A igualdade fundamental e o mito da liberdade – Parte II.

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Uma cultura particularmente antiocidental e zelosa de suas tradições a despeito de uma intensa relação com o ocidente é a japonesa. Assentada há milênios sobre um conjunto de ilhas vulcânicas, sua noção da contingência a que estamos submetidos é muito aguçada. São previdentes na capacidade de manter reservas para os tempos difíceis. Especialmente preparados e cientes dos recorrentes abalos sísmicos e maremotos que lhes ocorrem, são o povo que tem a maior poupança familiar do mundo. Em geral costumam poupar o suficiente para reconstruir suas casas. 

Temos muito a aprender com culturas cujos mitos fundadores são menos antropocêntricos e mais humildes em relação ao lugar dos humanos no mundo. Nossa noção de justiça, que em geral informa a ação coletiva, parte de pressupostos de uma profunda autonomia e potência individual.

Uma fé cega na capacidades de cada ser singular tem de remodelar o contexto mais amplo em que opera efemeramente. Empiricamente vemos exatamente o contrário: Como tragédias e comédias são induzidas nas vidas individuais de acordo com os fortuitos encontros em que somos lançados ao longo de nossas vidas.

A ideia de que as virtudes sempre concordam é uma superstição feia.

Vejamos um exemplo de dilema comum nas áreas urbanas que sofrem a influência do crime organizado como fator de dissolução de arranjos tradicionais em nome de práticas mais atávicas de exercício do poder da força bruta. Consideremos que o retorno destes atavismos se dá em meio a inúmeras formas de linhas de poder micro, macro, ubíquos e descentralizados que coexistem em nossas sociedades.

Ao caso:

Pense no apenado que recebe a ordem de trazer uma mulher para a visita íntima do chefe de seu pavilhão. Pense que sua esposa precisa que ele volte vivo depois de cumprir seis meses de reclusão por porte de maconha. Pense na falta que ele fará para seu filho. Pense em qual a escolha é certa: Deixar sua mulher servir ao bandido, ser estuprado ou ser morto.

Se você não entende um dilema deste é porque a conivência e/ou corrupção de uma geração anterior a sua lhe concedeu o privilégio raro de viver uma realidade em que o certo não contraria o certo. Mas não esqueça: Isso é um privilégio conquistado a custa do sofrimento de outros.

Não vale descolar o drama de seu contexto ou propor superações ideais do dilema visto que é uma atitude covarde com quem vivencia a situação na prática. Este é um fato geralmente obscurecido na hora de pensar nossos arranjos sobre a racionalização do conceito de justiça.

Costumamos pensar o que é certo em termos ideais. Simplesmente esquecemos que a maioria das pessoas que vive e já viveu é afetada pelas coisas que acontecem e se desenrolam em contextos reais. O que deveria ser não existe.

Quando podemos falar em termos ideais é porque estamos no conforto da distância dos dilemas reais. Não está acontecendo para nós. Recalcando isso podemos pensar com indisfarçada crueldade sobre a tragédia dos demais.

A racionalização é uma espécie de hábito de sonhar acordado que contagia os humanos. É onde experimentamos mais intensamente a ilusão da liberdade e da desconexão entre nós e tudo o mais que há.

O curso de um veio de água que aflora de uma nascente é afetado por inúmeros fatores. A trajetória humana não é diferente, seja cada indivíduo ou de toda a espécie.

O que em última análise determina uma mudança de curso? O que sepulta uma sequência possível, mas não efetivada? 

Pouco disso se deve a liberdade humana. Pois que, adormecido pouco se faz e a tudo se sujeita da mesma forma que em vigília.