Tecendo vínculos pelos fios das lembranças: A tenda do conto

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INTRODUÇÃO

Há uma história, de um autor desconhecido, que conta que certa vez um pai, sertanejo, cujo rosto lembrava o chão árido em que pisava, e sua filha foram passear na plantação. Sentaram-se a beira de um grande e imponente juazeiro e lá permaneceram simplesmente escutando os sons dos pássaros, do vento e da mata. Até que, ao longe, ouviu-se o som de uma carroça, que logo chamou a atenção da filha. Seu pai, homem experiente e de ouvidos apurados, logo completou: “É filha, é uma carroça puxada por dois cavalos que se encontra vazia”. Os galopes dos animais se sobrepunham e quanto mais leve a carroça, mais barulho faz na estrada de terra irregular. A sabedoria é a filha mais querida do tempo, com o qual aprendeu a escutar.
Segundo o psicanalista e escritor Rubem Alves: “De todos os sentidos, o mais importante para a aprendizagem do amor, do viver juntos e da cidadania é a audição”. Já Jorge Amado, em sua obra Os Pastores da Noite, diz: “Com o povo aprendi tudo quanto sei, dele me alimentei e, se meus são os defeitos da obra realizada, do povo são as qualidades porventura nela existentes”. Diante desses dois pensamentos, a Tenda do Conto surge como a agulha do tricô ou os pregos do tear, permitindo a junção da cultura popular com a arte de escutar, através da vazão dos sentimentos. Tais emoções florescem das lembranças, que como fios vocalizados, nos unem mediante as histórias e singularidades de cada um.
A Tenda do Conto é um projeto criado e desenvolvido há 5 anos, nas UBS’s de Panatis e Soledade I, zona norte de Natal, por meio da sensibilidade, competência e visão ampliada sobre o que é saúde, das enfermeiras Maria Jacqueline Abrantes Gadelha e Maria de Lourdes F. de Oliveira Freitas. Transportado e adaptado à realidade da área adstrita da UBS Eloy de Souza, Macaíba-RN, pelos doutorandos de medicina do 9º período da UFRN, Flávio Luiz Araújo do Nascimento, Gabriela Dantas Muniz e Wilker Medeiros de Azevedo, durante o internato em saúde coletiva, sob a tutoria de Vilani Medeiros de Araújo Nunes e sob a coordenação de Ana Tânia Lopes Sampaio. Diante de uma comunidade ociosa, principalmente os idosos, que enxerga a saúde apenas como ausência de doença e a unidade de saúde como espaço para curá-las, este projeto propõe-se a desconstruir conceitos, agregar e fortalecer vínculos. Por meio do protagonismo e autonomia do sujeito, do poder do grupo e sua união através dos sentimentos, este é tido como um treinamento para uma escuta mais humanescente, essencial não só ao trabalho em saúde, mas ao convívio social.

METODOLOGIA

A intervenção foi realizada em duas etapas, divididas em dois dias. A primeira etapa ocorreu nas dependências da própria UBS no dia 29 de outubro de 2012 pela manhã. A divulgação havia sido realizada pelos próprios funcionários da UBS através de convites a serem entregues aos idosos e população em geral. O próprio convite já mobiliza a família em torno da procura pelo objeto, permitindo a troca de experiências vividas. E, como um bom anfitrião faz, preparamos a unidade de saúde para receber quem é a base de sua existência: o usuário.

À sombra de uma mangueira e de uma tenda no espaço externo da UBS, decorado como uma sala de estar à moda antiga, acrescido de uma cadeira de balanço, construiu-se um ambiente aconchegante e acolhedor.


Após uma breve explanação sobre a tenda do conto e os motivos que a levaram para lá, foi realizada uma dinâmica de apresentação, onde cada pessoa se sentia a vontade para falar sobre si mesma.

Divididos em duplas, iniciou-se a dinâmica da colcha de retalhos, simbolizando o estreitamento de laços entre comunidade, profissionais da unidade e doutorandos. Com pedaços de tecido, pincéis, tintas, linhas e agulhas, cada um ficou encarregado de pintar no retalho o próprio nome ou alguma mensagem, e a seguir a dupla uniria os pedaços. 

Acabado esse momento, foi perguntado individualmente o nome de uma música e um objeto que tivesse importância na sua vida. As músicas foram coletadas pelos doutorandos e os demais participantes ficaram encarregados de levar o objeto escolhido.

A segunda etapa da intervenção foi realizada no dia seguinte, 30 de novembro de 2012, no mesmo local e horário. Ao fundo musical previamente escolhido, cada um era convidado a sentar-se na cadeira de balanço e contar as histórias que envolvem a música e o objeto.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O primeiro dia de intervenção contou com a participação de 12 usuários e os profissionais da unidade, variando a faixa etária dos participantes dos 20 aos 90 anos. Já no segundo dia houve a participação do mesmo público mais dois dos idealizadores da tenda e membros da sua equipe original.
As atividades desenvolvidas foram avaliadas positivamente por possibilitar a oportunidade de criar vínculos entre o espaço físico e equipe da UBS de Eloy de Souza com os usuários. Permitiu ainda ampliar o conceito de saúde ao promover a saída do isolamento social, essencial aos idosos, e ao promover o encontro de gerações, aproximadas pela cultura popular e pelo poder da grupalidade sobre o indivíduo. Fortaleceu ainda a visão integral do usuário, inclusive de sua dinâmica familiar, por meio de uma atividade promotora de saúde, que pode ser continuada por qualquer um e que supre a falta de equipamentos sociais na área adstrita.
Todos os participantes, sem exceção, voluntariamente, sentaram-se na cadeira e contaram suas histórias. Pudemos vivenciar algumas experiências que certamente nos engrandeceram e tornaram a formação acadêmica mais humanizada. O ambiente acolhedor e humano montado foi suficiente para uma das participantes contar sua história de vida e as dificuldades que enfrenta em seu relacionamento conjugal, o qual podou muitos dos seus sonhos, no entanto, ali ela pode revivê-los e reafirmar seus desejos e ambições. A tenda também é um espaço revigorante, como revelou a história de outra participante, contando sua saga de luta, perseverança e, essencialmente, de amor durante o processo de adoção da sua filha.

CONCLUSÃO

As atividades desenvolvidas pela equipe de saúde da família envolvem-se de enorme complexidade, na medida em que trabalham com as pessoas enquanto integrante de um grupo familiar e parte de uma comunidade. A Tenda do Conto é uma iniciativa simples, de custos baixos, adaptável a qualquer localidade, desenvolvida e reinventada pelos próprios participantes, não requer sofisticação nem profissionais treinados, somente a sensibilidade humana para escutar e a atenção acolhedora de um olhar.