NEURO-OBSESSÃO

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 "Chegou o momento de perguntar-nos se um corpo bípede, que respira, com visão biocular e um cérebro de 1.400 cm cúbicos é uma forma biológica adequada. Não pode com a quantidade, complexidade e qualidade das informações que acumulou; intimida-se com a precisão e a velocidade (…) O corpo não é uma estrutura nem muito eficiente, nem muito durável; com frequência funciona mal (…) Há que reprojetar esses seres humanos, torná-los mais compatíveis com as suas máquinas".

                                                                           Stelarc

 

 "Não se trata de temer ou esperar, mas buscar novas armas"

                                                                  Gilles Deleuze

 

 

    Governo sempre houve. Resistências também…

    "Que tipo de criaturas achamos que somos? De que forma somos governados hoje?" 

     Assim podemos fazer uma chamada para o que Nicolas Rose nos falou em sua conferência "Biopolítica e Neuropolítica – Governando as condutas na era do cérebro".

     No início dos anos sessenta aparece o termo "neurociências", a propósito dos estudos das fibras nervosas. O pensamento e as práticas da época são orientados por um olhar sobre a vida e a biologia que pode ser chamado de molar. Uma dimensão molar, muito diferente da que vigora hoje. De lá para cá, com o ilimitado upgrade tecnológico, passa-se por um "salto quântico": do molar ao molecular.

     De que subjetivação se tratava no século XX?

     A Psicologia e a Psicanálise faziam emergir a figura do "sujeito psicológico". Era a partir de uma espécie de espaço interno profundo – um "complexo psicológico" – que se projetavam as formas subjetivas. Num mundo formatado pelas disciplinas ( sociedade disciplinar ), a subjetivação emergia como uma interioridade. Os sujeitos eram estratificados para serem governados como uma espécie de rebanho, onde o imperativo de "governar a própria vontade" prevalecia como horizonte das condutas. As disciplinas se compraziam no afã de governar…Corpos treinados para o trabalho, crianças treinadas para obedecer…Ainda era possível alguma distância entre o poder exercido e o seu foco de ação. 

     Do psi ao neuro?

     As mutações contemporâneas que produziram um salto quântico do modo molar para o molecular projetam um olhar novo para o que somos. Não mais as repressões de corpos e mentes comandam a vida. A própria vitalidade é agora o foco do poder. Vitalidade individual e coletiva. Foucault fala de uma anátomo-política do indivíduo e das populações. Rose explicita em "The Politics of Life Itself" os eixos norteadores desta estratégia de controle sobre o vivo.

   Molecularização: controle da vitalidade no nível molecular.

   Otimização: não mais a ameaça de morte, mas a maximização da vida.

    Subjetivação: o indivíduo torna-se um ser eminentemente somático, onde a vida biológica assume o centro da cena.

    Expertise: experts biomédicos portam um discurso de verdade sobre os sujeitos.

    Bioeconomia: o biológico torna-se mercadoria. Fluxos de dinheiro nas transações de melhoria do soma.

     Verdade, poder e subjetividade são articulados no cálculo político das vidas planejadas e calculadas ao nível molecular. Passamos a ter uma forma molecular de pensar.

      A vida é reduzida então ao puro mecanismo dos processos químicos e materiais. Temos acesso aos processos micromoleculares, concebemos uma genômica, fazemos uma engenharia e uma reengenharia do viver. Rose lembra que na época da criação dos clones – Dolly – passou-se a nomear essa experiência como a "segunda criação".

     Tudo é possível do ponto de vista biológico? O horizonte é ilimitado? O poder é total?

      O cérebro é atomizado e as patologias mentais, ao serem "localizadas", passam a ter um estatuto de distúrbio molecular. Este neuroreducionismo "materializa" essas dimensões e o homem passa a ser igual ao seu cérebro!

      Uma segunda grande mudança ocorre quando descobre-se a grande plasticidade dos cérebros nos anos setenta. Pacientes acometidos de AVC recuperam funções e daí decorre a prática de modulações possíveis no decorrer da vida. Descobre-se a abertura do cérebro, possibilidade de transação com o ambiente desde a concepção.

       Passa-se a "ver" a mente no cérebro humano vivo. E ver o que acontece "ao vivo e a cores" produz uma transformação de nossa visão sobre o órgão. Pensa-se que o "mental" emerge do físico. Formulações risíveis como buscar o amor materno, o luto, o ódio, a justiça medindo níveis de oxigênio no sangue em uma RMI passam a acontecer no cenário destes modos de pensar. Proliferam as técnicas de intervenção de todos os tipos.

     Os novos "engenheiros da alma humana" não são mais os psicólogos e sim os neurólogos.

     

      A biopolítica hoje se ocupa de gerir o presente para produzir um futuro, segundo Rose. Movidos pela "sombra do futuro" devemos buscar evitar o mal, otimizando o capital humano. Detectar suscetibilidades ao câncer, por exemplo, é algo sem dúvida desejável por todos. Mas o que pensar de iniciativas que buscam identificar precocemente os comportamentos antisociais de um jovem na criança que ele é hoje? E intervindo na materialidade de um órgão? Programas com introdução de marcadores genéticos ( biomarcadores ) em crianças potencialmente perigosas?

     A mudança ontológica que emerge na fórmula homem= cérebro aponta para uma ética "somática", apagando todas as outras possibilidades da experiência humana, anteriores e futuras. Que mundo é esse?

 

 Iza Sardenberg