Uma História

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Uma história

Pediram-me para contar minha história, mas não é apenas a minha história, é a história de muitos outros. Outros, que como eu, passaram por caminhos difíceis, áridos, com muitos percalços, mas já podem olhar para o passado e perceber que as coisas mudaram…

Nasci numa família numerosa, tive seis irmãos. Meu pai trabalhava como pedreiro e minha mãe fazia faxinas. Estudei pouco, pois a escola ficava longe e eu precisava ajudar minha mãe a cuidar dos meus irmãos. Meu pai, muitas vezes, chegava em casa e brigava, na época eu não entendia, mas ele chegava alcoolizado, gritava, "xingava" todos nós, dizia que a vida era um inferno, às vezes quebrava ou chutava alguma coisa e depois ia dormir. Eu tremia de medo e ficava quieta num canto esperando que aquilo tudo passasse. Minha mãe chorava. Quanto eu estava com nove anos meu pai desapareceu, nunca mais soubemos dele, saiu para trabalhar num determinado dia e não voltou mais.

Nossa vida que já era difícil ficou pior, pois minha mãe não dava conta de nos sustentar sozinha. Muitas noites ia dormir com fome. Minha mãe saia de manhã e voltava tarde da noite. Durante o dia eu ficava em casa, com meus irmãos menores. Tínhamos uma vizinha que às vezes nos trazia alguma comida, outras vezes comíamos o que tinha ou então esperávamos pela mãe. Meus irmãos maiores saiam para pedir na rua, nas sinaleiras ou então ficavam brincando com as outras crianças da vila.

Certo dia chegou em nossa casa uma senhora acompanhada de dois homens, perguntando por nossa mãe. Respondi que ela estava trabalhando. Então ela me fez várias perguntas. Eu não entendia muito bem o que ela queria saber, mas respondia e olhava para ela. Era bonita e estava usando um vestido azul. Ela tinha um perfume bom, parecia com o perfume da minha professora. Fiquei pensando então, que ela deveria ser uma pessoa boa, pois era cheirosa e pessoas cheirosas para mim eram boas. Quando foi embora, deixou um papel para minha mãe. Tentei ler, mas não entendi nada.

Tempos mais tarde fui entender que aquela mulher tratava-se de uma assistente social do Fórum. Não demorou muito tempo para que eu e meus irmãos fossemos retirados de casa e levados para o Abrigo. Naquele dia chorei muito, continuava sem entender o que estava acontecendo. Onde estava minha mãe? Ela também ia para o abrigo conosco? Senti frio, muito frio.

Vivi dos dez aos dezoito anos no Abrigo. Nesses anos todos vi minha mãe poucas vezes, geralmente no final do ano quando ela vinha para festa de Natal. Ficava um pouco, conversava com a tia do Abrigo e depois ia embora. Eu ficava olhando para ela, esperando que me chamasse para voltar para casa com ela, mas isso nunca aconteceu. Também não sei o que aconteceu com meus irmãos mais velhos que depois de algum tempo no abrigo, fugiram e eu não soube mais noticias deles. Minha mãe nunca falava neles. Portanto, cresci junto com meus três irmãos menores, em uma grande casa, dormindo em um quarto com mais dez, doze ou até mais crianças que como eu e meus irmãos, dividíamos os espaços de dormir, comer, brincar, estudar e dividíamos também a atenção da tia que nos cuidava.

Nunca fui uma criança extrovertida, sempre preferi brincar sozinha, quieta, sem chamar a atenção. Por vários anos tive sempre o mesmo sonho: sonhava com um lugar escuro, com coisas velhas e quebradas, com pessoas estranhas falando comigo em uma língua que não podia entender. Tentava sair desse lugar, mas não conseguia, era como se uma força me puxasse e me imobilizava. Acordava suando, com as mãos geladas e frias.

Não gostava de estudar. Ficava horas e horas roendo o lápis. Não entendia o porquê de ter que saber os motivos que levaram os homens a declarar guerra uns aos outros, onde pessoas morriam e outras festejavam por isso. Decorar os elementos da tabela periódica, para quê? Tinha até aula de inglês com uma professora que gostava apenas de quem tinha um caderno colorido e organizado. Não era o meu caso. Quando conseguia não ir à aula, ficava no abrigo, na minha cama, ou num canto qualquer brincando com meu relógio de pulseira de plástico e conversando com meus pensamentos.

