Como e por que privatizar não é a solução para os problemas do SUS

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Compartilho entrevista quentinha da Telessaúde Informa de SC com Gastão Wagner sobre a privatização do SUS

Gastão Wagner, professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp, apresenta evidências sanitárias, indicadores econômicos e contextos políticos que contribuem para a discussão sobre a privatização dos sistemas nacionais de saúde.

TI – Como você avalia a forma de gerenciamento e de financiamento atual do SUS?

Gastão Wagner – O gerenciamento do SUS tem vários problemas. Alguns são decorrentes do federalismo brasileiro, da dificuldade de integração entre os municípios, os estados e a União, entre o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais. A autonomia faz com o Ministério tenha algumas prioridades, e os estados e municípios, outras. A tradição clientelista do Estado brasileiro é outro problema sério. Os governantes dos vários níveis da federação fazem alianças com partidos, com grupos políticos, e a moeda de troca costuma ser cargos e diferentes interesses. Isso vem acontecendo no SUS, o que faz com que ele seja formado não por pessoas com capacidade para trabalhar com saúde, mas por aqueles que têm representatividade nos partidos. O terceiro problema é que não houve uma reforma administrativa importante, então as normas da administração direta do Estado brasileiro foram transportadas para o SUS sem nenhuma adaptação, sem considerar as especificidades da saúde. Isso tem emperrado e dificultado licitações, reposições, compra de produtos, contratação de pessoas. Quanto ao financiamento, há um problema grave: nós não temos recursos necessários para o conjunto de responsa-bilidades sanitárias do SUS. O que temos é um subfinanciamento crônico e não há disposição política dos vários governos de fazer um investimento maior no SUS. Assim se faz a gestão da miséria, se é obrigado a priorizar alguns programas, algumas integrações, em detrimento de outros. A sus¬tentabilidade do SUS até agora tem se dado devido a um grau muito grande de exploração dos profissionais do SUS: são mal remunerados, não têm carreira, não têm estabilidade, não têm uma política de aposentadoria adequada. Então o subfinancia¬mento tem consequências muito negativas.

Uma dessas consequências seria a não manutenção e construção de um SUS público e de qualidade, como se espera?

Gastão Wagner – Esses problemas crônicos reforçam o discurso da inviabilidade do SUS como um sistema público. O município que começa a expandir o SUS no caminho da integralidade passa a ter problemas de prestação de contas por gastar muito com re-cursos humanos. Aí vem a justificativa das terceirizações, da contratação de prestação direta de serviços por entidades privadas, o que aumenta a fragmentação e dificulta a gestão do SUS. Além disso, está na gênese do SUS uma dependência muito grande do setor privado. Uma área da atenção à saúde é privada, que é a saúde suplementar, as cooperativas médicas. Perto de 70% da capacidade hospitalar do SUS é comprada através de contratos e convênios de hospitais privados e filantrópicos. Então o SUS, ao contrário do sistema português, espanhol, inglês e canadense, grandes referências para o Brasil, se apoiou no sistema privado. Por isso, apesar de o Brasil ter, legal¬mente, um sistema público de saúde, o gasto público é menor que o gasto privado. Nos países que têm sistemas nacionais de saúde, o gasto público de saúde é de 70% a 90%. No Brasil, o mercado privado tem 54% do recurso financeiro para gastar em saúde e atende apenas 25% da população, com um padrão de atendimento igual ou pior ao do SUS. Já o SUS tem 46% e atende no mínimo 70, 75% da população, além de fazer muitas coisas para quem tem saúde suplementar. Então, é uma aberração! Essas soluções de mercado custam mais caro e têm uma eficácia menor. A Inglaterra gasta metade do que os EUA, com resultados muito melhores, se tomarmos a expectativa de vida, o acesso e a inclusão.
Mas estão acontecendo mudanças significativas no sistema de saúde da Inglaterra, por exemplo, a caminho da privatização. Por que acontecem se economicamente não valem a pena?

