Quem acusa o SUS de “excessiva” autonomia?

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Uma leitura amputada da realidade passa ao largo dos aspectos sócio-políticos, resultando em ações ineficazes

 

Por Eduardo Perillo e Maria Cristina Amorim

Há poucos dias, em conferência na Casa Branca, o presidente Barack Obama reiterou seu compromisso de assegurar a todos os americanos acesso a um sistema de saúde. Embora "interesses especiais" e os vários lobbies tenham brecado por décadas as propostas de mudanças, "aqueles que procuram bloquear qualquer reforma a qualquer custo não prevalecerão desta vez", disse o  presidente.
 

O grupo de excluídos, para os quais o custo do seguro saúde é inacessível, soma 46 milhões de pessoas, das quais 13,2 milhões são adultos jovens. Recente artigo de "The New York Times" exemplificou as dificuldades de acesso do grupo aos serviços de saúde: "emprestar" sobras de medicamentos dos amigos, diminuir a dosagem de prescrições para asma ou diabetes, fazendo-as durar o quanto possível, e "tratar" suas próprias fraturas são algumas das manobras empregadas. Emergências médicas? Nem pensar! Admitida por 46 horas em hospital de Nova York para tratar de diverticulite, uma jovem recepcionista recebeu conta de US$ 17.398, o suficiente para cursar a universidade por um ano.
 

Por que tão caro e inacessível? Basicamente, devido a um modelo surgido há quase um século, após a publicação do Flexner Report. Tratava-se de um "estudo" encomendado em sigilo pela American Medical Association à Carnegie Foundation com o objetivo de legitimar perante a população a medicina ortodoxa, elevar o prestígio social e a renda de seus associados e, ao mesmo tempo, criar barreiras de acesso à profissão médica.
 

Pelo modelo, a lógica do negócio, tanto para o médico quanto para o hospital, está no tratamento da doença. Médicos e hospitais são remunerados, quer pelo governo ou pela iniciativa privada, por serviços prestados. Hospitais dependem de alta taxa de ocupação de leitos, elevado consumo de tecnologia e da venda de materiais e medicamentos; médicos são pagos por procedimentos realizados. Mais procedimentos, mais remuneração: não há incentivos financeiros para manter os pacientes saudáveis.

O modelo tornou-se hegemônico na América do Norte e chegou ao Brasil em 1915, desenvolvendo-se após a Segunda Guerra Mundial, com apogeu de crescimento a partir de 1975. Lá como cá, o mesmo padrão de atenção à saúde, centrado na atenção curativa hospitalar, pouca ou nenhuma ênfase na prevenção de doenças ou na promoção de saúde, ambas com escassa expressão econômica.
 

Este breve histórico nos remete à recente publicação de um relatório discutindo o desempenho hospitalar no Brasil, patrocinado
pelo Banco Mundial e propondo-se a "buscar a excelência" na saúde pública. O paper, "Hospital Performance in Brazil: The Search for Excellence", é um volume de 453 páginas assinado por Gerard M. La Forgia e Bernard F. Couttolenc. Iniciativas para melhorar o acesso e a qualidade dos serviços de saúde são bem-vindas. Mas, examinando-se o texto, chama a atenção seu tom prescritivo, evocando os bulários do FMI na década de 80.
 

Assolada pelas crises do petróleo e aumento das taxas de juros internacionais (prime e libor), a economia brasileira afundou na dívida externa e sua consequência mais nefasta, a hiperinflação dos anos 90. Nesse período, coube ao FMI zelar pela lucratividade do setor financeiro internacional, garantindo que o saldo da balança comercial fosse destinado ao pagamento dos credores deste setor. O discurso no nível ideológico explicava que o Brasil enfrentava a inevitável punição por ter gasto excessivamente (como se a dívida externa tivesse estourado por aumento de gastos), e ao FMI cabia a função do bedel que finalmente imporia a ordem aos perdulários brasileiros.
 

No caso do recente relatório do Banco Mundial, vários estudos financiados com recursos públicos serviram de base para a construção de seus capítulos. Não obstante, o relatório atinge em cheio o SUS, por exemplo, ao criticar a "excessiva" autonomia da prestação dos serviços nos municípios. A autonomia dos prestadores, ao contrário, é uma das fortalezas do sistema. Ela busca aproximar usuário, prestador e sistemas de controle exercidos pelos cidadãos; se há tropeços, devem-se à (ainda) pouca tradição democrática do país. O número de municípios com gestão plena do sistema de saúde vem aumentando, como indicador de que nós, brasileiros, estamos aprendendo a resolver problemas sem concentrar poder
 

As recomendações do "Hospital Performance in Brazil" prescrevem aperfeiçoamentos ou inovações a um modelo mantido imutável, centrado no hospital, atendo-se a aspectos técnicos. Ignora as causas não-óbvias das deficiências do sistema e suas determinantes sócio-políticas, e não prevê consultas à sociedade para levantar suas necessidades, fixando-se em consequências
e/ou sintomas. Ou seja, tem uma visão descolada da realidade.
 

Comparar eficiência de unidades independentes, como prescrito no relatório do Banco Mundial, faz sentido para padrões de eficácia estabelecidos e alcançados.E quais os resultados estabelecidos, e por quem? Pelos tomadores dos serviços assistenciais ou por seus provedores? São distintos, senão opostos, os interesses dos dois grupos, e quanto aos interesses dos demais agentes, esses podem estar ora em alinhamento, ora em oposição.
 

É oportuno lembrar que os problemas da vida real têm vários determinantes políticos. Uma leitura amputada da realidade conduz a propostas "racionais" de intervenção que, precisamente por passarem ao largo dos aspectos sócio-políticos, resultarão ineficazes, tal como tantas outras anteriormente tentadas, com desperdício de recursos e oportunidades. Há quase 100 anos, o
Relatório Flexner, transplantado para o Brasil, serviu para implantar um modelo que atendeu a interesses de poucos, sem democratizar
o acesso aos serviços de saúde. Para buscar os reais condicionantes de problemas locais, que tal seguir o presidente Obama e discutir melhor suas raízes nos "interesses especiais"?
 

É certamente tempo de inovação criativa. Há muito conhecimento e experiência acumulados para aprimorar o SUS sem precisar recorrer à amputação de um de seus pilares – a autonomia dos municípios como gestores de saúde.

 

Eduardo Perillo é doutor em história econômica pela USP, mestre em administração pela PUC-SP e médico graduado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Maria Cristina Amorim é economista graduada pela USP, mestre em economia e doutora em ciências sociais pela PUC-SP.

Ambos são organizadores e co-autores dos livros "Para Entender a Saúde no Brasil volumes 1 e 2" ( LCTE Editora).

 

(Fonte: Valor Econômico, 23/03/2009)