Instituto de Saúde Mental dos EUA “abandona” o DSM-5: o que isto significa?

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Algumas semanas atrás foi disseminada a notícia de que o Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH), principal financiador de pesquisas na área do país, teria "abandonado" o DSM-5 (o novo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais), apenas duas semanas antes do seu lançamento. Na verdade, mais correto seria dizer que o instituto declarou independência do manual no que diz respeito ao financiamento de pesquisas. Segundo comunicado escrito por seu presidente Thomas Inse e publicado no site do Instituto, o NIMH irá "re-orientar sua pesquisa para longe de categorias do DSM. Daqui para frente iremos apoiar projetos de pesquisa que olhem além das categorias atuais – ou que subdividam as categorias atuais – para que se comece a desenvolver um sistema melhor". Inse volta sua crítica especialmente para a validade do DSM-5. Diz ele: "a força de cada uma das edições do DSM tem sido sua 'confiabilidade' – cada edição tem assegurado que os médicos se utilizem dos mesmos termos das mesmas maneiras. O ponto fraco é a falta de validade (lack of vality). Ao contrário de nossas definições de doença isquêmica do coração, linfoma ou AIDS, os diagnósticos do DSM são baseados em um consenso sobre grupos de sintomas clínicos, e não em qualquer medida objetiva de laboratório".  Em função disto, Inse conclui: "Pacientes com transtornos mentais merecem algo melhor".

No caso, este "algo melhor" refere-se ao projeto Research Domain Criteria (RDoC), criado em 2009 pela NIMH com o objetivo de desenvolver "novas formas de classificar as psicopatologias com base nas dimensões do comportamento observável e medidas neurobiológicas". Como apontam neste link, "a intenção é traduzir o rápido progresso nas pesquisas neurobiológicas e comportamentais básicas para uma compreensão mais integradora da psicopatologia e o desenvolvimento de novos e/ou otimizados tratamentos combinados para distúrbios mentais". Em suma, pretendem ir além do DSM com seu check-list de sintomas, desenvolvendo parâmetros objetivos – leia-se: biológicos – para um diagnóstico mais preciso dos transtornos mentais – leia-se: cerebrais. Como afirmou Inse para o jornal New York Times sobre o DSM, "a biologia nunca leu este livro". Segundo ele, "enquanto a comunidade de pesquisa tomar o DSM como uma bíblia, nós nunca vamos progredir".Já o diretor do RDoC Bruce Cuthbert disse, nesta entrevista, que no futuro ele imagina que "em vez de dizer que um paciente tem depressão, ansiedade ou stress pós-traumático, diremos que o seu problema é, por exemplo, uma disfunção nos circuitos cerebrais que regulam as emoções. O mesmo para as doenças psicóticas, como esquizofrenia. Diremos, por exemplo, que o problema do paciente é um transtorno de disfunção das sinapses. E então falaremos de grupos de genes que regulam ou que afetam a estrutura das sinapses. Pode ser que a combinação desses genes, e não mais a soma dos sintomas, nos deem ideias diferentes sobre esquizofrenia ou transtorno bipolar". Neste futuro imaginado por ele, em que todos os transtornos mentais passam a ser entendidos e tratados como distúrbios cerebrais/genéticos, será que a Psicologia e a Psiquiatria ("ciências" da "mente") ainda teriam espaço? De qualquer forma, o RDoC é um projeto de longo prazo, praticamente uma missão à Marte – nas palavras do blog Mind Hacks. Por enquanto, como aponta Cuthbert, "o DSM ainda é a melhor forma de diagnosticar os transtornos psiquiátricos que conhecemos"

Neste sentido, algumas semanas depois da potencialmente sísmica notícia do "abandono" do DSM-5 pelo NIMH, um artigo escrito numa parceria entre o mesmo Thomas Inse do artigo anterior, e o presidente da Associação Psiquiátrica Americana (APA, responsável pelo DSM) foi publicado no site do instituto. Tal artigo – intitulado "DSM-5 e RDoc: interesses compartilhados" – é, provavelmente, uma tentativa de acalmar os ânimos daqueles que viram na posição da NIMH uma cisão com o DSM e, logicamente, com a APA. Segundo eles, o RDoC iria além do que o DSM-5 foi ou pode ir neste momento. Neste sentido, os autores deixam claro que o DSM-5, apesar de representar um avanço para a prática clínica, não é "suficiente para os pesquisadores". Assim, o abandono do DSM-5 pelo NIMH não significa que RDoC e DSM são concorrentes, mas sim que são complementares pois, enquanto o DSM reflete o progresso científico observado desde a última edição do manual, publicado em 1994, o RDoC é um novo esforço global para redefinir a agenda de pesquisa para a doença mental. Conclusão: "ao continuarem a trabalhar em conjunto, as duas organizações estão empenhadas em melhorar os resultados para as pessoas com algumas das doenças mais incapacitantes em toda a medicina". Toda esta história deixou bem claro para mim que o que está em jogo são duas visões biologizantes dos transtornos mentais e o que parecia inicialmente uma ruptura nada mais é do que uma pequena divergência. Ao que parece, pouca coisa mudou.

Texto originalmente publicado no blog Psicologia dos Psicólogos: https://migre.me/eyxk8