Humano, insuficientemente humano.

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Reflexão sobre o comum, o médio, o extraordinário e o universal nas relações sociais.

Minha vida de técnico em enfermagem, professor do ensino fundamental na rede municipal e militante do SUS é, como todos podem imaginar muito agitada e dinâmica. O lugar simbólico destas duas profissões remete ao sacerdócio e a expiação de pecados. Temos um efeito das rápidas transformações na ordem e modelo dos núcleos familiares na desvalorização constante daqueles que exercem o cuidado. Como os valores estão particularmente em suspensão ou em processo de modificação incessante há várias décadas, vemos que um subtexto atravessa os discursos e as práticas.

Quanto mais longe os profissionais ficam do objeto de seu trabalho, o doente na saúde e a criança na educação, mais a carreira profissional surge como portadora de valor simbólico. O contato com as pessoas comuns é tido como signo de fracasso ou estagnação na carreira. O efeito disso é um gradual e crescente distanciamento entre o saber acadêmico e a sabedoria das ruas. Em outras palavras, um distanciamento entre a teoria, sua aplicação e a realidade.

Toda a trajetória profissional se reveste de um aspecto político, no sentido de produção do bem comum. Mas ao mesmo tempo individual e pessoal no sentido de revelar um roteiro original que narra a existência e a singularidade de quem faz do trabalho uma forma de distinção e ascendência sobre os demais. É muito difícil conciliar estes dois aspectos. Na maioria das vezes um se submete ao outro.

A consequência disso é a perda do valor simbólico do lugar comum. Apenas o extraordinário é valorizado. Ser professor substituto, não ser médico, não possuir titulação acadêmica, lidar com os humanos e não com símbolos de sucesso e vitória é um demérito inscrito no subtexto dos discursos de valorização do ser humano. A contradição evidente é que o comum se reveste de certa viscosidade fluída e concreta a ser evitada em nome do distanciamento das realidades e da realização do extraordinário.

Como advertem nossos mestres podemos equalizar esta contradição que sempre se renova, retornando. Subindo e descendo a rampa. Indo e voltando dos centros, das capitais, de Brasilia, da Europa, da universidade, dos gabinetes.

Meu novo post na RHS é uma escrita das conversas que mantenho com o presidente do SINDISAÚDE-RS, Gilmar França. Como de (mau) hábito posto o texto cru e vou fazendo correções ao longo dos dias seguintes. Por isso sou grato aos meus primeiros leitores. Acredito que um texto tem alma. E que é esta que nos faz retornar a leitura inúmeras vezes. Então, posso me consolar com o pensamento de que quem é tocado pelas ideias retorna a elas eventualmente.

O texto tem esta marca constante de indignação perante a desigualdade. Um toque de ressentimento, porque sinto mesmo isso repetidamente. Mas arejado por uma constante renovação da leitura sobre as desigualdades.

O dilema do SUS é claramente o resquício do pensamento mágico em nosso pensamento médio. Certamente de nossas classes médias. A ideia de que podemos fazer a atenção universal e integral com os recursos que nossa riqueza permite investindo tão pouco em saúde é de um cinismo e de uma perversão sem limites. Temos uma medicina de primeiro mundo. Médicos brasileiros que vivem com salários de médicos europeus. Juízes que tem vencimentos similares ou maiores que o de magistrados de países que investem em saúde recursos na ordem de trilhões de dólares. Aqui investimos menos de 50 bilhões de dólares ao ano.

Ressalvando o fato de que temos um SUS melhor em resultados com esse nível de investimento, do que os EUA que investem 20 vezes mais, é injusto uma justiça de terceiro mundo coexistindo com uma magistratura de primeiro mundo.

Do mesmo modo é injusto um mundo do trabalho em saúde com tantas desigualdades: Médicos com remuneração básica pouco inferior a do primeiro mundo e auxiliares de enfermagem vivendo em situação de mera subsistência.

O comum da humanidade se vê então, desumanizado. Apenas os extraordinários é que tem acesso a verdadeira relevância simbólica, apoiados por um preconceito recalcado. Sei que minhas próprias palavras parecem buscar o lugar do original, do único e do singular.

Mas esta hipocrisia é assumida. Se em mim é certo que ela existe, quero ser o primeiro a voltar a palavra para meu próprio corpo. Meu prêmio é o retorno ao humano. Sair do simbolismo para habitar o relativismo incômodo, mas menos absoluto do que a certeza extraordinária.

É essa ordem de indignação que anima o texto que indico para leitura abaixo: