Acolhimento e Vínculo

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Acolhimento

Em 1990 estive em Porto Alegre pela primeira vez para conhecer a cidade e o mercado de trabalho para Auxiliares de Enfermagem. Naqueles tempos eu estava com 19 anos de idade e trabalhava no Hospital São Vicente de Paulo em Cruz Alta. Os salários e as condições de trabalho eram bem melhores na capital (em certo aspecto ainda são). Além disso, estava noivo e queria garantias de poder me sustentar sozinho sem depender de meu pai. Embora ele não desejasse que tivéssemos que mudar de cidade, queria muito que eu e meu irmão conquistássemos nossa independência financeira.

O plano de viajem era visitar algumas instituições hospitalares e avaliar as possibilidades e condições de vir a trabalhar na capital. Fui muito bem recebido nos lugares onde estive. Pareceu-me haver um grande interesse em receber profissionais jovens vindos do interior. A enfermeira chefe do HPS, por exemplo, conversou comigo em sua sala durante alguns minutos e conseguiu me deixar empolgado. Enfim, me senti muito bem acolhido. Ela me falou de todas as vantagens, porém omitiu os riscos.

Mas o movimento me causava tanta empolgação, quanto medo, de forma que com o rápido encontro que tivemos nossa “zona de comum”, nosso sentimento de que “um convinha ao outro”, nosso enamoramento – eu e a cidade, eu e o hospital eu e a enfermeira, na escrita de Espinosa era de primeira ordem ou inadequado, porém feliz o suficientemente para dar a mim e minha noiva o ânimo para o próximo passo. Não estivemos vinculados o suficiente para explorarmos os riscos implicados no desafio de mudar de cidade. Mas foi um encontro feliz e a zona de comum era apostar no trabalho na capital, ganhar mais dinheiro, ascender profissionalmente e conquistar a autonomia financeira.

Depois de ter passado um ano inteiro sofrendo o rito de passagem militar, ter conseguido um emprego e um curso profissionalizante (Auxiliar de Enfermagem), o passo seguinte, vir para Porto Alegre completava meu ritual de ingresso na vida de adulto.

Em meados de 1991 eu já estava morando na capital com a Lúcia, agora minha companheira. Ela acompanhou-me no salto de sair da casa dos pais e vencer na “cidade grande”. Tínhamos o ensino fundamental, o curso de Auxiliar de Enfermagem e empregos muito bons. Eu no Hospital Conceição e ela na Santa Casa. Aquele acolhimento do ano anterior nos potencializara. E mesmo com todo pavor de estar em vôo solo, a sensação de ter conseguido nos animava.

Em 1994, comecei a ter as psicosomatizações da vida adulta. Dores no corpo, medos difusos e ansiedades. Não demorei a procurar um psicoterapeuta, afinal devia haver algo que explicasse meu medo além da idéia bastante plausível de que eu me sentia num rumo incerto aos 23 anos. Não tinha o ensino médio completo e não via boas perspectivas de realização pessoal em longo prazo.

A idéia de investigar a mim mesmo era simultaneamente apropriada e assustadora: poderia vir a confirmar que eu não tinha as condições de realizar meus sonhos.

Saí do exército pensando que meu lugar na vida seria encontrado como se encontram vagas num grande estacionamento. Se eu fosse bom (e minha modéstia, confesso era microscópica) bastaria encontrar minha vaga “VIP” no grande estacionamento da vida. Após dois anos trabalhando em uma UTI, ficou claro que por melhor que eu fosse daria muito trabalho me realizar na vida.

A terapia foi minha forma de encontrar recursos para dar conta do desafio, que só então, eu admitia, me faltavam. Depois de dois anos de encontros semanais eu e meu primeiro psicoterapeuta concordamos que não estávamos produzindo mais do que atestados e receitas de psicofármacos para ficar sem ter que trabalhar nos dias de maior ansiedade.

Depois de algumas seções de psicoterapia com a nova terapeuta a qual conheci por indicação de minha médica do trabalho senti que tínhamos construído um vínculo mais adequado. Então, perguntei: Neste caminho que vamos trilhar juntos, quais são os riscos que corro? Ela me respondeu de forma objetiva e direta: – Todos. A terapia iria me ajudar, se eu realmente me implicasse, mas iria correr todos os riscos. Nada poderia me proteger da(s) arte(s) de viver minha própria vida.

Apesar de a conversa ter seguido o que calou fundo em minha alma foi à forma direta e honesta com que minha terapeuta disse: – Todos. Todos os riscos.

Hoje, entendo que por traz da busca sedutora de apoio, minha pergunta investigava a profundidade do acolhimento que eu recebia naquele espaço solitário do consultório. Era uma nova forma de encontro produtor de vínculo na tessitura das tramas rizomáticas de produção de subjetividade que acontecem nas grandes cidades. Uma ocorreu num espaço mais público (a sala da enfermeira chefe do HPS) e disparou a potência necessária para saltar da arquitetura de afetos das pequenas cidades para a polifonia de subjetividades da capital. Dois espaços diferentes, dois encontros diferentes e duas formas de vínculo geradas pelo acolhimento: Uma com a cidade sua velocidade de encontros fugazes, mas intensos e suas possibilidades de trilhar uma história significativa. Outra, com o sujeito singular, o terapeuta seu espaço íntimo de intervenção – a técnica de escuta, a conversa e o consultório.

Haviam estágios diferentes de acolhida e, portanto de produção de vínculo e potências de vida. A cidade oferece cenários com arquiteturas peculiares que configuram encontros diferentes. Mas cada local tem sua potência e pertinência. O consultório do médico da saúde comunitária, a sala da enfermeira chefe do HPS, a rua onde atuam os agentes de saúde e acompanhantes terapêuticos, o consultório de psicoterapia, etc…

Escrevi este texto recheado de um certo narcisismo, ou de implicação de acordo com a disposição do olhar de quem vir a lê-lo, para dizer que acolhimento produz vínculos, segundo aprendemos no dia a dia de trabalho e nas aulas da Especialização em Humanização da Atenção e Gestão do SUS – turma 2008. Aprendemos fazendo, ouvindo e lendo Eduardo Passos, Regina Benevides, Ricardo Teixeira, Dário Pasche, e tantos outros.

Então, vejo o acolhimento como um dispositivo de múltiplas faces de aplicação. Uma produção de contratos, de co-gestão, através do uso das técnicas de conversa, do uso da roda. Uma estética do diálogo, da aceitação do outro e de sua alteridade partindo da produção de consensos, de zonas de comum. De vínculos que sejam pelo menos, felizes, ecoando Espinosa mais uma vez.