Centro de atenção psicossocial como dispositivo de atenção à crise: em defesa de uma certa (in)felicidade inventiva

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Centro de atenção psicossocial como dispositivo de atenção à crise: em defesa de uma certa (in)felicidade inventiva

( Trabalho apresentado no II Colóquio Internacional NUPSI/USP e XI Colóquio de Psicopatologia e Saúde Pública – Invenções democráticas: construções da felicidade, realizado no Centro de Convenções Rebouças, São Paulo, de 19 a 22 de setembro de 2013, na Mesa 5 do Colóquio, de título  homônimo ao do presente trabalho )

 por Luciano Elia

 

De saída, uma nota de advertência: na escrita deste trabalho, o tom e a direção eminentemente críticos que tem acompanhado minhas intervenções sobre a questão do desmonte da atenção psicossocial a que assistimos no Brasil atual cederam lugar a uma perspectiva que chamarei de politicamente amorosa, efeito do significante que compõe o tema-título deste Colóquio: construções da felicidade.
Dito isso, reafirmemos que a atenção psicossocial, como categoria que designa algo de absolutamente inédito, inventivo, democrático, transformador e irredutível a qualquer outra invenção que a tenha precedido no mundo, inclusive na Psiquiatria italiana, os (Centros de salute mentale de Basaglia), vem sofrendo um processo de desmontagem, retrocesso, destruição mesma, no Brasil de hoje.

A atenção psicossocial é efetivamente uma invenção democrática. Rapidamente, quero caracterizá-la, admitindo que há, nesta caracterização mesma, mais do que um mero esforço de retratar para os que aqui estão o que esta categoria designa no quadro conceitual da Reforma Psiquiátrica Brasileira, contexto que a formulou: há na minha leitura do que seja atenção psicossocial algo de inventivo, próprio, meu, que não está nela em si mesma.

A atenção psicossocial pode ser entendida, como sua própria composição nominal indica, uma modalidade de atenção em saúde, no caso, saúde mental. No entanto, se o primeiro termo do binômio insere esta categoria no campo da saúde – ela é uma modalidade de atenção em saúde, o segundo termo – psicossocial – está  destinado, senão a retirá-la deste campo,  pelo menos a fazê-la transbordá-lo, extravasá-lo, tanto quanto a própria loucura o extravasa.
E aqui uma primeira verificação importante: sem transbordar o campo da saúde, qualquer tipo de invenção/intervenção com a loucura estará destinado ao fracasso. E portanto, uma primeira expressão da potência da atenção psicossocial é  que ela não cabe inteira no campo da saúde.
Nisso ela faz jus a uma dignidade histórica da própria Psiquiatria que é justo resgatar hoje aqui, num momento em que a psiquiatria, como a psicologia, tem sido tão degradadas, tem estado tão vagabundas em termos de ciência e ética, se me permitem dizer assim de modo que pode parecer grosseiro mas na verdade é apenas exato, tão fodidas como estão pelo capitalismo  – não sem seu gozo nessa foda. Mas não foi sempre assim. Nos primórdios da psiquiatria (e parece que os saberes e práticas, em suas fases primordiais, são sempre mais verdadeiros, marcados que são de modo mais genuíno pelas condições de sua emergência) ela própria transbordava a medicina. Podemos afirmar que a psiquiatria foi, ela própria, efeito de um transbordamento do campo médico, do campo da saúde: com Edmar de Oliveira (um psiquiatra piauiense politizado e dos bons, protagonistas da RFB, que mora, trabalha e milita  no Rio), podemos dizer que a primeira especialidade médica foi a psiquiatria exatamente porque ela não é uma especialidade  médica, por não caber toda na medicina, ela foi cuspida, expelida  para fora, dando a impressão de que era  uma especialidade.
Pois bem, a atenção psicossocial, fruto epistêmico-assistencial genuinamente brasileiro que não tem mais de 30 anos de existência e já está morrendo antes mesmo de florescer, emergiu de forma análoga: extravasando o campo da saúde mental, que o pariu. O  caráter inventivo deste  campo está, a meu  ver, sobretudo em sua irredutibilidade ao campo estritamente sanitário.

