Cantando Baião

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Sou enfermeira do PSF de Natal. Recebi da minha irmã, este relato acerca de sua experiência como usuária do SUS:

 

Os amigos me diziam que era o climatério. Me viam de fora, assim de cabelos brancos, cansada da vida… A família enxergava diferente, me conhece por dentro, me vê ainda na juventude, não percebe que o tempo passou. Dizia que era um desequilíbrio hormonal. E eu me vi sangrar desde o início do ano, consultando um e outro até conseguir ser atendida pela ginecologista de um PSF.

Cada passo que eu dava era como se retornasse uma fase da minha vida e eu andava para trás revivendo aquela primeira vez em que “fui moça”, pronta para namorar. E depois, aquela outra vez, grávida do filho que veio. E depois mais outro…

E agora vêm e me dizem que tenho que fazer uma curetagem? Pensei que fosse coisa de mulher parida! Foi quando pude constatar a minha velhice: o meu endométrio enlouquecera, caducara , intrigara-se da mãe do corpo, queria ir embora…

Como isso podia acontecer, se dentro de mim pinotavam os sonhos da adolescência?

O fato é que, para o mundo, a vida se resume em duas fases fisiológicas: antes dos quarenta, onde tudo é promissor – parir, construir, plantar em terreno fértil; e depois dos quarenta: vida cheia de lembranças, onde suas promessas, partos e construções são enterrados na aridez do tempo.

Briguei então com o mundo porque ainda me restavam milhões de vontades e de promessas. Briguei para que ele não teimasse em me fazer essa curetagem.

Sem consultar mais ninguém resolvi ir a uma maternidade pública. Lá eu descobri que me tornara também invisível. Ninguém me olhava. Com monossílabos e fichas registravam os procedimentos. Para eles a minha história não interessava; sabiam de dramas bem piores que o meu. A minha dor não chamava atenção, era uma dor só minha, grande, sem dimensão; para os outros, coisa pequena, sem valia alguma. Fiquei pensando na tristeza que é ter de acostumar-se à dor alheia, ter de seguir caminhos adversos ao coração, impostos pela praticidade e condições, que não dão lugar a quaisquer sentimentos: “Senhora, não é aqui, seu caso é ambulatorial.” “Senhora, não é aqui, seu caso é na urgência.” “Senhora, seu caso deve ser encaminhado para Parnamirim” “Senhora, não recebemos solicitação de PSF”. “Senhora, por que não foi para o Santa Catarina?”

E eu passei toda a manhã andando de um lado para o outro. Cada porta que se fechava arrancava um pouco da minha dignidade. Diagnóstico: curetagem preliminar.

Por um momento me vi esmorecer. Depois retomei as forças. Tinha um pai a chorar no banquinho do portão de saída. Segurava o caixãozinho do filho morto no colo. Aquilo sim, era sofrimento. Ninguém fazia nada, só passava, nada mais podia ser feito. E eu senti aquela dor como se fosse minha. Para onde ia aquele homem? Por que esperava tanto? O que lhe faltava além do filho? Por que chorava ao vento, sob o calor daquele sol impiedoso do meio dia? Cadê o funeral? E os parentes? E as flores? E as orações? E a dor repartida? Teria que aguardar a ambulância do “prefeito” do interior.

Peguei carona naquela cena. E voltei para a urgência, exigindo mais uma vez da saúde pública o cumprimento do seu papel.

Finalmente fui encaminhada para o andar de cima, já com aquela veste que só possui a parte da frente. Sabe aquelas bonecas de papel que a gente recorta os vestidos para enfeitá-la? Era eu. Vi o resto da minha dignidade escorrer pelo meu traseiro exposto aos transeuntes daqueles corredores que percorri, até chegar a uma cadeira de plástico em frente à sala cirúrgica.

Num minúsculo quarto ao lado cerca de dez mulheres sentiam as dores do parto, algumas sentadas em cadeiras por falta de camas. Existia em cada rosto a ansiedade e alegria do primeiro filho justificando e amenizando a dor sentida. Existia uma cumplicidade nascida da sofrida espera. “Que Nossa Senhora do Bom Parto lhe proteja” Uma desejava as outras. Chorei quando comigo expressaram o mesmo desejo. Eu, nos meus quase cinqüenta anos, juro que senti meus filhos homens feitos mexendo na minha barriga. Naquele ambiente crescia entre os pacientes uma solidariedade que não interessava, não constava nos prontuários nem nos livros de anatomia e patologia.

Até as sete da noite fiquei a observar aquele mundo. Os residentes passavam com livros debaixo do braço, entravam e saiam de salas como se fossemos partes de uma monografia, posologias da saúde curativa, instrumentos de aprendizagem. Senti saudades da preventiva, quando os agentes de saúde nos visitavam, batiam à nossa porta, tomavam cafezinhos conosco; ora amargos, ora adoçados com nossa situação de vida… Quando as enfermeiras formavam grupos no bairro e faziam reboliço na nossa alma, construindo estratégias que nos tornasse mais gente, a partir das nossas histórias.

Para cuidar de gente, principalmente na fragilidade da doença, é preciso comungar com as suas dores e medos, sentir-se parte confiante daquela dor. Ter consciência que é nessa comunhão que a gratidão passa a ser divina e eterna. Sem isso ninguém mais consegue definir humanidade nem misericórdia.

Lá pelas tantas, contando os pingos que caiam preguiçosamente nas minhas veias, eu já não sabia o que doía mais. Teimava em não chorar quando olhava para a minha mais recente amiga adolescente com o feto morto há três dias na barriga, indo e voltando para o interior. Não conseguia me conter. Naquele dia, dividimos as mesmas cadeiras de bar e o mesmo suporte de soro. Resignada ela só se assustava e arregalava os olhos cansados quando ouvia a minha retórica de direitos.

Fiz baderna naquele corredor. A ambulância que a trouxe retornara às três e meia da tarde, já eram sete da noite. A maternidade não tinha como acomodá-la até o dia seguinte. Assegurei-lhe que a levaria para minha casa, que ela só sairia dali depois de feita a curetagem. De tanto reclamar decidiram improvisar uma cadeira para que ela passasse a noite.

Fiquei a imaginar que dor doía mais naquela menina. Fiquei a arrancar as cláusulas das leis desse país que falam tanto em direitos à assistência. Fiquei a conjeturar novas leis que obrigassem os responsáveis pela prestação de serviços públicos e governantes a buscarem assistência médica somente nos serviços por eles oferecidos.

Hoje, em meio às minhas aulas de geografia, falo dos serviços de saúde. Conto a minha história. A mesma história da nossa gente. Faço com os meus alunos essa curetagem. Ponho nas mãos dessa geração internet, dancing e coca-cola a responsabilidade dessa mudança. E feito cabocla véia do sertão, falo de gente, de pelejas e de baião: “Luiz, respeita Januário”.

 

Fátima Abrantes.

Natal, 23 de Julho de 2008.