titus Lucretius Carus, conhecido entre nós simplesmente como Lucrécio. A entrevista fazia parte de uma agenda do filósofo e poeta Italiano – pelo menos todos acreditam que tenha nascido em Roma, coisa que jamais desmentiu – por conta do lançamento de seu livro no Brasil De Rerum Natura, traduzido para nossa língua pelo também poeta, filósofo e ensaísta português Agostinho da Silva com o titulo Sobre a Natureza das Coisas e publicado no volume V da coleção Os Pensadores da editora Abril. O trabalho é composto por seis livros e é considerado por muitos como a mais completa exposição do pensamento de Epicuro.

Lucrécio chegou aparentando muita tranquilidade, vestindo uma túnica bastante puída e amarelada, sugerindo que já fora branca um dia. Homem em torno dos 44 anos, possuindo uma barba e cabelos ondulados e bastante descuidados, próprio daqueles que pouco se fixam em ambientes domésticos e que tornam sua aparência mais envelhecida. Ao entrar foi logo cumprimentando todos muito cordialmente e pedindo algo para acalmar sua cede – água, para ser mais preciso; o que me fez expressar um leve sorriso entre os lábios, prontamente percebido pelo nosso entrevistado, afinal não pude evitar a imagem de Lucrécio pedindo uma bela taça de vinho, ou, o que me divertiu ainda mais, uma generosa dose da famosa poção do amor – invenção do religioso Jerônimo com intuito de difamar Lucrécio, dizendo, sobretudo, que enlouquecera depois da bebida e toda sua obra havia sido resultado dos períodos de lucidez entre as crises – pobre padre! Deve ter entendido muito pouco da obra; como pode tal beleza ter sido produzida em “períodos de lucidez”?

Redação: O senhor produziu uma obra que resgata a filosofia de Epicuro e que é propriamente uma concepção física da natureza. Entretanto, fica claro que a sua constituição não é epistemológica, mas altamente prática. O senhor poderia nos falar sobre o problema central da sua obra?

Lucrécio: De fato, você tem razão. Esta obra que escrevi – De Rerum Natura – tem um objetivo ético, prático. Não tem um objetivo físico. O meu problema é demonstrar que o homem vive com a alma perturbada e que esta perturbação da alma tem como causa os fantasmas de terceira espécie. Se não afastarmos estes fantasmas de terceira espécie, estes simulacros de terceira espécie nossa alma estará sempre perturbada. Ainda mais, estes fantasmas geram os criminosos religiosos, porque estes religiosos vivem sua vida em torno destes fantasmas e só se sustentam produzindo tristezas, ou, como diria um bom amigo, paixões tristes. Essas paixões tristes são produzidas por estes fantasmas. Tudo que eu quero neste livro é demonstrar que depois de mortos estaremos mortos.

R: O senhor afirma que a perturbação da alma dos homens se deve ao medo da morte. Como isso se daria?

L: Veja, o homem, sob o domínio dos fantasmas de terceira espécie, criam dois falsos infinitos: a ilusão da capacidade infinita dos prazeres do corpo e a ilusão da duração infinita da alma. Ora, se a há prazeres infinitos, também há dores infinitas e se a alma dura eternamente então nós podemos ter dores eternas. Essa é toda condição do medo da morte. Essa é a ilusão gerada pelos fantasmas de terceira espécie.

R: O senhor fala de falsos infinitos e de verdadeiros infinitos. O que isso significa na sua filosofia e quais as implicações disso?

L: Bem, aqui entra a questão da física, de como funciona a natureza. Na minha obra vou afirmar que existe, e isso é decisivo, três infinitos verdadeiros: os átomos, o vazio e o conjunto de átomos e vazio. A soma dos átomos é infinita, justamente porque eles são elementos que não se totalizam. Mas essa soma não seria infinita se o vazio também não o fosse. O vazio e o cheio se entrelaçam e se distribuem de tal forma que a soma do vazio e dos átomos, por sua vez, é ela mesma infinita. O que eu estou dizendo aqui é muito grave, muda toda a concepção de verdade em relação à tradição. O que eu estou dizendo é que o verdadeiro e o falso são reais, são ontológicos. Veja por exemplo Aristóteles. Ele examina o real para buscar a verdade. É como funciona o pensamento em Aristóteles. Mas o real é penetrado pela falsidade e, às vezes, o pensamento se equivoca e toma o falso como verdadeiro. Ora Aristóteles então cria um método baseado numa lógica atributiva. Ele, então, atribui predicados aos sujeitos. Isso pode ser feito de duas maneiras: atribuir predicados essenciais e predicados acidentais. Ao dizer “Sócrates é animal racional, alto, magro e está sentado”, por exemplo, se diz que “animal racional” é a essência de Sócrates, mas “alto, magro e está sentado” são acidentes. Os acidentes são apreendidos pela experiência, mas a essência é produzida pela razão. Veja, eu insisto, é produzida pela razão. Então, a essência, na verdade, é a projeção do sujeito sobre o mundo. E observe que a ciência está interessada exatamente nestes atributos essenciais. O que eu estou dizendo é que o pensamento não projeta nada, ele entra no mundo; e diz o mundo exatamente como ele é. A lógica que proponho é conjugativa e não atributiva. Esta posição de atribuição leva Aristóteles a fundar a Doutrina das Categorias e é exatamente isso que aquele filósofo francês, Deluze, vai dizer que é fixo e sedentário. Olha que coisa interessante ele disse: a distribuição fixa e sedentária é a atribuição e a distribuição nômade é exatamente a conjugação, e essa distribuição atributiva é o que esse filósofo chama de bom senso. Seriam mesmo duas maneiras de pensar a realidade.