Para lembrar algo de demasiado fundamental mas que nem todos são obrigados a saber aqui, a saúde é estratificada em modos e níveis de atenção, ditos primário, secundário e terciário. Ao nível primário, a atenção primária ou atenção básica, cabem as ações de prevenção, promoção e atenção à saúde em escala ampla, social e fundamental, que garante à população o acesso às condições básicas de seu bem estar físico e social: saúde materno-infantil, bucal, vacinação, etc. Para simplificar e não alongarmos demais esta rápida caracterização, que não visa aqui esses níveis, mas situar a atenção psicossocial em relação a eles, diremos que os níveis secundário e terciário vão avançando no sentido de uma crescente especialização em termos de intervenção, sempre envolvendo as dimensões da prevenção e do tratamento – a prevenção não é exclusividade da atenção básica, que  por sua vez pode incluir formas de tratamento em seu escopo.

Será que a atenção psicossocial cabe no espectro vertical dos níveis de atenção em saúde? Poderia ser ela dita primária, secundária ou terciária? Ou ela é externa e estranha a este eixo? Poderíamos dizer que a atenção psicossocial é secundária? E aqui começamos a poder enxergar que o modo mais eficaz pelo qual as políticas públicas de saúde mental, por atos diretos de gestão do Ministério da Saúde, começaram o desmonte do campo da atenção psicossocial foi sua forçagem para dentro deste eixo, no qual a atenção psicossocial começa a ser vista como uma modalidade especializada de atenção, o que acompanha o processo de sua plena sanitarização.

Para isso, iniciou-se uma aparente articulação da saúde mental com a atenção básica, e forjou-se o feio termo de matriciamento para isso.  Mas na prática, onde se revelam as intenções políticas, o que vemos é uma fagocitose da atenção psicossocial pela atenção básica. Fiz questão de falar antes de atenção  básica como a forma mais democrática das práticas de saúde para que minha colocação sobre este processo não dê lugar a mal-entendidos, que no entanto ocorrem, parecem indefectíveis, quanto a uma inexistente e absurda crítica que eu faria à articulação da atenção psicossocial com  a atenção básica. Articulação não é redução, fagocitose, submissão. E podemos atestar isso simplesmente ao registrar o número de vezes em que os nossos próprios colegas, que sempre foram engajados nas políticas de vanguarda em saúde mental, muitos deles atores guerreiros e de primeira hora na RPB, começam a se referir aos CAPS como serviços especializados. Um deles, certo dia, em uma discussão comigo, disse: Mas Luciano, o que você tem contra o termo especialização? Eu não tenho nada. Quero dizer a vocês que eu tenho tudo contra, quando este termo é aplicado ao CAPS. O CAPS não é um serviço especializado em loucos, em loucura ou em casos graves, não porque não se destine a eles, posto que ele existe para o sofrimento grave e persistente, para os que tem seus laços sociais esgarçados, os que sofrem  em demasia – e curiosamente o que vemos é que os CAPS, ao longo do processo  de sua nociva especialização em casos graves, começou a ser inundado pelos  chamados casos leves, aspecto que abordaremos depois. O  CAPS não é especializado em coisa alguma, porque ele é territorial, articulado em rede, intra e intersetorialmente, e não viceja senão costurado com a comunidade, com o tecido social e cultural, nos efeitos que produz sobre as formas como a civilização suporta e não  suporta o convívio com a loucura, pois sabemos que ela NÃO SUPORTA.

E aqui me lembro das palavras de Marilena Chauí ontem que, por me precederem na sequencia das apresentações, pude acrescentar a este escrito: a privatização é a transformação de direitos sociais em serviços que compõem o mercado e as aplico aqui: o CAPS precisa se manter no plano dos direitos  sociais, psicossociais, direito,  no caso, precipuamente do louco, a existir no laço social, e direito do corpo  social a ter viabilizadas algumas condições de suportar a loucura. Ele  vem se transformando em serviços,  aliás de péssima qualidade, e aqui não entra em jogo apenas a qualidade das equipes, que vem sendo vilipendiadas em sua formação, remuneração, e nas condições de seu trabalho em todos os níveis, mas a desqualificação que os CAPS vem recebendo pr parte das políticas públicas.

