A Estatística do Sentimento

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Podemos ficar escondidos nas estatísticas. Podemos usa-las como escudo e dizer que estamos respaldados pelos sagrados números da ciência. Podemos insinuar que a realidade social obedece a realidade da física de Newton ou Galileu e reduzirmos os homens e sua complexidade à fervura da água no nível do mar. Não contentes, podemos dizer que as coisas melhoraram muito pois no passado recente tudo era pior.  Morrendo de tédio nos ônibus que se arrastam pelas ruas esburacadas, podemos bem-dizer o transporte coletivo pois antigamente existiam apenas os bondes puxados por burros. Atônitos observamos os médicos numa unidade de emergência fazendo um coração bater novamente e oramos à tecnologia da ciência esperando ansiosos pelos porcos dos quais tiraremos nossos novos fígados e rins enquanto uma mulher dá a luz no corredor por falta de leitos na maternidade. Na fila do cinema agradeço às cores mais vivas e aos efeitos especiais que restituem o Titanic às vagas do oceano rumo ao triste iceberg em cada nova sessão. Nosso umbigo pequeno-burguês agradece a liberdade da comida industrial e ao DVD, compõe odes a Internet ao mesmo tempo em que admira a beleza plástica da estética da rede globo. Viva as videocassetadas e a livre escolha de ver o sofrimento humano satirizado pelas filosóficas frases de Fausto Silva!

 No entanto, nos esquecemos que os burros abandonaram as ruas, que os barbeiros não fazem mais sangria, que os gramofones são encontrados apenas nos museus. Os que vivem hoje perderam a dimensão do pior ou do melhor que já existiu mas, parece inegável que alguns vivem, nas condições de hoje, muito melhor do que muitos. É esta a questão ética fundamental a ser discutida! Por que os filhos de todas as pessoas não podem ter a mesma qualidade de ensino que meu filho desfruta em sua escola? O mesmo vale dizer para saúde e lazer. Enfim, por que sacramentamos o direito a uma melhor qualidade de vida apenas para os que possuem mais dinheiro e assumimos isso como normal e/ou natural? Isso é justo?

O mundo de hoje parece melhor que o de ontem, principalmente se da nossa posição olharmos a cidade como num postal, pontinhos multicoloridos. Vemos luzes e manchas que, mais próximas, podem se
transformar em pessoas. Basta um pouquinho de boa vontade. As pessoas dos cartões postais possuem corações e sonhos. Parte dessas pessoas não compartilham dos nossos mundos coloridos de cartão postal. Não conhecem estatística e não tem idéia que a mortalidade infantil caiu no país todo nos últimos anos embora tantos anjos sejam enterrados sem atestado de óbito por este Brasil de tantos contrastes.

A Estatística não existe sem a ação dos homens que a alimenta de números e que a utiliza para mostrar essa ou aquela “verdade”. Sua forma de construção depende dos arbítrios que, em alguns momentos, pendem para a discussão técnica e, em outros, vestem-se do manto da dissimulação mais abjeta. Basta agorinha mesmo adentrarmos no site do MEC e descobrirmos que “estatisticamente” o país tem uma excelente qualidade de ensino, com  a credibilidade do Barão de Munchausen. Eu não tenho coragem de dizer que o mundo de hoje é melhor que o de ontem para aqueles que são a estatística viva. De que adianta para o seu José diminuir a mortalidade infantil se ainda suas crianças morrem de diarréia? Como alentá-lo com dados tão maravilhosos? Como explicar aos miseráveis que o maldito desvio padrão insiste a assombrar suas vidas? E de que adianta a média de vida aumentar se o quantitativo não refletir necessariamente numa melhor qualidade de vida? Resumindo: para que os homens vivem mais tempo se uma pessoa é considerada obsoleta pelo sistema aos 40 anos? Se duvidarem basta perguntar a qualquer pessoa que perdeu o emprego nessa idade.

