Prosas, poesias e silêncios: provocações de uma usuária do SUS

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Indaguei a um amigo querido, amante de versos e prosas, porque ele continuava vindo ao trabalho se o seu corpo, cansado de tantas sessões de quimio, não aguentava realizar os procedimentos que sua profissão lhe exige. Ele me respondeu com silêncio.

Verso. Prosa. Silêncio. Apenas um olhar, às vezes, antecede aquilo que as palavras diriam se pronunciadas. Existem amigos com os quais desenvolvemos tanta intimidade que um olhar é o bastante para captarmos se ele “está” verso, prosa ou silêncio. Porque silêncio não é um vazio. Há um silêncio – vazio de palavras ditas – que enche os nossos sentidos; que traz à alma da gente, a transparência de um vitral vivo de cores diversas que se atenuam ou escapam conforme a luz que o nosso olhar de amigo lhes empresta. Pois foi assim que compreendi o silêncio desse amigo.

Pouco depois, encontrei-o na sala de espera conversando com os usuários nos “cinco minutos pelo SUS,” contente por estar ali. Amigo-prosa.
Outro dia, lá estava ele ao lado da mesa da Tenda do Conto com o seu violão. Amigo-verso.

Às vezes, esse mesmo olhar que pre-vê, se surpreende. Porque as coisas se misturam, porque sombras e luzes se ofuscam, porque há momentos em que somos guiados pelas nossas cegueiras. Porque, às vezes, na ânsia de nos fazermos ouvir, atravessamos as vozes e os silêncios do outro. Assim foi na última roda que tivemos no Panatis.
Discutíamos exaustivamente acerca das tantas dificuldades: conciliar número de atendimentos e demandas, minimizar os efeitos da estrutura física inadequada, da falta de pessoal, da insatisfação, do cansaço, da pressão sentida por um trabalho que parecia nos sufocar. Conflitos que pensávamos superados vêm de novo à tona e parecem nos perseguir puxando-nos para girar em torno de um mesmo lugar fazendo-nos acreditar que nada foi feito.
A agente de saúde relata o caso de um usuário que compareceu durante três dias consecutivos à unidade, foi “atendido”, mas não teve o seu problema “solucionado”. Propõe repensarmos o “acolhimento”.

O avançar da hora exigia o fim daquela roda. Sensação de desânimo e fracasso; de não visualização de saídas. Uma colega pede tempo para uma última fala. Abre cuidadosamente um papel e começa a leitura.

“Como usuária do posto de saúde do Panatis-Natal, quero registrar e agradecer pela dedicação e presteza dos funcionários deste posto. Sou diabética e como todo diabético preciso de cuidados especiais, já que estou com um ferimento bem sofrido no meu pé. Ressalto que desde a saída da minha casa acompanhada pelo agente de saúde até as minhas constantes visitas ao posto, sempre fui bem tratada[…]

A essa altura da leitura, alguns que estavam de pé já preparados para sair, retornam à roda…a colega continua mais lentamente:

Creio que a palavra e o sentido de humanização é bem utilizado neste local, pois fazem tudo para tranquilizar os pacientes […]Estou quase boa. Tivemos a convite, a visita da profissional especialista em feridas vendo as necessidades individuais de cada um […] Tenho certeza que estes profissionais deixam seu local de serviço com a consciência do dever de ser humano cumprido […]

Agora, entreolhávamo-nos emocionados, reconhecendo uns aos outros, em silêncio…Com um tom de voz que parecia anunciar poesias íntimas, como se estivesse a expor poesia em um varal, a colega prosseguia:

Gostaria de tornar público este agradecimento, pois na minha opinião, é uma maneira de reconhecer o lado humano das pessoas[…] Aproveito para pedir que este posto de saúde seja notificado com esta minha manifestação.

No papel que portava o timbre da Ouvidoria Geral do SUS, as palavras escritas conferiam ao documento, uma outra estética. As palavras da usuária destoavam do formato do papel, dos despachos assinados nas várias instâncias; em nada coincidiam com os olhares que tínhamos sobre os documentos e seus trâmites institucionais. Imaginávamos o tempo dela dedicado à escolha das palavras, a atenção cuidadosa em contemplar toda a equipe na sua escrita. 

Aquele não era um documento qualquer. Ali, o inesperado se atravessava vivo rompendo as normas e fazendo pouco caso das nossas cegueiras.

As palavras da usuária/cuidadora seguiam compondo novos olhares, tal qual nosso amigo que, transpondo os limites físicos, na alegria da interação com o outro, constrói outro corpo na voz e no violão. Nos silêncios cheios de sentidos, percebíamos, como ele, que há momentos em que cuidador e cuidado já não se distinguem. Em nossos olhares, os silêncios eram prosas se fazendo poesia. Éramos cuidadores sendo cuidados. Éramos a um só tempo: prosa, poesia e silêncio.