Relato Etnográfico a partir de uma Unidade Móvel de Saúde (Cristópolis-Ba)

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Em 2005 tive a abençoada oportunidade de trabalhar como médico de saúde da família, na comunidade de Cantinho, na cidade de Cristópolis, interior da Bahia, integrando uma equipe interdisciplinar de saúde da família, composta por uma enfermeira especializada em saúde da família, técnicos e auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde e sem perceber realizei minha primeira pesquisa de campo etnográfico, a qual, sedimentada pela disciplina “Fundamentos teórico-metodológicos da prática de pesquisa de campo em ciências humanas numa perspectiva interdisciplinar”, ministrada pelas professoras Maria Luisa Sandoval Schmidt e Denise Dias Barros, do IPUSP, tentarei relatar.
O povoamento do território de Cristópolis-Ba teve inicio no século XIX, por aventureiros à procura de ouro e pedras preciosas. Fixando-se no local, construíram residências e instalaram fazendas de gados. A fertilidade do solo atraiu novos colonos que ali se estabeleceram, formando o povoado Buritizinho, elevado à vila em 1953. Em 1962, alterou-se o topônimo para Cristópolis, cuja origem se prende á fé cristã, uma homenagem a Cristo, seu gentílico denomina-se cristopolense, a cidade vive a base da formação administrativa pública, coleta do alho e gado leiteiro, sua população atual é de 12882 habitantes, sendo 85% do meio rural e somente 15% moradores na cidade propriamente dita (IBGE,2010).
A secretaria de saúde era composta pelo secretário de saúde (ex-motorista de taxi e pessoa de confiança do prefeito), a coordenadora dos programas de saúde ( pedagoga, com boa formação em saúde pública, representava a mente e alma da secretaria); o sistema de saúde municipal era composto por quatro equipes de saúde de família, formadas por quatro médicos, quatro enfermeiras, quatro odontólogos (sendo um vereador da cidade e dentista prático, ou seja, protético com experiência profissional em dentística), três técnicos de enfermagem por equipe, 06 agentes comunitários de saúde para cada comunidade; compunham o total de quatro programas de saúde de família, sendo hum na cidades e três no meio rural, eu e a enfermeira Claudia Cristina Gomes Teixeira coordenavamos o PSF da Comunidade de Cantinho.
          Os agentes comunitários de saúde mapeavam as situações familiares, registrando dados relativos à idade, nível de instrução, renda familiar e patologias crônicas ali existentes; agendavam consultas e traziam informações sobre problemas referentes à comunidade, do ponto de vista de saúde pública. Estes eram os interlocutores entre o sujeito (sistema de saúde pública representada pela equipe de saúde da família) e objeto a ser atendido e entendido (comunidade de Cantinho Cristopolis-Ba).
Seguindo a proposta de uma etnografia urbana (Magnani, 2002), atuávamos como pesquisadores participantes, com olhar de perto e de dentro, uma vez que fazíamos parte do PSF local; tínhamos como atores sociais, a comunidade de Cantinho que transitava pelo ônibus da unidade móvel de saúde localizado a  quadra central de esporte, que dentro do recorte da análise tratava-se de um cenário aonde se estabeleciam encontros e trocas das mais diferentes esferas (cultural, lazer, religiosa, política e associativa).
           A equipe de saúde, formada pelo médico de saúde da família, enfermeira e técnicos de enfermagem, atendia em um ônibus da unidade móvel de saúde priorizando a promoção e prevenção da saúde da mulher, do idoso e da criança, por meio de palestras realizadas na quadra de esportes da escola da comunidade e atendimento no ônibus; ou seja, nosso espaço vivo de atuação fazia-se em um ônibus móvel de saúde, localizado em uma quadra de referência de atuação pública, no qual transitavam nossos atores sociais (comunidade), levando através de suas comunicações diárias, durante e através das consultas e palestras, direta e indiretamente, o diálogo da comunidade (Leach, 1989), caracterizando assim a noção de pedaço, determinado por um espaço físico (unidade móvel de saúde e quadra central de esporte) e rede social de relações estabelecido, por grau de parentescos ou não, neste espaço físico (Magnani, 1998).
O interessante evidenciava-se que por este mesmo espaço físico e social (pedaço), transitavam varias manchas, que variavam segundo a temporalidade do local; durante o período matutino os carretos traziam os moradores rurais mais distantes para atendimento e a quadra central servia de ponto de comércio local, à tarde o atendimento a comunidade local e no período vespertino na quadra esportiva se davam as partidas de futebol e as paqueras entre os jovens. Dentre as manchas que circulavam por este espaço físico, estabelecendo relações sociais, o grupo que elegemos como objeto para uma proposta de pesquisa participante foram o de jovens.
