A Doença da Ministra, a Morte e Nossa Humanidade

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A Doença da Ministra, a Morte e Nossa Humanidade
    
 Podemos ficar vendo televisão e nos emocionarmos com uma novela. Nenhuma falta grave, afinal, a vida nos condiciona a termos determinadas reações. Sou do tipo "manteiga derretida", meio sensível a qualquer melodrama. Uma parte de mim execra este tipo de manifestação cultural, atira ferozmente contra o reino dos clichês, revolta-se contra o filme sobre o pai que leva o filho com os dias contados para um parque de diversões. O roteirista coloca a cena com o objetivo de nos arrancar lágrimas na marretada e, de fato, quase sempre acaba conseguindo. Mas outra parte de mim
entrega-se a proposta do enredo e, sem vergonha alguma, chora copiosamente.

Parece que sempre dá certo. Do teatro passando pelo cinema e desaguando nas novelas, as pessoas ficam meio que abertas às lágrimas tidas como fáceis. Podemos acessar nossas mentes e, feito computadores atrás de arquivos perdidos, encontraremos muitas explicações do porque dessas lágrimas correrem feito cachoeira. Nunca descobriremos efetivamente porque José de Arimatéia chorou ao ver o sofrimento da personagem de novela que estava morrendo de câncer ou porque Maria da Glória debulhou-se em prantos ao ver o noticiário sobre a morte do Papa. Mas podemos intuir uma "abstração do melodrama", uma "teoria geral da lágrima".

Eu não me atreveria a perturbar o leitor com tal ousadia. Essa tarefa deve estar a cargo de críticos de arte, dos filósofos profissionais, dos sociólogos e antropólogos da subjetividade e da emoção, de alguns  psicólogos que afogados em tanta soberba exigem o monopólio do estudo do comportamento humano. Um dia, quem sabe, o acúmulo de conhecimento resolverá a pendenga se vivemos como uma barata esmagada pela indústria cultural ou se existe uma imanência humana em relação a dor ou ao sofrimento. No entanto, permito-me a uma constatação singela. As pessoas se interessam tanto pela morte na mídia porque, talvez, sintam e discutam a partir da fição e da realidade o próprio morrer pessoal. È a mídia com seu conjunto de imagens pasteurizadas e seus assuntos programados nosso pobre e principal canal de interlocução com a morte e seus desdobramentos existenciais

A morte parece ser a "nova pornografia", o assunto proibido, o tabu que se encastela nesse novo milênio que nos acena com as possibilidades irrestritas do conhecimento científico: "Acabará a fome da Humanidade" dizem alguns, "Viveremos em grande conforto" dizem outros, "acabarão as doenças" profetizam outros tantos. Mas, a verdadeira ilusão é aquela que afirma: "gozaremos da imortalidade". Esta afirmativa, já posta desde a Epopéia de Gilgamesh*, nos tornam seres absolutamente preocupados com a questão da morte e do morrer o que nos leva, necessariamente, a refletir sobre a própria vida a ponto de alguns transformá-la no mais absoluto tormento. O medo de morrer transforma-se no medo de viver. Neste sentido, olhar a tragédia dos personagens dos filmes ou da vida real pode inspirar as pessoas a produzirem o azedume de misturar vida e ficção muitas vezes dando  roupagens de realidade a uma peça ficcional

Talvez por isso tantos choram, talvez por isso as redações dos jornais e os autores de novela, consciente e inconscientemente, transformem a morte do outro em mercadoria para aqueles que são incapazes de pensar diretamente a própria morte, porque agir dessa forma poderia significar constatar, ainda em vida, a miséria existencial onde  maioria de nós se encontra…miséria de ausências de alternativas, de vínculos afetivos artificiais, de trabalhos penosos e vazios de conteúdo. Nossa sociedade é repleta de objetividade, tem obsessão por medidas que aprofundam o conhecimento da natureza mais parecem produzir uma cultura da superficialidade da individualidade inserida na vida coletiva. Dai a necessidade de gráficos precisos para localizar as células cancerosas do astro do rock, dai ficarmos grudados na tela acompanhando o andar cambaleante de um pobre Marlon Brando já no fim da vida escoltado por “paparazzis”, dai a fixação por filmes de terror. Tudo isso permite nos aproximarmos da morte sem de fato refletirmos sobre ela em nossas vidas!
    
 Não podemos mais discutir o que está interditado, não estamos mais preparados para enfrentar a morte  a não ser como produto de consumo e, como tal, um produto que vai gradativamente submetendo-se à ditadura dos rótulos massificados e massificadores. Sejam bem vindos ao mundo da mercantilizaçao da morte e do morrer!. Sejam de fato o que  todos são, comportem-se como coisas, como produtos que podem ser trocados ao bel prazer dos desejos da mão invisível. Nietzsche estava errado, deus não morreu, ele existe e seu nome é Mercado! Como um Midas invertido, que transforma ouro em excrementos, a mão invisível nos esfrega a tragédia da morte na mídia porque o segundo de publicidade ficará mais caro. Os jornais nos guiam aos labirintos das meninges do astro do cinema porque querem vender mais, não por solidariedade à tragédia de um ser humano.

Agora, a bola da vez é o câncer da ministra Dilma. Indecorosamente somos expostos a análises de conjuntura onde o futuro desse país está nas mãos de um linfoma. Curiosamente, milhões de pessoas estão diante das telas para aprenderem noções básicas de oncologia e sucessão presidencial. Transformaram a saúde da ministra em análise de conjuntura. Uns dizem que tudo é mentira para humanizar uma pessoa fria e sem carisma. Outros exaltam a fibra e a coragem de uma mulher que publicamente enfrenta seu câncer. Ora senhores, por favor,  guardemos um certo nível de compostura sobre a dor, o sofrimento e a  morte…sim…pois é isso que sempre passa pela cabeça das pessoas quando ouvem que alguém tem “aquela doença. Deixemos de hipocrisia!

Será que vendedores de jornais e seus leitores não aprenderam ainda que a dor, o sofrimento e o morrer do outro também é o nosso morrer?  Como dizia o poeta Cazuza: "Senhoras e Senhores, trago boas novas, eu vi a cara da morte e ela estava viva!". Façamos o jogo das análises políticas. Nele, a vida e a morte sempre se digladiaram. Mas nesse tabuleiro, como todo jogo, há que se existir algumas regras. O homem vivencia uma luta sem quartel ha pelo menos cem mil anos pela definição destas. Muito já foi feito desde que Marx, o velho profeta ateu,  constatasse na segunda metade do século XIX que o homem estava adentrando em sua pré-história.

Depois de duas guerras mundiais, depois de campos de extermínio e agora quando o extermínio de crianças  em Dafur invade nossas salas ditas de estar pela TV, talvez uma regra fundamental possa ser firmada, qual seja,  que a tragédia pessoal de todos nós – o enfrentamento com determinação, alegria, dor e ponderação do fenômeno da morte – possa ser minimamente respeitado, seja naquilo que um personagem de filme possa evocar, seja naquilo que um ser humano real e concreto nos sinaliza. À Ministra Dilma Rosseti , todas as críticas positivas e negativas que nós como cidadãos, agentes ativos da construção da história, podemos e devemos fazer. Ao ser humano Dilma,  a solidariedade de todos nós, gladiadores da vida, pois, como eles diziam na Roma antiga: “Aqueles que vão morre te saúdam” Ministra!

 

* Mito sumério provavelmente relatado por volta do quarto milênio antes de cristo. Neste mito, a principal força movente do heroi é a busca de uma erva que possa lhe proporcionar a imortalidade.