Tudo bem! Não se preocupem. O desemprego diminuiu! Os número são exibidos com a precisão obsessiva de uma Mirian Leitão enquanto a gente fica com um ar  meio acabrunhado se perguntando de que planeta esses senhores notáveis vieram. Claro, ao reclamarmos seremos acusados de retóricos até porque esse mundo é feito por números. Todos os dias conversamos com eles. Ontem mesmo vi uma porcentagem subir no ônibus enquanto mandava beijos para uma dízima periódica. Assim caminhamos por uma multidão de balancetes que choram ao ver “A Paixão de Cristo”. Eu mesmo namoro com uma calculadora científica depois de ter passado uma terrível experiência com a senhorita probabilidade.  

Mas me deixem contar uma história. Vivo no Ceará ha 14 anos. Tenho sido massacrado pela propaganda institucional dos Governos que se sucedem. Dezenas de fábricas do sul do país aportam nas cidades do interior do Ceará, famintas de mão de obra barata e isenções fiscais. Da noite para o dia reestruturam o modo de vida das pessoas. Antes, seres explorados nas brutais relações do campo e do comércio incipiente. Agora, treinados para serem operários com salários em torno dos 600 reais em média, sem organização sindical, com sobrejornada mal remunerada, com direito a demissão sumária pela mais leve reclamação das draconianas condições de trabalho. Os problemas de saúde agora são de outra ordem. Explodem o alcoolismo, problemas relacionados às Lesões por Esforços Repetitivos (LER), aumento da prevalência de doenças cardiovasculares e problemas gastrointestinais. Os números sinalizam para novas formas de atuar no campo da saúde, mas parecem não revelar que estas formas de atuação acontecem e/ou são estruturadas a partir da maneira como os grupos sociais em conflito se organizam para implementar seus interesses. É interessante a magia dos números. Se por um lado a vida parece melhorar, por outro lado, o sofrimento adquire um matiz novo pelos interiores do Ceará.

Podemos assim dizer que a média de vida no país aumentou nos últimos anos, mas explorando os números, poderemos descobrir que os ricos ainda vivem mais que os pobres e que estes vivem mais que os miseráveis. Ser ou não indiferente a isso é a questão fundamental e não ficar feito um burro diante de uma catedral maravilhado diante do aumento da média de vida. Da mesma maneira, podemos olhar os trabalhadores do interior do Ceará e dizer agora que sua vida “melhorou” – pois as relações no campo eram mais brutais – e lavarmos nossas mãos frente relações de exploração econômica já que as pessoas são “livres” para escolher onde e como trabalhar, embora um dos agentes que negocia seja a guilhotina e o outro o pescoço.

Faz um tempo conheci o porteiro da noite no condomínio de uma amiga. Estava na guarita e, do lado dele, dezenas de livros. Perguntei o que era aquilo e ele disse que o garoto do apartamento 202 havia deixado ali para ser jogado no lixo. Disse ainda que ia levar alguns para casa. Perguntei se podia dar uma olhadinha. Com sua autorização, fiquei com uma das peças do lixo chamado “História do Egito Antigo”, uma edição em capa dura de 1966 com 689 páginas. Ele segredou-me que era analfabeto, mas que já possuía mais de 200 livros, peças de lixo recolhidas em outros condomínios. O porteiro é mais um pontinho nas estatísticas que os números escondem. Ele é mais um dos despossuídos que não serão alentados pelas diminuições mais ou menos tópicas que poderão ocorrer nos próximos anos na taxa de analfabetismo, um “sem letras” amante dos livros. Já comecei a alfabetizá-lo. Meu gesto pode fazer um bem danado ao meu espírito e à vida do porteiro. O problema é que ele não irá refletir nas estatísticas. A saída dessa tragédia de números e discussões vazias é perceber claramente que os números na verdade são abstrações de pessoas e que, para alterá-los, dependemos fundamentalmente de políticas públicas que atuem sobre as pessoas que refletem os números.

Certa feita um jovem conhecido como Karl Marx, que desejava ardorosamente mudar o mundo, disse que devíamos partir dos indivíduos vivos e concretos para melhor compreender o que os homens faziam em sociedade e como se organizavam para suprir suas condições de existência. Se agora mesmo fizermos isso poderemos ver pessoas sofrendo, seres humanos na situação de mais absoluta indignidade. Enquanto as pessoas sofrerem por situações que possam, efetivamente, serem remediadas; de que adianta os números diminuírem se eles funcionarem como um lenitivo que minimiza a minha capacidade de sentir o sofrimento do outro?