R: O senhor fala em sua obra sobre estes fantasmas de terceira espécie, os simulacros de terceira espécie. Qual a relação destes fantasmas com os átomos?

L: Vamos entender melhor como esta física é constituída. Estou afirmando, junto com Epicuro, que o que constitui os corpos são os átomos e o vazio, dois infinitos. Ora, quando os átomos se agregam, se juntam, eles formam os corpos. Veja a extensão disso. Os átomos são eternos, mas as junções dos átomos, os corpo, duram, ou seja, estão no tempo. Bergson, outro filósofo francês, viu bem isso na sua prática filosófica. Ele estuda o tempo exatamente dessa maneira; claro, dentro do seu próprio sistema, com seus próprios conceitos. Esses átomos que estamos falando não são como estes que a física passou a descrever muito recentemente. Eles não podem ser divididos, eles não podem ser reduzidos. Esses átomos modernos, na verdade, dentro deste pensamento, já são corpos, eles são constituído de partes. Além disso, o que é fundamental entender, os átomos não podem ser apreendidos pela sensibilidade. Só os corpos são sensíveis. A sensibilidade só apreende os corpos, não os átomos. Os átomos e o vazio são exatamente – você vai se surpreender aqui – o próprio Caos. É aquilo que o filósofo que citei a pouco, Bergson, chamaria de “virtual” e o Deleuze chama de “empírico transcendental” ou “Corpo sem Órgãos”, ou seja, a condição de genealogia do individuo, do real existente. Essa não é bem uma linguagem que eu estou habituado a usar, mas nesse mundo do tempo que não é linear, agente é capaz de cada coisa surpreendente. Esses três infinitos, portanto, átomos, vazio e conjunto dos átomos e vazio, só são apreendidos pelo pensamento, não pela sensibilidade.

Agora a questão. Os corpos, que são constituídos pelos átomos e pelo vazio, podem ser apreendidos pela sensibilidade. Esses corpos, os indivíduos no mundo, só são apreensíveis porque emitem átomos. Na verdade compostos de átomo. Você está entendendo? Os corpos emitem átomos e essas emissões são apreendidas pela sensibilidade. Claro, são compostos de átomos, já que os átomos em si não podem ser apreendidos. Você poderia me perguntar se esses corpos emitem átomos, como eles não se extinguem? A resposta é muito simples: todo corpo encontra-se em um meio e este meio imediatamente repõe os átomos que foram emitidos. Essas emissões de átomos eu chamo de Simulacros. Ainda há mais, os corpos emitem átomos de superfície e de profundidade. Há diferenças entre eles. Assim, estou falando de dois tipos de emissões: átomos de superfície e átomos de profundidade. Agora uma coisa terrível. Há ainda uma terceira espécie simulacro. Os corpos são, portanto, fontes destas emissões. Ora, quando essas emissões se afastam da sua fonte elas ganham uma certa autonomia, elas não são mais, digamos, dependentes de suas fontes. A essas emissões eu chamo de fantasmas de terceira espécie. Agora, estas emissões, esses simulacros de terceira espécie, os fantasmas, podem ser ainda de três maneiras: oníricos, teológicos e eróticos. Esses fantasmas não são criados por um sujeito, eles estão na natureza. Não são criados por algum tipo de ficção, são absolutamente reais. De novo em outra linguagem: eles são imanentes. Então, ao se distanciarem de suas fontes eles vão adquirindo isso que eu chamei de certa autonomia e também vão perdendo sua conformação. Quanto mais eles se distanciam de suas fontes, mais eles perdem sua conformação e aparece um fenômeno, a interpenetração destes fantasmas. Eles se interpenetram. E aqui está todo problema: estes fantasmas, esses simulacros de terceira espécies que se distanciam de suas fontes são a origem dos mitos. Todo tipo de imagem. Porque eles se misturam aparecem dragões de fogos, cavalos alados etc. Então, os fantasmas oníricos, teológicos e eróticos seriam os responsáveis por todas as superstições, por todo terror. A origem dos falsos infinitos. Estes falsos infinitos então, que são o poder do corpo para o infinito de prazer e o poder da alma para a infinita duração, têm origem exatamente nestes simulacros de terceira espécie. E é aqui que aparece o homem religioso, que atualmente ocupa as mais diversas formas, se aproveitando destes falsos infinitos, destes simulacros para gerar paixões tristes, produzindo a perturbação das almas dos homens. 

