“Quero Morrer Dormindo”

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John Waterhouse (1874). Thanatos e seu irmão Hipnos

 

Ministro "Introdução à Tanatologia" na Universidade Estadual do Ceará desde 1999, para os cursos de Enfermagem e Serviço Social. Logo no primeiro dia de aula especulo dos alunos sobre os motivos de estarem ali, afinal, a morte não é um dos assuntos mais populares embora paradoxalmente esteja tão em evidência na mídia.

Claro, o que não é popular é a discussão da morte como um fenômeno existencial. Discute-se a morte o tempo todo como se estivéssemos vendo uma partida de basquete. Os mortos não aparecem na mídia mas sim os seus números, na contabilização de vítimas fatais em mais um atentado suicida ou no número de mortos nas estradas no final de semana prolongado.

Nestes 10 anos de tanatologia, pergunto sempre no primeiro dia como os alunos imaginam a própria morte. É recorrente a seguinte afirmativa: "Quero Morrer Dormindo", "Quero Morrer de repente", "Não quero ver a minha morte", "Quero ter um AVC e apagar de vez".  E por ai vai.

O que existe em comum nessas simbolizações é a doce fantasia da morte súbita como uma benção, um lenitivo que exime a pessoa da possibilidade de enfrentar a dor e o sofrimento. Quase não se escuta expressões do tipo: "quero estar consciente até o fim" ou "quero ter tempo de fazer algumas coisas importantes".

É claro que não há uma coincidência nisso tudo. Na verdade, talvez meus alunos não tennham tanto medo da morte em si mas da forma como estamos morrendo nesse início do século XXI. Morrer é um lento e inexorável caminhar para a perda total da autonomia:

1) Perda da automonia do saber sobre si, onde muitas vezes profissionais e familiares montam uma conspiração do silêncio e do escamoteamento frente ao que está acontecendo com o paciente

2) Perda da autonomia sobre as próprias escolhas, onde o paciente não participa diretamente sobre os tratamentos que lhes são prescritos e de poder determinar o momento em que o foco terapêutico possa mudar para outra forma de cuidado.

3) Perda da autonomia sobre a realização de necessidades existenciais emergentes, onde por não ter clareza e objetividade sobre o que lhe acontece, deixa de satisfazer e/ou realizar necessidades vitais que poderiam ser satisfeitas no pouco  tempo restante de vida (perdão por erros, reencontros com pessoas queridas, realização de satisfações estéticas etc).

É essa percepção que já norteia o olhar dos nossos jovens, sistematicamente afastados na infância da vivência dos ritruais da morte e agora presenciando a morte dolorosa dos membros mais vellhos da família, transformados em cascas bioquímicas nas UTIs a espera da falência múltipla dos órgãos.

Diante dessa forma de (des)assistência diante da finitude, não é de se estranhar que se queira morrer dormindo, mesmo que isso nos roube tudo de bom que a vida possa ainda oferecer. Se o foco pudesse ser mudado, se a finitude pudesse ser aceita e se ao descobrir que "nada mais pode ser feito" o profissional de saúde tivesse diante de si a possibilidade de tudo poder realizar para mitigar a dor e o sofrimento, ai então talvez  pudéssemos idealizar a morte de uma maneira mais doce, não tão repentina, mas cercado pelo afeto dos amigos ao som da música que mais se gosta pois a ausência da dor permite ouvir a beleza de Bach, sentir o carinho da não amada, escutar o adeus das amizades que ficam.

Claro, essa é a minha fantasia, cheia de idealizações é verdade. Mas é isso tudo que posso imaginar se penso que não sentirei dor nem que estarei exilado numa sala fria ao som de bips e do estalar de ventiladores mecânicos…sem sol…sem cheiro de café…sem perfume de lavanda….

 

ERASMO RUIZ