Na adolescência não foi muito diferente, cada vez mais preferia ficar só a ter que participar de jogos, festinhas com musica dançante ou mesmo sair com autorização dos monitores – agora já não eram mais as tias que nos cuidavam, embora fosse muito difícil para eu chamar as pessoas pelo nome. Segui por anos chamando algumas monitoras de tias.

No meu aniversario de 15 anos, que foi comemorado junto com os outros aniversários do mês, ganhei de presente da tia Ana um perfume. O vidro era grande e o cheiro era suave. Gostei muito do presente e guardei como um tesouro. Naquela noite, na noite dos meus quinze anos, quando já estava deitada na cama percebi que alguém se aproximava. Estava escuro e tão logo que abri os olhos percebi que uma mão tapava minha boca. Senti um peso sobre meu corpo, uma força bruta me abrindo e me machucando. Não conseguia gritar ou pedir ajuda. Senti dor, raiva, medo e tristeza. Chorei. Chorei por várias horas, sozinha.

Algumas das meninas e meninos que viviam no abrigo costumavam fugir a noite para ir para festas, nunca me convidavam, pois eu pouco conversava com eles e não tinha amigos. Também fumavam escondidos. Até me ofereceram uma vez. Aceitei, porque queria saber como era o gosto do cigarro. Quase morri tossindo e eles rindo de mim, foi um vexame. Eu raramente transgredia alguma regra de convivência, tinha muito medo, optava por ficar quieta com meus pensamentos.

Uma determinada manhã acordei e vi que minhas coisas tinham sido remexidas. Imediatamente procurei o perfume que havia ganhado de aniversário e ele não estava mais ali. Gritei, perguntei se alguém tinha pegado, queria encontrar meu tesouro, mas nesse momento as palavras já não saiam mais coerentemente de minha boca. Quando me dei por si, estava toda amarrada em uma cama, sonolenta e com a boca seca. Minha cabeça doía muito, meus pensamentos estavam desorganizados, eu não sabia o que estava acontecendo e nem onde estava. Tentei me movimentar, mas foi impossível. Fiquei por muito tempo assim, vendo pessoas passar, algumas gritavam, outras estavam amarradas como eu, mas ninguém se aproximava de mim para eu poder perguntar o que estava acontecendo. Meus pulsos doíam e minha alma também. Meu corpo encontrava-se mortificado pelas amarras de longas horas.

Resumo da história, essa foi a primeira de uma série de muitas internações psiquiátricas que sofri entre os meus quinze e trinta e quatro anos. No meu prontuário consta que meu primeiro surto foi aos quinze anos “crise de agitação psicomotora com necessidade de contenção física e medicamentosa, pensamento desagregado, impulsividade, delírios e alucinações”. Desde então, passei a usar medicamentos controlados, os chamados anti psicóticos.

Ver outros que viviam boas vidas era como olhar por uma grade, um muro e ao mesmo tempo um vidro espesso, mas não dava para saber quem estava do lado de dentro ou do lado de fora: Eles ou eu. O certo é que do meu lado, livres ou presos estavam os que sempre perdiam, aqueles que mais choravam do que riam…
Quanto mais chegava o tempo de ir embora do Abrigo mais eu ficava solitária. Não tinha coragem de atravessar o vidro para sair do aquário e entrar na vida. Sabia que continuaria só. Seria a solidão num mundo em que minha bagagem era insuficiente.

