Não Existem Pacientes Terminais

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As palavras portam sentidos que mal nos damos conta. Outras vezes, possuem marcas de um tempo que já se foi. Ainda existem pessoas que “discam” um número ao usar o telefone quando na verdade os telefones possuem apenas teclas a algum tempo.

Mas esse texto não irá seguir nenhum caminho obscuro da etimologia para surpreender o leitor com atavismos, alguns até cômicos. Quero ressaltar outras formas de obscuridade. Por exemplo, raramente os pacientes morrem nos hospitais. Eles vão a óbito. Aliás, todos nós sairemos de um hospital quando internados, e o ato de sair é alta hospitalar. Existe até “alta por óbito”.

No reino das precisões técnicas, dominado pelas terminologias que recortam a realidade e nomeiam tudo, torna-se necessário dizer as coisas de forma que só os iniciados saibam os sentidos mais “verdadeiros”. Dessa forma, quem está morrendo de fato não está morrendo. Chamar essa pessoa de moribunda parece uma  ofensa tão dissonante quanto a própria palavra. Temos que chamar quem está morrendo de “paciente terminal”.

Mas o que é o paciente terminal? Seria alguém “irrecuperável”, aquele que apresenta uma situação clínica onde as medidas que possibilitem o resgate das condições de saúde são inócuas e/ou inexistentes. Além disso, a proximidade da morte se caracteriza como inevitável e relativamente previsível.

Antes de conhecer a expressão técnica, achava que “terminais” fossem os terminais de petróleo ou então os terminais de transporte urbano. Aqui mesmo em Fortaleza existem muitos. Esse termo está intimamente relacionado ao transporte, pois existem os terminais aéreos como sinônimos de aeroportos.

Mas esperem. Como posso dizer que uma pessoa seja “terminal” posto que isso não me diferencia dela? Sim, pois se terminalidade refere-se à condição de ser mortal, então sou igual ao paciente que está morrendo. Quem usa o rótulo sobre o outro na verdade pode se acondicionar com certo desconforto a terminologia que utiliza.  Mais, mesmo no âmbito da terminologia, um dia o rótulo lhe cairá adequadamente pois a saúde é um bem que escasseia com o passar do tempo.

Queria dividir com vocês uma história que ocorreu bem próximo de mim. Uma senhora de 93 anos vítima de um extenso AVC, matriarca de sua família, estava agonizando na UTI de um bom hospital numa cidade média  no interior de São Paulo. Tão amada quanto temida, ela era cercada pelos cuidados dos filhos até o fim. Mesmo num ambiente tão restrito quanto uma UTI, um dos filhos usava as prerrogativas de ser médico para ter seu salvo conduto para aquele reino tão fechado. E junto com ele, um a um, achegavam-se outros membros da família, seja para uma oração, seja para um breve olhar sobre o fim que parecia se aproximar rapidamente.

A maioria dos familiares morava numa cidade distante a 45 minutos de carro onde estava o hospital. Quase todos os dias eles se deslocavam para ver a “senhora terminal”, sim, ela era terminal já que estava cumprindo os requisitos técnicos para receber o rótulo. Num desses dias de ida e volta, o filho médico, alguém que se cuidava muito bem, que usava dos segredos da medicina para uma vida saudável, que tinha boa dieta e fazia atividade física rotineiramente, que no alto dos seus 56 anos parecia ter pelo menos 10 anos a menos; perde a direção do automóvel, com chuva fina e pista escorregadia, atravessa a outra mão da estrada e bate de frente num caminhão. Com ele morrem a mulher, um filho e dois netos.

Um  terrível clima de comoção tomou conta de todos como sempre acontece quando a morte resolve ser muito ativa em sua terrível colheita. Toda a família compareceu aos rituais fúnebres, todos atônitos, todos não sabendo direito o que fazer com tanta dor e como buscar energia para conforta-se uns aos outros. Todos compareceram, menos a matriarca de 93 anos, nossa paciente terminal que sobreviveu por mais 7 dias.

Ninguém deveria ser “paciente terminal”. Como nossa triste história conta, o rótulo é tecnicamente um tanto impreciso. TODOS SOMOS TERMINAIS, no sentido amplo da expressão já que todos morreremos. Mas usar o termo no campo da saúde parece ser uma espécie de licença para se matar mais depressa, seja de abandono, seja de descuido, seja pelo afã de se querer “salvar” expondo a pessoa aos mais terríveis rituais de tortura disfarçados em procedimentos médicos.

Paciente Terminal” é a expressão que acompanha a frase infeliz, quando dizemos que “nada mais pode ser feito”. Chamar alguém de terminal acoberta o desconhecimento de que existem possibilidades de se continuar vivendo com intensidade e alegria. É o momento de tentar livrar-se das dores para podermos usufruir ainda mais algum tempo das belezas desse mundo,  e preparar-se para tudo que for necessário para a partida…não tão rápida que não permita realizar ainda alguns desejos; e nem tão lenta que permita a gente se cansar da vida.

É por isso que devemos substituir a expressão “terminal” para “paciente em vulnerabilidade extrema”. Todos somos vulneráveis à dor, ao sofrimento e à morte. Mas existem aqueles que vivem o extremo da vulnerabilidade. Para que um dia cuidem adequadamente de nós quando chegarmos a esse limite, é necessário mudar radicalmente a forma como lidamos com aqueles que oficialmente estão morrendo. Digo “oficialmente” porque, sabemos todos nós, nossa vulnerabilidade pode se tornar extrema a qualquer momento.