          Ao realizarmos palestras educativas sobre DST na escola local, a diretora nos manifestou sua preocupação quanto à possibilidade de ter um grande número de alunos com distúrbio de aprendizagem e comportamento, uma vez que a grande maioria das crianças sabia ler, mas não tinha capacidade para interpretar o que estava lendo. Mostrou-se preocupada, também, com o comportamento agressivo manifestado por alguns alunos no ambiente escolar.
             Estudando a dinâmica da região mais profundamente, observamos que essas crianças, na grande maioria, ajudavam os pais no laboro do meio rural, tinham uma alimentação e merenda deficiente do ponto de vista nutricional, e seus pais biológicos, com raras exceções, eram dependentes de álcool.
              Alem de todos esses fatores desfavoráveis, os educadores, na grande maioria das vezes, eram escolhidos por apadrinhamento político e, geralmente, não tinham o mínimo de formação profissional necessária para assumirem a responsabilidade que lhes competia. Os efeitos dessa situação foram, aliás, vivenciados por minha filha, que estudou em uma das escolas públicas do município.
          Discutindo e avaliando essa situação com a equipe, entendemos que ali havia vários fatores favoráveis ao desenvolvimento de distúrbios da aprendizagem, entre eles, déficit nutricional, problemas emocionais familiares e falta de capacitação adequada dos educadores.
           Aproximava-se a comemoração do dia internacional da saúde. Uma técnica de enfermagem que estudara no colégio propôs fazermos uma representação teatral sobre os riscos de contaminação pelo vírus HIV, visando uma ação integrativa de promoção e prevenção da saúde, envolvendo Educação-Saúde-Comunidade.
           Utilizamo-nos do próprio ônibus de saúde como parte do cenário da dramatização. Colocamos uma faixa no ônibus com os dizeres “NÃO EMBARQUE NESTA VIAGEM!”.
          Para embarcar no ônibus os supostos passageiros recebiam bilhetes nos quais havia o desenho de uma caveira. No primeiro ambiente observavam jovens, em ambiente e trajes psicodélicos, se drogando com seringas não descartáveis. No segundo ambiente, um casal de ribeirinhos proseava durante o jantar: a esposa relatava que assistira a uma palestra sobre os riscos de contaminação pelo HIV e DST através da relação sexual sem camisinha e o marido, reticente, dizia que doutor nenhum vai mandar na sua casa. Esse quadro era concluído com a esposa dizendo que sem camisinha não tem nha-nha, termo local para relação sexual. No terceiro e último ato, os supostos passageiros subiam pela porta dianteira do ônibus de saúde e se defrontavam com uma criança em um caixão devidamente ornamentado, cedido pela funerária da cidade, onde estava escrito “MORREU DE AIDS”. No final, eles eram convidados a olhar para um quadro espelhado, envolto por um pano preto, com os seguintes dizeres: “VEJA QUEM SERA A PRÓXIMA VÍTIMA DA AIDS SE NÃO USAR CAMISINHA”.
         Os alunos que não gostavam de dramatizar adaptaram uma música de Hip-Hop com termos de conscientização para os riscos de contaminação para o HIV, gravaram um CD na rádio local e apresentaram sua música no palco.
Contextos de debate e fundamentação teórica

Estruturado pelo conceito de Schmidt (2005), a proposta da equipe, embora amadora, relembra conceitos de uma pesquisa participante, pois o sujeito da pesquisa (equipe da saúde da família) faz parte do campo investigado, por meio direto, através dos agentes comunitários de saúde, que residiam na comunidade, sendo interlocutores das necessidades da mesma; e indiretamente por meio de técnicos, auxiliares de enfermagem, enfermeira padrão e médico, que por ali transitavam e que além de compor parte do campo investigado, atuavam como sujeito ativo, pois juntamente com a comunidade de jovens local, foi proposta uma ação sócio-educativa, por meio de dramatização, visando à prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, em busca de um saber construído coletivamente e mudança de hábitos sociais, levando a um questionamento político envolvendo como tema principal a tríade saúde-eduação-comunidade.
O pesquisador etnográfico ele busca transcrever o viver do outro, através do seu próprio olhar sem perder a visão do próximo, transcrevendo Schimidt (2005): “é o respeito pelo outro que se concretiza no interesse por seus modos de viver, sentir e pensar, sem cobrar que ele seja o que não é”.