Não creio, que naquela época, eu confiasse de fato em alguém. Porém o mundo após os 18 anos era para ser vivido com base em minhas aptidões e capacidades. Então, era um jogo perdido antes mesmo de começar. Comecei a depender de minha desgraça, minhas perdas e minha solidão. Eram minhas moedas de intercâmbio com a vida. O melhor mesmo era viver para sempre no abrigo sofrendo a humilhação que me definia, sendo aquilo que eu já conhecia. Nunca poderia recomeçar de onde as coisas começaram a dar errado. Eu não poderia recuperar minha felicidade jamais, porque ela nunca existira…

Antes de sair do abrigo eu fugi. Fiquei muito tempo vagando na rua, usei todas as drogas que meu frágil corpo podia suportar e comprar. Estive em albergues e a cada vez que falava com alguém ouvia coisas do tipo que minha vida ia ser curta, que eu devia me organizar, tomar os remédios, sair da rua. Sempre iniciava o tratamento de uma pneumonia no inverno, de uma diarréia no verão e tão logo melhorava, voltava para a rua.

A sensação de sobreviver na rua, de não ter nada a ganhar nem a perder é inebriante. Com 24 anos meu corpo já não era mais atraente o suficiente para fazer programa com homens que tivessem carro. Mas era bom ao ponto de me obrigar a dormir durante o dia em lugares movimentados, para evitar a aproximação de outros moradores de rua.

Durante um dos recorrentes surtos fui levada ao hospital por uma viatura da polícia. Nesta vez não fui chamada de menina de rua. O policial, que já me algemara outras vezes disse ao médico, como se nunca tivesse me visto antes, que havia mais uma mendiga surtada para ser internada.

Numa das altas do hospital fui encaminhada para um albergue. Lá conheci um outro morador de rua. Jovem, mas também marcado pelas dores da vida. Ele me falou que queria mudar e me propôs vivermos juntos, numa tentativa de um ajudar o outro. A Assistente Social da instituição ficou muito empolgada e nos ajudou a conseguir móveis para irmos morar numa casa doada pela prefeitura. Eu já estava grávida quando fui morar com ele. Parecia que as coisas iam mudar.

Logo depois do parto, comecei pensar em meus irmãos. Sabia que um estava preso e que outro havia morrido na rua. Dos demais ninguém sabia. Por alguma razão doía pensar o quanto eu estava bem. Meu companheiro trabalhava muito na oficina de reciclagem e eu ficava em casa para cuidar do bebê. Seguia consultando no posto de saúde, na verdade buscava as receitas da medicação, mas às vezes, meus medicamentos acabavam antes de conseguir novas receitas.

À noite eu e meu marido pouco falávamos. Ele chegava cansado do trabalho e eu cansada do dia inteiro em casa. Fiquei muito irritada quando ele disse que a menina já devia estar engatinhando. Num momento impulsivo quebrei uma cadeira nas costas dele. Voltei a velho e conhecido circuito: avaliação e internação psiquiátrica. Falando com o médico, me dei conta de que não conseguia olhar para minha filha. Não tinha iniciativa e só atendia ela depois de muito choro. Com tudo o que passei achava normal uma criança chorar. Não sabia o que era ser mãe ou fazer a tal da maternagem.

Durante a internação recebi a visita de profissionais da saúde mental que trabalhavam em um residencial terapêutico. A assistente social do hospital tinha pedido uma avaliação já que minha situação era muito difícil. Não estava respondendo bem ao tratamento e após o nascimento do bebê, tive uma outra crise. Talvez não pudesse voltar para casa. O prognóstico era ruim, nas palavras da assistente social.

Esses profissionais cuidavam de pessoas como eu – os casos difíceis, e me perguntaram como podiam me ajudar. Eu disse que não conseguia cuidar de minha filha, que me sentia mal em casa e que meu destino era morar na rua e morrer cedo como meus irmãos… Ninguém acreditava que eu pudesse cuidar de uma criança, agora nem mesmo eu. Um dos profissionais me disse que para cuidar de uma criança era preciso muitas pessoas, mesmo quando a mãe não está doente.

Eles me falaram do trabalho que faziam e em um plano terapêutico, que era uma espécie de ajuda e que envolveria outros serviços e equipes de saúde para me atender. Não acreditei muito, mas eles seguiram me visitando a cada 15 dias. Falaram com meu marido e com minha sogra que durante os dois meses em que estive internada ficou cuidando da minha filha.