Aparentemente, a política proposta e praticada pelo Ministério da Saúde apoia os CAPS e amplia sua rede. No entanto, qual é, efetivamente, a verdadeira política que vem sendo implementada? No final de 2011 a Coordenação de Saúde Mental do MS criou a portaria que estabelece a RAPS. De saída, lê-se que ela cria a "rede de atenção psicossocial". Como é que se pode criar uma rede 20 anos depois que ela existe? Estaria esta portaria inventando a roda? Ou o CAPS existiu no Brasil fora de uma rede, quando na verdade a rede é condição estrutural da própria concepção de CAPS, dito, inclusive, seu ordenador? O que pretende esta portaria quando começa pela afirmação de uma mentira histórica, conceitual, institucional e política? Prosseguindo a leitura, vemos que a RAPS situa o CAPS como um tomate numa salada, um item de um elenco de serviços e dispositivos operacionais, no mais rasteiro estilo dos protolocos burocráticos de gestão norte-americanos. Ao tratar da questão da emergência, tema que nos diz respeito neste mesa, a RAPS se vê estranhamento acompanhada pela RUE ("Rede de Urgência e Emergência"), dentro da qual o CAPS aparece como uma "alínea", a "b", um recurso entre outros, que deverá "acompanhar" as crises dos usuários. Se isso não é a reintrodução de uma lógica assistencial medicocêntrica, que em última instância evoca as práticas manicomiais em situações de crise, e dissocia a atenção psicossocial (PS de RAPS) da questão da urgência/emergência (UE de RUE), então o que é?
E é claro que, em paralelo não casual ao processo de transformação dos CAPS em serviços, e pior, especializados, eles vem sendo privatizados em sua gestão pelas OSs, o que, entre outros danos irreparáveis, mata qualquer possibilidade de que resgatem seus fundamentos político-assistenciais, eliminando as pactuações coletivas, as diretrizes das políticas construídas em décadas de um processo democrática de conferências municipais, estaduais e nacionais de saúde mental, em fóruns coletivos diversos, pois delega ao poder gestor de grupos privados a própria direção das ações, os  modos degradantes de contratação com permanente ameaça de demissão sumária de profissionais críticos, politizados, etc.etc.etc. Vocês tiveram aqui em São Paulo o exemplo  paradigmático disso com o que se passou no primeiro CAPS do Brasil, o da Rua Itapeva, de cujo primeiro aniversário, em 1988, eu tive a honra e o prazer de participar, compartilhando, com Jairo Goldberg e Peter Pal Perbart e todos os colegas, um entusiasmo psicossocial que hoje está extinto. E eu participei da criação e da supervisão, por 13 anos, quando fui devidamente afastado pela gestão municipal, do primeiro CAPSi do Brasil, o Pequeno Hans, no Rio, e sei em que condições ele teimosamente ainda sobrevive.

Pois bem. Antes de chegar ao ponto central da questão temática deste Mesa, e assim concluir esta intervenção, quero afirmar que o CAPS É PRIMÁRIO, não no sentido da atenção primária com a qual ele tem que se articular, é claro, mas mantendo seu caráter psicossocial não destituído nem descaracterizado, bem como com outros setores que não a Saúde – Assistência, Educação, Justiça, Esporte e Lazer e, mais do que isso, com todos as instâncias formais e informais do território. O CAPS é primário porque ele, em relação  à loucura (dita aqui em termos amplos, democráticos e basaglianos) sua ação territorial é  primordial, primeira, primária. Cabe a ele a ordenação da rede, o que é mal tolerado pelos  gestores pois fazem sempre uma interpretação dessa ordenação em termos de centralidade e poder, quando não se trata disso. O CAPS tem e opera com alguma forma de poder? Claro que sim, e como não operaria, a menos que adotasse a posição impotente? Mas seu poder não é central nem estatal, não é gestor, e aqui quem nos fundamenta é Foucault, com sua teoria do poder, sucintamente exposta no Capítulo III, intitulado Método, do primeiro volume da História da Sexualidade, intitulado A vontade de saber: lá ele nos explica que o poder se exerce em todas as direções, de cima para baixo, de baixo para cima, de um lado para o outro, entre cada um e cada outro, incluam aí o louco e os que tratam dele. Pois bem, o poder do CAPS é foucaultiano, ele não manda em ninguém na rede, não exerce autoridade sobre outros equipamentos, nem outros setores. Ele pactual, articula, ordena a rede segundo uma lógica nova, ele polariza e encarna esta política no território, sustentando ali as condições de possibilidade de afecção e mudança no tecido social em suas relações com o sofrimento demasiadamente agudo, com a loucura. É claro que o CAPS trata, e como,no sentido clínico, terapêutico, se quiserem, do termo, e eu poderia passar o dia inteiro aqui apresentando a vocês inúmeros exemplos de casos de autismo de que tratamos, com bastante eficácia, no Pequeno Hans – mas fiquem calmos, não vou fazer isso – a despeito de hoje a ciência, mancomunada com a gestão estatal e com uma sociedade sempre fiel e ávida em apoiar o que há de pior na ciência e na gestão, afirmarem que o autismo é  uma deficiência, que seu tratamento é neuronal e comportamental, ladainha quotidiana no Fantástico, na Revista Veja e portanto no nosso dia-a-dia. Mas o CAPS trata tanto melhor quanto menos ele for concebido como um lugar especializado em tratar. Ele tratará  sempre melhor, clinicamente, de seus usuários, quanto mais fiel ele for aos princípios que o fundam e fundamentam: um polo de direitos e de encarnação de uma política de sustentação da loucura no laço social, avessa e combativa a toda prática de exclusão, segregação e internação não acompanhada.

