A dor e a delícia de viver e morrer.

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Há países que não tem sistemas de saúde pública. O Brasil tem o seu, mais ou menos organizado, desde o início do século XX. Mas não era universal. Ainda não é. Mas podemos dizer que desde 1988 temos o direito de que seja. Há países que não tem previdência social, porque os idosos são muito valorizados. Então, o cuidado com eles é algo tão natural que é esperado que seja realizado por eles mesmos, por seus filhos, genros e netos.

Tenho presenciado a dor e o sofrimento desde o início de minha carreira. Dentro do hospital, na enfermaria e nos quartos particulares, nas casas mais belas e nos barracos mais humildes. Vi gente morrendo cercada pela família e outros caídos em uma sarjeta ao lado de um esgoto a céu aberto. Mas também vi um marginal morrer baleado nos braços de uma mãe tomada de afeto tardio e dor. E vi jovens ricos morrerem cercados pela indiferença.

Uma vida feliz ou intermitentemente marcada por prazeres e dissabores já aconteceu a milhões dos humanos que viveram em alguma e todas as épocas. Uns morreram violentamente nas garras de predadores ou inimigos. Outros foram colhidos por pestes e doenças. Muitos tiveram vidas infelizes e a morte foi acolhida de forma serena, como uma libertação. Nem uma destas trajetórias tem sentido para além delas.

Sei de pessoas muito ricas que se internaram em hospitais muito bem equipados que sentiram mais dor do que podemos imaginar na luta para ficar vivo por mais alguns meses. Por mais recursos que tivessem a luta por mais tempo de vida lhes cobrou o preço em dor, tortura e mutilação. Apenas seu apego a vida, e não seu dinheiro, explicam porque suportaram tantas desventuras no final de suas vidas.

Não gostamos de admitir, mas há uma dor na existência que resiste a descrição das palavras ou das interrogações. Por trás do questionamento, sobre o SUS, suas bonitas intenções e ideologias, há uma presunção e/ou pressuposto que não resistem à observação singela da vida como ela é.

Não há sistema de saúde que nos livre do infortúnio de uma morte mais ou menos dolorosa. Nem da sorte de uma morte serena. O pouco que podemos fazer por nossa morte diz respeito ao percurso de vida que a sorte ou a virtude, mas mais a sorte, calhou de nos dar.

O SUS, como o sistema de saúde inglês (que é nosso modelo mais bem executado), não são recursos para redimir a humanidade de seus males para todo o sempre. São construções histórias que tentam dar sentido ao vínculo que une os cidadãos que comungam o sentimento de pertencimento a uma pátria, ou a um império. O sistema de saúde Inglês se materializou como resposta as desventuras da segunda grande guerra.

No Brasil, o SUS, é fruto da luta pela democracia, contra o regime militar e pela modulação de nosso pacto de buscar a igualdade e a superação dos privilégios de casta e classe. Estamos longe disso, mas já distantes da situação de penúria que viviam os brasileiros que não tinham carteira assinada até os anos 70 e 80.

Em 1970 nossa população era de 70 milhões. Hoje somos 200 milhões. Mais gente vive nestas poucas décadas do que antes do SUS. Mas uma memória cultural perversa permaneceu: é mais humano quem tem mais dinheiro. Uma aberração conceitual tornada senso comum pela observação e significação da relação de nossas elites com o nosso povo.

Hoje a elite cresceu, se considerarmos os muitos que vivem confortavelmente distantes da vida miserável que viviam nossos avôs e bisavós. Considero elite média qualquer um que possa viajar mais de 2000 quilômetros nas férias, preocupa-se com a alíquota do Imposto de Renda, com IPVA, plano de saúde e o custo da escola particular. Nesta situação somos milhões de brasileiros.

Esta elite está tão doente quanto os demais cidadãos, abaixo ou acima nos estratos sociais. Presidentes e ex-presidiários tem câncer. Uns morrem logo, outros mais tarde. Se morrem felizes ou infelizes é algo que só tem sentido dizer em relação a cada significado peculiar. Já se escreveu que um batedor de carteiras pode ter uma existência trágica. Por outro lado, um príncipe pode ter uma existência banal. A dor de cada um só tem sentido local. Não pode ser a medida para a existência de todos os demais humanos.

Humanização do SUS é, basicamente, permitir a cada um a construção de uma vida significativamente boa, com ou sem a dor e certamente na expectativa da morte.

Como não somos nada a não ser em ralação com os outros, quando dizemos que o SUS é para os pobres como se disséssemos que a infelicidade é para os pobres, cometemos um abuso.

Poderia alguém, apenas pelo que diz acreditar, provar que as existências são a priori, definidas? Sabemos que todos nós rumamos para o mesmo destino. Entre o começo e o fim somos acometidos por muitos afetos. Cada um deve ter o direito de significar sua existência como tão potente quanto qualquer outra. Senão por outras coisas, mais, porque simplesmente é assim que a vida é.

Você já percebeu que o advento do transplante cardíaco inaugura a fila de transplante? Que a descoberta da vacina inaugura a espera pela cobertura vacinal? Deu-se conta de que o foco na atenção básica coloca a necessidade de termos muito mais médicos do que temos formados? Percebeu que isso torna os salários dos médicos mais baixos ou seus impostos mais altos do que eram antes da necessidade da atenção básica ser inventada?

As delícias da vida, não vem sem a amargura. E a narrativa do saldo de ambas é da ordem da liberdade a que estamos condenados, segundo Jean-Paul Sartre.