Este estudo é inserido na autoetnografia, pois ao buscar inserir o objeto de investigação na fronteira das identidades profissional e pessoal, o pesquisador adota uma postura científica que não exclui o reconhecimento dos próprios sentimentos e emoções. Pelo contrário: os legitima. A autoetnografia, segundo Ellis (1950), é um gênero de escrita e de pesquisa autobiográfica que explicita múltiplas camadas ou níveis de consciência:
Os autoetnógrafos contemplam, olham para frente e para trás, através de uma lente etnográfica ampla, focalizam aspectos exteriores sociais e culturais da própria experiência pessoal e depois, voltando o olhar para dentro, expõem um ego (self) vulnerável, movido por interpretações culturais e capaz de mover, através delas, rejeitando-as ou resistindo a elas. (p.37)
Ao compararmos etnografia e autoetnografia constatamos que os pesquisadores que adotam a etnografia como método “voltam seu olhar para dentro, visando explicitar seu modo pessoal de responder ao trabalho de campo e as mudanças pessoais decorrentes dessa experiência”.  A etnografia utiliza um método de pesquisa qualitativa no qual o pesquisador usa observação participante e entrevistas para melhor compreender a cultura de um grupo.
A autoetnografia, por sua vez, consiste em uma versão mais extrema dessa prática: “o cientista social e comportamental, desde o início, coloca sua experiência no foco primário de seu estudo”. (ESPING, 2010, p. 201). A autoetnografia prioriza a importância da experiência subjetiva do próprio pesquisador mais do que as crenças e práticas de outros.
Esping valoriza muito as contribuições conceituais de Viktor Frankl na formulação do método autoetnográfico e assinala a importância por ele atribuída às situações em que os dados advêm de um território de trans-subjetividade, ou seja, situações nas quais vários autoetnógrafos, servindo-se cada qual de sua posição, disposição e situação, colaboram para formar uma compreensão compartilhada, ao invés de um único autoetnógrafo mover-se simultaneamente em várias posições. (p. 201). E temos aqui uma zona de interface da autoetnografia com a transdisciplinaridade.
Ao pretender tratar do tema transdisciplinaridade convém alternar dados teóricos com ilustrações práticas dos conceitos. Iribarry (2003) tece esclarecedoras considerações sobre os conceitos de disciplina e suas derivações – multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, e os examina com acuidade. Apresentam dados históricos e fundamentos da transdisciplinaridade e, ainda, examina os princípios práticos do trabalho de equipe em situação de transdisciplinaridade. Tais princípios, organizados a partir do trabalho em equipe, dão origem a novos dispositivos, favorecem a familiarização dos profissionais com áreas distintas da sua, confere legibilidade aos discursos, favorece o compartilhamento de idéias e a tomada horizontal de decisões.
        Com certeza, embora essa experiência tenha sido realizada em uma única comunidade, ela foi, no mínimo, importante para que pudéssemos reavaliar a importância, para a escola e a comunidade, da unidade básica de saúde como gerente de promoção e integração da saúde, através da interdisciplinaridade. Foi importante também para nos conscientizar da importância de visualizarmos as demandas clínicas a partir de um saber integral, o qual busca através da problematização do trabalho de campo uma construção de um saber compartilhado estruturado a partir da interlocução e diálogo entre sujeito e objeto de estudo, firmando o conteúdo da ementa desta disciplina .
Posteriormente, já em São Paulo, a leitura do Manifesto de Lançamento do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade (São Paulo, 13 de novembro, 2010), tive a satisfação de ver, agora sistematizados, os princípios que fundamentaram a ação de nossa equipe na comunidade de Cantinho, na Bahia: contra a medicalização, a favor do direito à educação pública gratuita e de qualidade e o respeito à diversidade e singularidade, em especial, nos processos de aprendizagem.
          A leitura desse Manifesto, associada ao fato de eu estar novamente atuando como médico, desta vez como neurologista da AMA-Especialidades Parque Peruche, situada ao lado de uma escola municipal de São Paulo, reacendeu os velhos ideais, aqueles ideais despertados durante minha experiência na Bahia e esses ideais, reacendidos, são a força motriz para a realização do projeto de doutoramento do departamento de Psicologia em Saúde Escolar e Desenvolvimento Humano da Universidade de São Paulo com seguinte tema: a interação Educação-Saúde-Comunidade visando abrir discussão entre equipe transdisciplinar de ações de prevenção e promoção da saúde cognitiva infantil contraria a medicalização da sociedade e a rotulação de indivíduos, particularmente na infância.