Gastão Wagner – A questão é política. A política não se faz com base em evidências econômicas e técnicas apenas, mas sim com base em interesses de luta, e os interesses não são homogêneos. Na Europa nós temos evidências sanitárias a favor dos sistemas nacionais de saúde. Só que em 2008, com a crise financeira, o estado europeu pegou recurso próprio para salvar os bancos, pra pagar juros, etc. Mas na hora de corrigir o déficit dos estados, eles não cortam o pagamento de juros, não repassam ao setor financeiro, e estão cortando em setores como os sistemas nacionais de saúde, os sistemas educacionais, com cortes horizontais de salários, de investimentos, o que tira, da maior parte da população, direitos e benefícios que são históricos. Isso é possível porque os partidos que apoiaram as políticas públicas historicamente ao longo do século XX traíram a história deles mesmos. Então é uma postura conservadora e que tem que ser enfrentada com discursos, com ação política, técnica e legislativa, mas boa parte dos intelectuais da saúde coletiva brasileira estão caindo nesse “canto de sereia”, e aceitando esse discurso de que o SUS não é viável.

E quais são as ameaças reais que o SUS sofre?

Gastão Wagner – Há uma comissão do Senado agora propondo a reforma do SUS, a criação de um sistema misto no Brasil, uma integração entre a saúde suplementar, o setor privado, o mercado e o SUS. Quer tornar a liquidação do SUS oficial. Essa comissão tem a maioria de partidos que no passado apoiaram o SUS. É como na Inglaterra, nós vamos ter que lutar contra isso. A presidenta Dilma fez uma reunião com algumas empresas da área de saúde suplementar, e saíram rumores de que haveria um subsídio, que o Estado brasileiro passaria a comprar serviços, que daria isenção fiscal, mais estímulos ainda a esse setor de mercado, enquanto no SUS falta dinheiro, falta recurso e temos um subfinanciamento. Houve uma reação muito forte.

De quem partiu essa reação?

Gastão Wagner – São profissionais de saúde, suas famílias, e milhões de brasileiros que têm uma dependência muito grande do SUS e que passaram a apostar no sistema. A intelectualidade e algumas entidades profissionais também estão fazendo a defesa do financiamento da Atenção Bá¬sica, do crescimento do SUS, da diminuição do clientelismo, do partidarismo, do desvio de recursos, da mudança da formação dos professores, dos estudantes. Essa agressão aos sistemas nacionais de saúde está obrigando o res¬surgimento do movimento sanitário, com a mesma composição. Nos falta agora uma plataforma unificada, como a 8ª Conferência [Nacional de Saúde] deu naquele tempo. O custo do setor privado é muito alto, é o dobro. Como eles vão estender isso para toda a população brasileira? A exclusão do SUS significa deixar metade, 60% da população brasileira sem acesso.

E qual é a contraproposta à privatização?

Gastão Wagner – É fazer o que já está definido. Nós já temos uma proposta com relação ao modelo de atenção: o papel da Atenção Básica, a ideia de funcionar em rede, com atendimento de equipe multiprofissional, uso racional de medicamentos, e com um conjunto de diretrizes. No financiamento também temos uma proposta: dobrar os recursos do SUS, tirar recurso de outro tipo de investimento e investir na saúde. Agora, onde há mais polêmica e não há um projeto único, é no modelo de gestão. A gente têm a gestão participativa, mas até onde vão os usuários no controle? Há consenso de que os cargos de gestão do SUS, exceto ministro, secretário e assessores, não deveriam ser de confiança. A gente deveria fazer concursos internos, com mandato, como as universidades fazem. E como é que se integra o sistema federativo brasileiro, se a gente municipalizou demais, fragmentou demais? Que reforma vamos fazer na administração direta? Os sistemas nacionais nasceram para tirar a atenção à saúde do mercado, senão ela se degrada, encarece e medicaliza. Isso é uma conclusão que tem 100 anos, nós temos evidências disso.

Maio 2013

Telessaúde de Santa Catarina