Parrêsia – abertura e coragem da verdade entre médico e paciente

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O livro "A Tragicomédia da Medicalização", de José Ramos Coelho – publicado recentemente pela Sapiens – faz uma cartografia dos caminhos trilhados pelas práticas médicas desde os gregos até nossos dias. O prazer da leitura aumenta a cada página, numa narrativa provocadora das mais variadas e contagiantes associações entre filosofia, cultura, ciência e medicina.

Proponho aqui que nos deixemos embalar por suas belas construções. Uma delas nos transporta para uma formulação da relação médico-paciente inspirada pelo conceito de parrêsia. É "a abertura do coração, é a necessidade entre os pares, de nada esconder um ao outro do que pensam e se falar francamente. Noção (…) que foi para os epicuristas, junto com a amizade, uma das condições, um dos princípios éticos da direção dos indivíduos. A abertura do coração deve ser entendida não apenas no que concerne ao falar, mas também em relação ao ouvir" ( Foucault ).

Fala Ramos:

"Qual é o escopo da atividade de um psiquiatra? Reside em enunciar diagnósticos precisos e adequados aos sintomas e sinais apresentados pelos seus pacientes, podendo a partir daí indicar uma terapêutica apropriada. Um diagnóstico correto ou verdadeiro é, pois, aquele que se adequa ao problema do paciente. E, pelo contrário, um diagnóstico falso ou equivocado não mostra nenhuma conformidade com o que o paciente apresenta.

Mas como é possível pensar a concordância entre o diagnóstico psiquiátrico e o distúrbio ou perturbação do paciente, se este amiúde age como um mudo diante de um surdo? Sabendo-se que os psiquiatras não dispõem, ao contrário dos médicos, de testes ou exames objetivos que comprovem ser esta ou aquela pessoa portadora de uma síndrome ou não, em que funda a validade dessa concordância?

O diagnóstico só poderia ser a expressão do ser enfermo do paciente se este se abrisse para o profissional, se saísse de seu mutismo numa PARRÊSIA e se revelasse para o outro tal como é. Através dessa abertura, o paciente – ou melhor, o experenciante – expressaria os motivos reais do seu sofrimento e dos seus problemas. Se, como sustenta Heidegger, somente a partir desta abertura é possível a conformidade da enunciação, então "aquilo que torna possível a conformidade tem um direito mais original de ser considerado como a essência da verdade." ( 1970, p. 29 )

E qual é o fundamento dessa possibilidade de abertura do experenciante para com o outro que o escuta? O fundamento dessa possibilidade de conformidade reside na liberdade de poder expressar e dizer o que deve ser dito. "A essência da verdade é, [ pois ] a liberdade" ( 1970, p. 30 ). A questão do fundamento da verdade é então deslocada para a subjetividade do experenciante.

E qual é a essência desta liberdade? A reflexão sobre as relações entre a verdade e a liberdade nos conduz ao problema da essência do homem que se entrega livremente a uma abertura onde se desvela. E aqui temos um novo conceito: a verdade como alethéia ( a = negação; lethe = véu ), ou seja, desvelamento do sujeito.

Um verdadeiro conhecimento sobre o homem e seus conflitos só poderia se fundar a partir da verdade originária por ele desvelada, e não através de uma suposta adequação entre o que é visto e observado pelo psiquiatra e o diagnóstico formulado com base nestas observações".

 

Ramos, com a sua coragem da verdade, nos mostra a luta que se trava entre "surdos e mudos" na relação que as práticas psiquiátricas contemporâneas instauram entre médicos e pacientes. Mas, no mesmo movimento, aponta para a abertura de possibilidades de saída deste impasse: lembra-nos do trabalho incansável de Foucault de buscar "pensar diferentemente", olhando para o passado da humanidade ( gregos ) em busca da invenção de um futuro.

 

Iza Sardenberg