A difícil equação entre Medicina e Psicanálise

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A Gazeta Mercantil desta segunda-feira (3) traz uma interessante entrevista com o psiquiatra Durval Mazzei Nogueira Filho que dialoga em muita coisa com as propostas da Política Nacional de Humanização. Clínica Ampliada, protagonismo do sujeito, produção de subjetividade e medicalização da vida são alguns dos temas levantados durante a conversa. Vale uma lida!

A difícil equação entre Medicina e Psicanálise

No mundo de hoje, cada vez mais marcado pelo imediatismo, as pessoas acreditam que podem trocar uma ação de reflexão sobre as próprias mazelas e virtudes e o esclarecimento de sua própria condição de sujeito pelo uso de um fármaco. Esta é a opinião do psicanalista e mestre em Psiquiatria Durval Mazzei Nogueira Filho, autor do livro Psicanálise e Medicina (editora Escuta), lançado recentemente. “Se dormimos apenas sob o efeito do Rivotril, para que vamos nos dedicar a um trabalho psicanalítico? Não é exatamente uma decisão inteligente, mas pragmática e resolutiva. Até o fármaco começar a falhar”, afirma Nogueira Filho nesta entrevista à Gazeta Mercantil. “Medicamentos são eficazes desde que devidamente acompanhados, mas é o tratamento psicanalítico que pode revelar ao sujeito a possibilidade de implicar-se em sua história e abandonar as amarras imaginárias que o prendem e o tornaram um errante”, acrescenta o especialista, também autor de Toxicomanias, Conceito de Psiquiatria, Sexo ou Sexualidade: O Olhar da Psicanálise, entre outros.

Gazeta Mercantil – Hoje é comum as pessoas se autodenominarem
portadoras de depressão, dizerem que têm transtorno bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Da mesma forma, nomes como Rivotril e Fluoxetina também passaram a fazer parte do vocabulário corrente. A que o senhor atribui a expansão do uso de fármacos para qualquer manifestação, hoje em dia?

A resposta tem que ser dividida em duas. Primeira: as medicações exibem eficácia. Muito distante do que é usualmente declarado, mas bem recomendadas e devidamente acompanhadas, pelo período mais curto possível, colaboram claramente com o tratamento. Segunda: um dado cultural é decisivo quando as pessoas acreditam que podem simplesmente trocar uma ação de reflexão, de trabalho com as próprias mazelas e virtudes, de esclarecimento de sua própria divisão de sujeito pelo uso deum fármaco. O dado cultural mais claro é a pressa em obter algum resultado. Se não durmo e sob o efeito do Rivotril, durmo, pra que raio vou me dedicar a um trabalho psicanalítico? Não é exatamente uma decisão inteligente, mas pragmática e resolutiva. Até o fármaco começar a falhar.

Gazeta Mercantil – A prescrição de Fluoxetina por médicos de outras especialidades faz parte dessa generalização, por exemplo. O que o senhor acha disso?

Observamos, na verdade, quando médicos não-psiquiatras receitam psicotrópicos, três pontos: a intenção do médico em mostrar-se sábio e holístico ao tratar o paciente que manifesta uma queixa que não é de sua área; a facilidade prática em receitar estes fármacos e a relativa segurança destes medicamentos; e o trabalho de propaganda. Este trabalho simplifica a clínica: se alguém está sem vontade de fazer o que gosta, prescreva um antidepressivo. É um raciocínio pobre, mas satisfaz a pressa da freguesia.

Gazeta Mercantil – De alguma maneira, essa popularização – ou
banalização – do uso de medicamentos para aplacar sofrimentos
psíquicos contribuiu para aumentar a aceitação social desses
pacientes?

Creio que não. Até a recente “lei seca” brasileira quer incluir na proibição de conduzir veículos o uso de psicotrópicos. É um detalhe que revela o prejuízo, não obstante a segurança, que tais medicamentos produzem em quem os usa. Não são, definitivamente, pedacinhos de céu que a ciência nos oferece na drogaria da esquina.

Gazeta Mercantil – O senhor afirma, no livro, que a tranqüilidade
produzida pela “harmonia farmacológica” demonstra, mais cedo ou mais tarde, a ineficácia. Por quê?

A razão principal é a maleabilidade e a capacidade adaptativa da bioquímica cerebral. Qualquer substância usada correntemente perde a eficácia. Apesar das abissais diferenças entre o uso de remédios e o abuso de drogas, desde a bioquímica cerebral, adapta-se tanto à droga legal quanto à ilegal. Este fenômeno chama-se tolerância.

Gazeta Mercantil – Uma curiosidade: como o senhor explica o efeito placebo em pacientes portadores de aflições com forte componente psicológico?

A medicação temum aspecto mágico-cultural e um aspecto bioquímico-científico. Por mais que os farmacologistas procurem isolar os dois fatores (o aspecto mágico-cultural é a pedra no sapato de qualquer teste clínico tanto de psicotrópicos quanto de analgésicos), quando um médico prescreve a medicação, este ato científico está envolvido por uma névoa de encantamento. Por esta névoa, penetra o sentido mágico-cultural do fármaco. Além de existirem pesquisas (citadas no livro) que mostram que placebos podem, sim, ser eficientes.