Quando saí do hospital fui para o residencial terapêutico, um lugar diferente do hospital psiquiátrico. Sem muros, um lugar aberto. Lá pude entender o que era um cuidado. As pessoas são respeitadas nas suas diferenças e são escutadas. Eu pude ter minhas crises, chorar minhas dores e sempre havia alguém para me estender a mão, me dar um abraço, uma escuta e um sorriso. Houve momentos muito difíceis em que precisei de limites, pois se me deixassem, com certeza me perderia em meio as minhas lágrimas e delírios. Era uma contenção afetiva e ninguém tirava o olho de mim, sempre tinha alguém por perto. Até melhorar e retomar meu projeto de vida, sim, porque lá se trabalha com projetos de vida e não de morte. É uma equipe de vários profissionais – psicólogos, enfermeira, terapeuta ocupacional, cozinheiras, auxiliares de enfermagem, pessoal da limpeza, da portaria, estagiários e motorista, todos trabalhando juntos para nossa melhora.

A maioria dos moradores que estão no residencial tiveram uma vida difícil como a minha. A proposta é ficar no residencial ficarem bem, com autonomia, como se diz, daí voltam a viver com a família, sozinhos ou mesmo com outros usuários. Alguns vão para pensões particulares pois vão precisar de ajuda a vida toda. Aquilo parece uma grande comunidade. Não são parentes mas se ajudam. Há muitas feridas sendo tratadas por lá, o que torna o ambiente difícil às vezes. Mas o afeto circula e faz parte do fazer de todos.
Além do residencial era atendida toda semana no CAPS por um psiquiatra e por outros profissionais. Freqüentava os grupos e oficinas que mais gostava. Sempre que havia um momento mais critico na minha vida, ficava por mais horas e turnos no CAPS e o mais interessante era que as duas equipes falavam sobre mim. Isso mesmo, tinha o que eles me explicaram – a Interconsulta. Se reuniam e discutiam a minha situação. Depois me passavam o que haviam falado para ver se eu concordava. Assim, eu podia dizer a minha opinião no meu tratamento.

Depois de um ano e oito meses, pude voltar para minha casa e retomar o convívio com meu companheiro e minha filha. No período em que estive no residencial, fazia visitas em casa, assim não deixei de ver minha filha. Minha sogra pensou em não me devolver a criança, mas a psicóloga da Equipe falou com ela. Disse que em vez de me substituir, o melhor seria me ajudar. Que para a criança e para mim seria melhor. A equipe do residencial seguiu me acompanhando em casa e até hoje ainda tenho eles como ponto de apoio para minha vida. Porque em alguns dias preciso de alguém para me ajudar, fico com medo, triste e acho que não vou conseguir.

Vou no CAPS uma vez por semana para os meus atendimentos. No posto de saúde perto da minha casa consulto e levo a menina para o médico ver e tomar as vacinas. A agente de saúde vai lá em casa para ver se tá tudo bem de vez em quando.

A equipe do residencial me encaminhou para receber um beneficio da assistência social. Esse dinheiro que recebo todo mês ajudou muito a me organizar em casa de novo. Pude comprar muitas coisas novas e até algumas coisas para mim.

O tempo da rua, do abrigo, a minha infância, tudo isto está ficando para traz. Mas às vezes penso que o passado pode me alcançar. Só às vezes… Uma Nova Vida está se desenhando em minha história. Por coincidência este é o nome da Equipe que me ajuda a ser cuidada por outras equipes. Na primeira vez que eu falei com eles, ainda amarrada na cama do hospital, disse que eu queria ser feliz, que eu queria começar uma nova vida ou morrer logo. Agora quero viver bastante, seguir meu tratamento e cuidar da minha família…

Comprei, outro dia, o perfume que minha professora usava e lembrei da imagem que tinha dela, de uma boa mulher. Estou usando ele. Também já não sonho mais com lugares velhos e escuros. Foi um sonho que passou. Agora, aprendi com meus cuidadores, que um dos meus projetos de vida é transformar bons sonhos em realidade, mesmo os sonhos que sonhamos acordados.
Um abraço.

 

Loiva Leite e Marco Pires
Porto Alegre, abril de 2009.