Falando sobre Kevin

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Certas leituras exigem que façamos uma catarse. Mais precisamente uma espécie de lavagem da alma. Uma forma de partilhar a inquietação, não para dissipá-la, mas para produzir algo positivo a partir da dor  e do espanto diante do que parece impensável.

Assim, lhes trago uma resenha ligeira, que me livre do ar sufocante que uma leitura dessas exige que habitemos temporariamente. Do esforço de chegar a última página para levar o murro final do texto. E então ter que elaborar a leitura numa forma compartilhada de buscar compreender…

A narrativa do livro emerge de uma pesquisa sobre inúmeros casos semelhantes. Uma coleção de situações em que adolescentes levam a inata inabilidade para sentir empatia ao extremo de se expressar através do perpetração de assassinatos em massa. A autora opta por não falar em serial killer, acredito, para evitar a comparação com um tipo de psicopatia mais meticulosa, menos explosiva e mais identificada com adultos do que com adolescentes.

Então é preciso iniciar com a ressalva óbvia que Kevin é uma bricolagem de monstros particulares e muito reais. No entanto, como o cúmulo do cúmulo, Kevin é o Frankenstein dos Frankenstein. A comparação vem a calhar por que este monstro dos primórdios da cultura de massas moderna recebe o nome do "criador". Ou seja, Frankenstein é o nome do pai do monstro, o Doutor. Ele mesmo, o monstro, permanece sem nome, por ser ao mesmo tempo o acidente das partes que o compõe e o delírio louco de seu pai/criador.

Dito isto é preciso elencar algumas peculiaridades da ficção extremada e, simultaneamente, tão plausível criada por Lionel Shriver:

1. O que acontece a família de Kevin é soma de um fenômeno estatisticamente raro com uma série fenômenos comuns às famílias contemporâneas. A combinação desses fatores – o inusitado e o comum – faz com que neuroses conhecidas por quase todos os leitores, redunde na tragédia que constitui toda a narrativa e nos dilacera especialmente em seu final.

2. Porém (além das peculiaridades comuns do caso em que muitos de nós podem se reconhecer como pais ou como filhos) o fator mais importante e mais negligenciado é a condição neuropsíquica de um recém-nascido incapaz de desenvolver a empatia e superdotado, no sentido de que, sendo incapaz de estabelecer as trocas comuns entre adultos e bebês, é hábil para apreender seu ambiente a partir de uma rara capacidade de responder aos estímulos e aprender o mundo a partir da apatia.

3. A mãe confessa, ao final, ter tomado como oponente um pequeno bebê 15 vezes menor do que ela. Não é incomum que este lugar superdimensionado seja ocupado por futuros delinquentes ou pais dedicados, ou mesmo os dois papéis. Afinal, há muitos delinquentes que podem ser pais dedicados. O extraordinário consiste na capacidade e intensidade com que Kevin executa o papel delirado por sua mãe. A coincidência de sua predisposição inata acaba por constituir uma tautologia com o delírio da psicose puerperal da mãe.

4. Não importa o que tivesse ocorrido com a mãe antes ou imediatamente após o parto. Seres como Leonardo Da Vinci e Albert Einstein vem ao mundo raramente quando comparado à taxa média de nascimentos. Da mesma forma, há uma taxa esperada para o nascimento de irmãos siameses e de anencefálicos. No entanto, o que o ambiente em que Kevin cresceu proporcionou foi a agudização de um quadro já complexo desde o início.

5. Finalmente, quanto ao distanciamento do pai é possível perceber que como a mãe, ele foi vítima de uma captura pelo engessamento em pressupostos errados. Como Eva não se queixa de repetir a percepção de Franklin é corrompida por uma tendência ao arredondamento dos julgamentos. Ao passo em que ela é magnetizada pelo absurdo da situação em que vai cada vez mais se atolando, o pai de Kevin não consegue ver seu filho de forma diferente de como vê a si mesmo: Tudo se passa de acordo com a média. Num país abastado e muito orgulhoso nos anos de infância e adolescência de Kevin, ser mediano era mais do que suficiente.

Tudo o que Franklin via aontecer com Kevin era julgado em termos de uma média confortável e esperada para as crianças e os pais. Os EUA, a nação que vencera a guerra fria, era vista por seus cidadãos como a maior potência mundial já vista na história da humanidade. Como alguém poderia se ressentir de ser mediano e comum entre os melhores do mundo?

No Brasil conhecemos os primeiros sintomas deste tipo de epidemia mundial das explosões de violência infantil e adolescente. A mídia contribui para que o raro pareça ser o mais adequado para ser a marca de um tempo. Pode ser que seja assim mesmo: Que as margens definam o território, como a linha de fronteira define uma nação. Mas não deve ser tão simples.

Precisamos, então, atentar que mais do que casos raros e isolados a violência midiática apenas amontoa mais casos sobre a estatística geral dos assassinatos e mortes por causas violentas. Há jovens capazes de matar numa quinta-feira uma dezena de colegas dentro de uma escola. Mas há homicidas que vão matar enquanto viverem em disputas por pontos de venda de drogas ao longo de vários anos ou mesmo décadas e estes não são tão raros.

Tudo dimensionado com mais rigor e veremos que há muito o que fazer para conter os humanos dentro de seu frágil casulo civilizado e manter a barbárie contida em níveis controlados.