Gazeta Mercantil – Diante de tanto poder que os medicamentos conquistaram no mundo contemporâneo, é possível uma convergência entre a medicação e a psicanálise?

Esta é a intenção do livro. Há um aspecto teórico psicanalítico sobre o sintoma: ele, por mais decifrável que seja pela interpretação e pela pontuação, tende a repetir-se, a disfarçar sua apresentação. Mais que isso: há um suporte pulsional, isto é, no real do corpo, do sintoma que resiste à decifração. Por esta via, caso o fármaco não surja no discurso como “a solução”, ele pode colaborar na desamarração do sintoma, permitindo que trabalhemos – a analista e o analisante – melhor com ele.

Gazeta Mercantil – Qual o papel de um e de outro na busca de
uma vida mais equilibrada para esse tipo de paciente?

O conceito de “doença” em psiquiatria e psicanálise é controvertido. Mesmo os formuladores dos grandes manuais diagnósticos – Classificação Internacional das Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS), e Diagnostic Statistical Manual (DSM), da Associação Psiquiátrica Americana (APA) – resistem em usar o termo “doença”. Preferem “transtorno” ou “desordem”. Não há uma base biológica definitiva para as alterações mentais, não obstante o montão de pesquisas que buscam tal fundamentação. Dizer que “não há fundamentação biológica para as doenças mentais”, significa que não é identificada uma alteração cerebral específica para cada uma das manifestações psicopatológicas. Bem como não há a identificação de um gene que defina o destino deletério daquela pessoa. Na verdade, esta é uma boa notícia. Indica que para nos constituirmos como sujeitos de uma história temos de, efetivamente, considerar nossos laços amorosos, amistosos, familiares, sociais e tantos mais que quiserem pensar. Indica que o ser é mais aberto ao mundo que a ideologia biológica – sustentada na genética, no evolucionismo e na concepção de que o cérebro antecipa o pensamento e a ação – gostaria que fosse.

Gazeta Mercantil – Se na Psiquiatria não há comprovação objetiva, os fármacos são receitados pelo médico com base em quê?

Com base no que o discurso epidemiológico chama de confiabilidade. Este índice é definido por avaliações de pesquisas (metanálise) e por consenso entre pares. Como se vê, não há um discurso claramente validado que sustente qualquer tratamento. Procurando descrever melhor: há uma série de testes clínicos, de ensaios com medicamentos que são publicados aos borbotões nos periódicos especializados. Todos estes testes e ensaios obedecem às categorias diagnósticas descritas no CID ou no DSM e cada um destes testes e ensaios pesquisa um número necessário de pacientes para chegar a conclusões, mas é um número limitado de pacientes. Assim, um pesquisador vai a um banco de dados e levanta as pesquisas que foquem, por exemplo, a eficiência do tratamento Xpara o transtorno X. Desta forma, se o pesquisador reunir 20 pesquisas com 150 pacientes cada uma, ele reúne 3 mil pacientes na metanálise. Uma base, portanto, mais ampla e favorável a conclusões. Caso a seqüência de trabalhos mostre que o tratamento X teve melhor resultado que outro tratamento qualquer (resposta superior a placebo, por exemplo), este tratamento X é julgado “confiável” para ser prescrito. A validade corresponde à tal definição via diagnóstico biológico específico que, como dito, ainda não existe em psiquiatria.

Gazeta Mercantil – Esse debate, ou seja, se o psicanalista deve
recomendar ao paciente a busca de medicação, ainda é um certo
tabu. Por quê?

Eu gostaria que ainda fosse um tabu. Os analistas são sujeitos, tais como quaisquer outros, imersos neste discurso midiático e mercadológico. Não é incomum eu, que sou psicanalista e psiquiatra, receber analisantes de analistas para medicá-los e não julgar conveniente medicar aquela condição. Recomendo aprofundamento da psicanálise. O paciente ganha na medida em que é o tratamento psicanalítico que pode pôr em relevo que o sujeito tem como implicar-se em sua história, tem como abandonar as amarras imaginárias que o prendem e tem como desmontar convicções que o tornaram um errante.

Gazeta Mercantil – Como a terapia pela palavra pode aliviar o
sofrimento causado pela ansiedade, depressão?

Pela colocação destes sintomas na existência singular destas pessoas. Comprometendo-os com o sintoma. Demonstrando o nexo que há entre tais manifestações e as contradições que manifestamos. Esta experiência, se bem que o medicamento não a
impossibilita, é capital para que o sujeito assuma o que diz. A simples prescrição do fármaco joga o paciente numa névoa que obscurece o sentido possível que pode decifrar em seu sintoma. Mais que isso: define o paciente como um infeliz servo da potência biológica, isto é, define-o como uma folha solta levada pelo vento de seus genes para onde a errância do vento deseja.

Gazeta Mercantil – A cura por meio de um tratamento de longa
duração e baseado na fala não soa como um caminho prosaico num mundo cada vez mais dominado pela velocidade e pela busca de respostas imediatas, inclusive nas formas de aplacar o sofrimento?

Foi o que respondi na primeira pergunta. Não há tratamento para a idiotice. Se um sujeito quer pautar sua vida fazendo-se de objeto para o discurso científico não há quem o demova disso.