Uma última mas de forma alguma menos importante observação: um CAPS, se ele é voltado para o campo da loucura, sem patologizá-lo mas também sem neutralizar demais a positividade e a irredutibilidade próprias ao sofrimento louco, ele precisa ser afeito ao próprio funcionamento louco. Ele precisa ser um pouco louco. Os CAPS são, como tudo hoje no mundo, cada vez mais obsessivos. Nem histéricos eles tem sido mais, pois o mundo fruto da cópula da ciência com o capitalismo, o mundo da cópula das neurociências com a psicologia comportamental não tem dado lugar à histeria, só a transtornos miseravelmente arrolados nos manuais diagnósticos e estatísticos, o DSM. Sem um funcionamento mais afeito à lógica da loucura um CAPS não opera bem sua função psicossocial, clínica e política. E esta observação nos introduz no tema da crise, não porque seja a crise o paradigma da loucura, longe disso. Em tempos de calmaria, também e sobretudo neles, a atenção ao funcionamento louco é preponderante.

Vamos à crise: como é que um serviço assim concebido e exercido não tomaria a si a responsabilidade sobre as crises de seus usuários? Como é que o CAPS poderia manter-se alheio à crise? É claro que o CAPS deve tomar a si não apenas o tratamento, o encaminhamento das ações clínicas aplicáveis a situações de crise, mas em termos de um princípio que é ético, conceitual, clínico e político ao mesmo tempo: a crise lhe diz respeito.
Vamos começar pelo começo. Se o usuário do CAPS tem no CAPS um lugar de referência primordial, se ele efetiva e verdadeiramente INCLUI o CAPS em sua vida, em sua experiência de dor, prazer ou sofrimento, para o que é obviamente necessário que o CAPS o INCLUA em seu espaço de CAPS, o que não é fácil nem frequente, quando ele começa a sentir que está piorando, quando uma crise se anuncia, seria ao CAPS que ele tenderia a recorrer, e a equipe estaria acompanhando, advertida dos sinais que lhe estariam chegando, não é mesmo? Começaria então a intervir junto à crise anunciada antes de sua eclosão, muitas vezes inevitável, e, no momento da eclosão, praticaria ações que ou já estariam sendo elaboradas, ou que seriam da ordem da surpresa e da invenção súbita, porém advertida. Entre essas ações eu incluo, é claro, a internação, mas não qualquer internação, e sim uma internação inteiramente logicizada pelo CAPS, inserida na lógica da atenção psicossocial, e não  uma internação manicomial.

