Por uma psiquiatria comunitária

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Letícia Medeiros-Ferreira e Angel Martínez-Hernáez*

 

O artigo “Uma Lei Errada” e o posterior “A sociedade sem traumas”, escritos pelo conhecido poeta Ferreira Gullar e publicados na Ilustrada da Folha de São Paulo, cruzaram o oceano e desembarcaram na Espanha, deixando uma intensa sensação de desconcerto e indignação nos leitores e profissionais dedicados desde uma ou outra vertente à saúde mental. Seguramente, não passaram despercebidos pelos usuários de saúde mental, nem pelos profissionais nem pelos familiares de pessoas com esquizofrenia. São dos artigos incisivos e, também, absolutamente tergiversadores da realidade, no sentido de estar dotados de falta de conhecimento de todos os aspectos tratados. Não retratam a realidade dos diversos manicômios/ hospitais psiquiátricos brasileiros (não importa qual seja a denominação utilizada, os eufemismos são eufemismos), desconhecem a realidade dos tratamentos psicofarmacológicos atuais e erram gravemente quando generalizam o pensamento das famílias e quando, de forma prepotente, denominam a legislação psiquiátrica no Brasil como uma “lei idiota”.

Os artigos realizam uma caricatura simplista do modelo de assistência na comunidade. Consideram que a lei brasileira é errada “e idiota” por seguir um referente que o autor considera obsoleto (o italiano) mas não informam que, por exemplo, na maioria dos países europeus, faz varias décadas que praticamente ninguém defende o modelo de hospitalização, ainda que a cela seja mais ou menos confortável. As razões desta opção nas políticas européias de saúde mental são variadas e contundentes, entre elas que o citado modelo é anti-terapêutico, ineficiente e atenta contra os direitos humanos básicos.

Se não existe uma cardiologia ou uma urologia democráticas –como o Sr. Gullar se pergunta retoricamente- e sim a necessidade de uma psiquiatria “democrática” é, simplesmente, porque existe uma história prévia baseada na internação psiquiátrica involuntária que condenava a pessoas com sofrimento psíquico a uma reclusão forçada, muitas vezes até o fim dos seus dias. Isso não acontece com as pessoas portadoras de uma cardiopatia isquêmica ou de uma disfunção prostática; ainda que não seria uma má idéia inaugurar uma medicina democrática em todas as vertentes, se isso implicasse uma maior equidade em saúde e acesso aos tratamentos. No campo da saúde mental, o estigma e a exclusão têm construído barreiras injustificadas na integração das pessoas com sofrimento psíquico, especialmente aquelas que apresentam quadros psicóticos. Provavelmente, por este motivo existem leis “idiotas” em vários pa! íses, como em Espanha, desde onde escrevemos esta carta, que tentam garantir um atendimento na comunidade.

O Senhor Gullar parece ignorar o esforço realizado no Brasil por agentes sociais diversos (incluídos os próprios sujeitos portadores de esquizofrenia e outras “patologias”, que também tem voz e direitos) para que os espaços de inserção e reabilitação sejam mais dignos e terapeuticamente adequados. Parece ignorar que a reforma psiquiátrica brasileira que se está forjando nestas últimas décadas ultrapassa o ideário do movimento da anti-psiquiatria da década dos 60-70, se recicla e se re-significa dada a carência de recursos econômicos e de estratégias políticas abrangentes no território nacional. Parece ignorar que no contexto europeu em nenhum momento os debates em congressos científicos ou nos grupos de trabalho que definem os programas comunitários em saúde mental sugerem um retorno no tempo e o aumento de verbas públicas para ampliar hospitais psiquiátricos de larga estadia; e não po! r capricho senão pela ineficácia inerente a este modelo. Parece também ignorar os efeitos do tratamento antipsicótico/ neuroléptico na saúde física, e não estamos mencionando os efeitos adversos típicos deste tipo de medicação, senão o aumento da mortalidade (vista pela OMS como epidemia mundial) por doenças metabólicas geradas pelo uso indiscriminado de antipsicóticos.

Em definitiva, o que mostram os artigos do Sr. Gullar é que as posturas fundamentalistas não são boas conselheiras para as políticas em saúde mental porque geram posições irredutíveis, falsas certezas, fratura social e pouco diálogo e participação cidadã. As doenças mentais estão aqui e lamentavelmente aqui permanecerão durante muito tempo. Frente a esta evidencia podemos elevar muros, internar, segregar, separar, estigmatizar, excluir,..ou podemos todos juntos criar espaços de diversidade inseridos na comunidade para fortalecer a qualidade de vida das pessoas com esquizofrenia e também dos seus familiares. Nesta opção, certamente, não cabem os manicômios.

 

 

*Letícia Medeiros-Ferreira é psiquiatra do Centro ambulatório de Salud Mental Nou Barris (Barcelona/Espanha);
Angel Martínez-Hernáez é professor titular de Antropologia Médica, Universitat Rovira i Virgili (Tarragona/Espanha).