Conflitos na saúde e a tecnologia do controle

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Foto: Diário do Nordeste.

Relatos sobre a onda de processos de assédio moral, danos morais e pedidos de indenização de usuários e trabalhadores em meio às mudanças na gestão das jornadas e cargas horárias de trabalho, estão tumultuado a prestação dos serviços. Como esperado (e já relatado neste e em outros espaços) a introdução de sistemas de gerenciamento de informação como agendamentos de consulta, ponto eletrônico biométrico, protocolos de urgência e emergência, classificação de risco, prontuário eletrônico entre outros, interagem com elementos profundamente enraizados na cultura de cuidado e atenção na saúde desde o início do século XX. Portanto, anteriores ao SUS e a qualquer sistema mais organizado de atenção à saúde em nosso país.

Pela primeira vez no Brasil a cultura corporativa e o clientelismo estão sofrendo um ataque que não vem diretamente da sociedade. A tecnologia, sempre e cada vez mais onipresente nas terapêuticas do cuidado, agora está sendo introduzida na área da saúde enquanto forma de gestão do trabalho e da atenção desde o início deste século. Atualmente este processo está chegando ao auge. A base de dados que vai ou poderá unificar os dados da gestão do trabalho e da atenção está sendo implantada em todo o Brasil.

Porém a tecnologia não pode ser totalmente dominada. Ela surge no mundo como fruto do acaso e da busca humana por satisfação e bem estar. Pode ser controlada, mas apenas no sentido de mitigar seus efeitos nocivos sem abrir mão dos benefícios dela advindos.

De certa forma ela se porta mais como um ator. Um ator não social, anterior mesmo a sociedade. Um processo que pode ter, parcialmente, instituído a cultura humana. Ou seja, lidamos com um elemento instável que incide sobre as relações sociais de forma a revolucioná-las. Tem sido assim durante toda a história humana.

Embora a tecnologia disponível tenha tardado a chegar até as ações de gestão em saúde, o impacto cultural está se mostrando mais radical do que o esperado. Esta seja talvez a explicação para que os instrumentos de gestão eletrônica em rede tenham demorado tanto a serem usados na área da saúde pública em nosso país.

Tanto trabalhadores quanto usuários se relacionavam em termos culturais tradicionais. Informalmente arranjos eram praticados para que a relação entre prestação de serviços e a contrapartida em benefícios salariais e de condições de trabalho fosse estendida ao máximo. Os custos na qualidade da atenção sempre foram imensos. A luta pela instituição do SUS é em parte uma resposta a este tipo de efeito do clientelismo e corporativismo que sempre infestaram nossas políticas de saúde.

Vivíamos num contexto de poucos recursos materiais e humanos para a demanda histórica sempre crescente. Hoje uma série de fatores, relacionados em sua maioria a difusão da informação e aos recursos tecnológicos com incrementos constantes, criaram soluções para problemas antigos ao mesmo tempo em que geraram uma nova gama de áreas de cuidado e atenção que antes não existiam.

Uma vez que um novo recurso de cuidado seja adicionado aos que já existiam eles se tornam imediatamente indispensáveis e compõe a gama de direitos constitucionais que cada um e todos os brasileiros possuem. Gradualmente estes incrementos nas artes do cuidado e da atenção vão reproduzindo sua própria demanda. Coerentemente com o modelo de Estado de bem estar social que é o fundamento do SUS, a ausência ou indisponibilidade de uma forma de cuidado recém descoberta é um atentado ao direito a vida e a saúde.

Não obstante, o debate acerca da fabricação de diagnósticos está se acirrando. As condições socioculturais em mutação produzem sofrimentos artificiais que rapidamente tornam-se rótulos para permitir a constante troca de mãos entre o dinheiro investido na saúde e a remuneração de serviços e insumos como os medicamentos para doenças fabricadas. A referência a medicalização das relações familiares e da infância neste parágrafo é óbvia.

É deste contexto revolucionado, em que o SUS pretende-se cada vez mais humanizado e com menos iniqüidade, que emergem as imprevisíveis conseqüências de se aumentar o papel e o poder dos artefatos não humanos nas relações entre profissionais da saúde e usuários. Estas categorias, trabalhadores e usuários,  são, por natureza, assimetricamente intercambiáveis: Um trabalhador da saúde intermitentemente é um consumidor de serviços de saúde. O cidadão comum ocasionalmente poderá ser um trabalhador da saúde.

Então, em meio a reconexão de saberes e disciplinas em torno da integralidade e totalidade de cada ser humano, vemos surgir uma conflitualidade nova que antes estava encoberta por arranjos que visavam manter a iniqüidade em níveis ocultos.

Uma coisa parece certa: O governo pode deter muita informação sobre o modelo de atenção a saúde que promove. Mas atualmente o que mais sabe é para quem, como, onde e quando está remunerando a prestação de serviços.

O cruzamento destes dados com os da Receita Federal produzem um diagnóstico difícil de ser falseado. Com o valor investido na última década, e que não para de crescer, mesmo sendo insuficiente para as demandas da atenção, sempre tem sido possível falsificar horas extras, receber por jornadas não cumpridas e por serviços não prestados.

A interdição de certas práticas, como as citadas acima, tem gerado muita resistência. Esta conflitualidade está sendo exposta na crescente judicialização das relações de trabalho na saúde. Seja por conflitos ente médicos e seus já insubordináveis pacientes, sejam entre os trabalhadores e os gestores. Agora tudo é questão de vida ou morte, de saúde ou doença. A arena de embates se estendeu para todos os gestos e a era da boa vontade e do “jeitinho” parece ter chegado ao fim.

Se de um lado o trabalho em saúde está irremediavelmente proletarizado, de outro, o trabalhador aprendeu que o trabalho adoece. Parece que recentemente decobriu-se que viver é perigoso e a não mitigação das dores e sofrimentos do cotidiano em saúde é um crime por si só.

Em meio a todos estes questionamentos o próximo ano inicia com uma única certeza: não sabemos a extensão dos efeitos das mudanças em curso. Podemos caminhar para uma cronificação do conflito e do adoecimento nas relações de trabalho. Por outro lado, poderemos embarcar numa fase de colapso das estratégias de gestão, entre elas a PNH. O mais provável cenário parece ser o da gradual consolidação do Estado de proteção social representado pelo SUS.

Ainda que em meio a iniqüidades recorrentes e apenas em parte sanáveis. E isso provavelmente somente enquanto os ventos da economia continuarem soprando a nosso favor.

2012 virá, para o bem e para o mal, com o aprofundamento dos instrumentos do controle social a partir de artefatos não humanos. Façamos nossas apostas e mãos a obra!