R: Perturbação da alma em que sentido?

L: Poço dizer que, por causa destes falsos infinitos, o homem tem sua alma totalmente perturbada, de tal maneira que o homem não teme a dor física.  O que mais o acomete é a perturbação de sua alma. Veja por exemplo o caso da peste em minha época e da AIDS agora. O terror da alma suplanta em muito a dor física. Veja então, que a experiência dos fantasmas de terceira espécie é absolutamente real e é isso que garante o enunciado do homem religioso. Aqui está então todo problema político: o medo da morte. Medo de morrer e de depois de mortos ainda estarmos vivos.

R: Você falava da questão do tempo, citando inclusive Bergson e Deleuze. Poderia nos dizer mais?

L: Eu dizia que há três tipos de emissões: simulacros de superfície, simulacros de profundidade e Fantasmas. Bem, os três tipos diferem em suas velocidades de emissões. Cada um deles possui uma velocidade diferente de emissão. Ora, se são três velocidades diferentes nós imediatamente temos tempos também distintos. Nós ai já saímos do tempo como uno. O tempo é então múltiplo. Isso justifica, inclusive, essa nossa entrevista, não é?

R: Entendendo que sua obra é altamente prática, tomando-se o prático como ético e o especulativo como epistemológico. Como evitar os fantasmas de terceira espécie e, por conseguinte, a perturbação da alma?

L: É bem simples. Toda a questão prática, toda a questão ética, é o prazer. O prazer se opõe a dor. Então, suprimir e evitar a dor. Agora, nossos prazeres têm obstáculos mais fortes que as próprias dores: os fantasmas, as superstições, os terrores, o medo de morrer, tudo o que forma a inquietação da alma. É a inquietação da alma que multiplica a dor. Se essas inquietações são produzidas pelos fantasmas de terceira espécie, que são as próprias ilusões, e essas ilusões são governadas pelos homens religiosos, para atingir o prazer teríamos que afastar esses simulacros. Mas os fantasmas de terceira espécie não são produzidos por um sujeito, eles são absolutamente reais e imanentes. Ora, não é possível afastá-los, eles sempre estarão presentes. Mas se o pensamento puder lidar com estes fantasmas, nós, inclusive, poderemos rir com eles, ter prazer com eles. Governar estes fantasmas, não deixar que o religioso o faça. Esta é toda questão ética, que também é estética e política. Essa é toda questão de pensadores como Espinosa, Nietzsche, Bergson, Deleuze, Foucault e tantos outros, assim como artistas como Artaud, Van Gogh, Kafka etc, ou seja, atingir o pensamento, atingir o virtual, a singularidade, o Corpo Sem Órgãos. Atingir o abstrato, aquilo que é pré-individual e apessoal.  Confrontar-se com o Caos, com as velocidades infinitas. A função do pensamento, então, é o confronto com o Caos.

R: Você fala em abstrato. A filosofia clássica também fala em abstrato. Qual a distinção?

L: Se tomarmos a posição clássica da filosofia veremos que há duas maneira de conhecer: conhecimento pela sensibilidade e conhecimento pelo intelecto. Pela sensibilidade podemos conhecer os corpos, os indivíduos no mundo – eu vejo, toco, ouço, sei que estou com fome etc. – e pelo intelecto podemos conhecer a espécie por abstração. Em Kant a primeira forma é a estética transcendental e a segunda a analítica transcendental. Então, uma coisa é este ou aquele homem – o individuo no mundo. Mas o intelecto não quer conhecer o individuo, e nem poderia, ele que conhecer “o homem”. “O homem” é uma abstração. O intelecto abstrai as semelhanças dos indivíduos e dá a espécie. Puramente Aristotélico, não é? Produção de conhecimento por abstração. Este é todo o procedimento dominante no ocidente. O que estou dizendo é absolutamente outra coisa. O abstrato não está no intelecto. O abstrato está no real. É o átomo. O abstrato é o átomo. Desta maneira o átomo jamais poderá ser apreendido pelo sensível, só o pode pelo pensamento. O que a sensibilidade apreende são os compostos. Quem apreende o átomo é o pensamento. Veja, a profundidade do que eu estou falando e que é, de muitas maneiras diferentes, retomado ao longo do tempo, é que o real não é só o concreto; existe também um real que é abstrato.

 

Texto de Altair Massaro, contando intensamente com os seguintes aliados: Áudios e transcrições das aulas de Cláudio Ulpiano e Luis Fuganti, além dos textos: Apêndice 2 de Lógica dos Sentidos de Gilles Deleuze e Sobre a Natureza das Coisas de Lucrécio.