20 anos da Constituição

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Leia abaixo artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo nesta segunda-feira (6) sobre os 20 anos da Constituição Federal. O texto destaca o SUS como uma conquista que "está sendo efetiva em transformar o Brasil em uma democracia social em vez de uma mera democracia liberal".

 

20 anos da Constituição
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

A Carta foi o resultado do grande pacto nacional que se formou nos anos 70 e levou o Brasil à democracia em 85

 

A Constituição de 1988 está completando 20 anos. É uma Constituição equilibrada, democrática e social, que atende aos valores e aos objetivos políticos de autonomia, liberdade e justiça social partilhados pelos brasileiros. Foi criticada principalmente com base no neoliberalismo – a ideologia fundamentalista de mercado que se tornou dominante no Brasil um pouco depois da sua promulgação, e de cuja irracionalidade a crise financeira atual é mais uma demonstração.

A Constituição brasileira foi o resultado do grande pacto político nacional, popular e democrático que se formou no final dos anos 1970 e levou o Brasil à democracia em1985. Esse pacto estava baseado em duas demandas centrais da sociedade brasileira – a democracia e a diminuição da radical desigualdade social existente no país. Graças à Constituição de1988 e ao empenho dos brasileiros, avançamos nesses dois pontos.

Duas críticas foram comuns: de um lado, ela seria "detalhista"; de outro, "irrealista". Ainda que todas as constituições modernas sejam longas, a nossa exagerou nesse ponto. Por isso, deveria possibilitar um processo de emenda menos rigoroso do que o atual. Para ser coerente, não deveria ter cláusulas pétreas (um conceito antidemocrático que apenas facilita o ativismo do Poder Judiciário), mas uma distinção clara entre as normas fundamentais, que exigem três quintos do Congresso, e as demais normas, que poderiam ser emendadas com maioria absoluta.

Mesmo sem essa mudança, porém, o fato é que o Congresso tem se mostrado capaz de emendar a Constituição – algo que é essencial para sua legitimidade e efetividade. Se há alguma base para a crítica do detalhismo, o mesmo não é possível dizer quanto à acusação de irrealismo – de que não haveria possibilidade econômica de garantir na prática os direitos sociais.

Ainda não foi possível transformar em realidade todos os direitos previstos nessa Carta Magna, mas a garantia de muitos deles mostra que ela está sendo efetiva em transformar o Brasil em uma democracia social em vez de uma mera democracia liberal. A implementação do direito universal aos cuidados de saúde é talvez o exemplo mais significativo.

Enquanto uma democracia liberal como os Estados Unidos deixa 50 milhões de habitantes sem nenhuma cobertura, não obstante sua riqueza, todos os brasileiros estão protegidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde) – um sistema razoavelmente efetivo e eficiente. Custa cerca de US$ 1 por habitante por ano, e garante atendimento de saúde a praticamente toda a população brasileira.

Dado seu custo, sua qualidade está longe de ser perfeita, mas as pesquisas mostram que seus principais críticos são os ricos ou quase-ricos que não o utilizam; os pobres estão razoavelmente satisfeitos com ele. O êxito do SUS foi resultado de uma grande mobilização política da sociedade brasileira e da adoção de um sistema descentralizado e gerencial de administração, mas a previsão do direito universal à saúde na Constituição foi essencial
para que ele se transformasse em realidade.

Como é próprio às grandes cartas, a Constituição de 1988 foi o resultado autêntico de um grande pacto nacional. Seus valores sociais e democráticos e sua qualidade jurídica foram em alguns casos prejudicados pelo entusiasmo da transição democrática e pela pressa em vê-la terminada, e por isso foi necessário emendá-la – nem sempre na melhor direção. Temos, porém, bons motivos para dela nos orgulharmos.

 

*LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 74, professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney) , da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência eTecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".