Estamira e Winehouse: As Sutilezas do Aterro

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  Quando passamos por aterros sanitários desviamos o olhar, tampamos o nariz. Queremos bloquear os sentidos para não apreendermos os odores fétidos da civilização. Não encontramos parâmetros estéticos para ver beleza no lixo ou poesia no vôo dos urubus.

 

Em meio ao acúmulo de um lixo incomensurável, brotou Estamira. Uma mulher tida como louca ou, sendo mais tecnicamente preciso, esquizofrênica. É em meio ao lixo onde buscava sua sobrevivência que Estamira atreve-se a a existir. Teoriza, fala sobre o mundo e seu papel nele. Questiona verdades tidas como definitivas. 
 
No documentário de Marcos Prado vemos a altivez de um ser humano junto aos  dejetos da humanidade. Tomates podres, ratos, lixo hospitalar ou restos de construção não são páreo para uma lente que teimosa nos aproximou dos atributos humanos de uma mulher que a maioria de nós acreditava "lixificada" pelo seu em torno. 
 
Existe alma nos aterros sanitários, alma sufocada que explode em teorizações sobre a vida e a humanidade. Talvez a maioria de nós não saiba ou não quer saber disso pois, saber nos torna co-responsáveis pela humanidade que habita o lixo e que, por ser humana, precisa sair de lá.
 
Neste mês Estamira foi embora do aterro. Foi parar numa forma mais elaborada de lixão, o da desassistência à saúde. Agonizou dois dias num hospital para receber a chancela humana de um atestado de óbito que rotulou o fim de sua existência como "septicemia".
 
Mas espere, os aterros podem ser muito sofisticados. Uma cantora de voz potente e pulsante, daquelas brancas com voz de negra. Um disco de sucesso e , de repente, a vida escancarada diante das câmeras. Todo mundo quer saber o que ela come e defeca, veste e respira, ama e odeia. Uma cantora famosa transforma em ouro tudo o que toca. Sua imagem contamina os sonhos, dita regras de consumo, valoriza nossa pobreza estética.
 
Somos curiosos da sua casa. Queremos saber de tudo. E mais uma vez surpresa alguma. Ela bebe, fuma e curte todas as drogas…sejam lícitas ou ilícitas, até porque delimitando os enormes espaços da nossa hipocrisia inquisitorial, existe apenas um "i".
 
Mais uma morte. Overdose? Atentos vemos declarações preocupadas com a influência da moça na nossa juventude. Outra dimensão do sensacionalismo nos fala da tal síndrome dos 27 anos que nos levou Hendrix e Joplin. Queremos saber do conteúdo do seu estômago na mesa de necrópsia. Chamem aquele ator do CSI para ler o boletim pois assim a audiência vai subir.
 
Winehouse está lá cantando no alto do palco. Preside soberana o aterro sanitário do mercado que quer devora-la e metabolizar seu talento. E tudo é motivo de lucro. Até seu desespero e depressão viram matérias de lixo jornalístico ao cair da tarde. Ela grita, encancara a dor em meio a voz alcoolizada e a maioria das pessoas está preocupada em saber quando o novo disco será lançado.
 
Estamira e Winehouse aparecem como faces de uma mesma moeda. Uma delas ficou exposta ao vento e a chuva, teve parte do seu metal corroído pelo chorume. A outra, ficou protegida das intempéries mas a substância que polia o metal não estava interessada nas propriedades de beleza e alegria. Tão somente o brilho era mantido pela busca de poder material…até que se foi a voz e a imagem.
 
Estamira agonizando num hospital…sozinha…um monturo de carne humana carcomida pelo lixo que ninguém mais queria. Winehouse morrendo sozinha no quarto de casa…a mente cheia de substâncias querendo fugir do lixo dos holofotes e interesses superficiais. 
 
Nós gostamos de buscar culpados. Quem matou Estamira? Quem matou Winehouse? Talvez uma fala de Estamira no documentário possa nos dar algum indício: "a culpa é do hipócrita, mentiroso e esperto…que joga a pedra e esconde a mão!".