Sabem o que acontece hoje, na maioria das vezes? O usuário começa por ir pouco, ou burocraticamente, ao CAPS. Quase sempre vai porque precisa pegar remédio e o CAPS, este ambulatório psiquiátrico multiprofissional, sustenta a prática de dispensação de remédios sem nenhuma problematização da situação, sob alegação da equipe de que “já trabalha demais”. Quando ele começa a perceber que vai entrar em crise, o usuário se afasta de um CAPS que já está afastado dele há muito tempo, e, em crise, dirige-se ao hospital psiquiátrico e se interna. O hospital, quando algum enlace territorial já tiver existido no passado, ou porque sua equipe (do hospital) tem, por acaso, algum grau de engajamento territorial, telefona para o CAPS e informa que tem um paciente “seu”, do CAPS, internado. A equipe registra o fato, comentando: “é mesmo, o fulano não vinha mesmo aparecendo por aqui”, e espera o fim da crise e da internação para novamente receber o usuário para voltar a pegar remédio no CAPS. Esse relato é monotonamente revisitado no quotidiano dos CAPS.

Os argumentos são: a equipe está sobrecarregada, não tem médicos, só uma vez por semana, estamos repletos de pacientes. Que pacientes? Aí começamos e ver que o CAPS é preenchido até o pescoço com os chamados “casos leves”. Leves? Que espécie de leveza? Os casos que a psiquiatria transtornalista do DSM classifica e medica com os poderosos e eficazes psicofármacos. CAPS não é para casos leves, que podem ser atendidos em ambulatórios e na atenção básica. Mas observem que, se o CAPS se desobriga desses casos, ele perde sua função ordenadora da rede, e em pouco tempo teremos uma rede de saúde mental novamente medicalizada, ambulatorizada, sanitarizada. Se é de saúde mental que se trata, o CAPS deve se envolver, mas não para tratar, absorver o caso na agenda de sua equipe de profissionais e em suas atividades quotidianas.

Não ouvimos mais falar de desconstrução de demanda. No caso de crianças e adolescentes, isso é fundamental. Escolas inundam os serviços de saúde mental com demandas de atendimento, não problematizado nem interrogado, para indisciplina, hiperatividade, desatenção. O TODA/H, quadro em larga medida forjado pela psiquiatria atual, compõe mais de 50% (estou sendo moderado) dos casos atendidos em CAPSi. Para vender ritalina, que alguns psiquiatras recomendam que se coloque na caixa d’água das grandes cidades, nas estações de tratamento da água do Guandu ou do Tietê. Ora,  um CAPSi precisa envolver-se com isso, politizar isso, discutir clinicamente isso, trabalhar com a escola, clinico-intersetorialmente, essa questão, e não simplesmente remetê-la à atenção  básica,  por tratar-se de  casos leves. Mas para isso o CAPS precisa sustentar ações inter-equipamentos, fóruns coletivos semanais, quinzenais, mensais, conforme o caso.  Mais uma vez, para cumprir sua função, inclusive nas crises, o CAPS não pode restringir-se a tarefas clínicas de um quotidiano rotineiro e repetitivo, ele precisa estar em plena articulação no território.

Tomar a crise como sua questão, tarefa e função exige muito mais do que aparelhar-se tecnicamente para isso, com recursos médico-profissionais, o que apenas reproduziria a lógica médico-manicomial no CAPS. Fala-se em crise, pensa-se em um setor de emergência dentro do CAPS. Mas tratar da crise é algo muito diferente disso, requer uma malha, um tecido de atos territoriais, não apenas para dar encaminhamento territorial aos casos ditos leves e  assim liberar a equipe  para os casos graves e em crise, mas porque  não se trata de crise, em termos psicossociais, sem o recurso lógico-político da rede, do coletivo, do fora-do-serviço, do  fora-de-si.

 

Um CAPS FORA DE SI (título da dissertação de mestrado de Daniel Elia, defendida este ano na Fiocruz): eis a invenção  democrática que estaria à altura do que é ou deveria  ser o CAPS na concepção clínico-política que lhe convém e que presidiu à sua criação, e eis a  única forma possível de responder à crise, incluindo alguma dimensão inventiva de infelicidade na construção permanente da felicidade.

 

 Trabalho apresentado no II Colóquio Internacional NUPSI/USP e XI Colóquio de Psicopatologia e Saúde Pública – Invenções democráticas: construções da felicidade, realizado no Centro de Convenções Rebouças, São Paulo, de 19 a 22 de setembro de 2013, na Mesa 5 do Colóquio, de título  homônimo ao do presente trabalho.

 

Luciano Elia é psicanalista, professor titular de Psicanálise e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ, membro do Laço Analítico Escola de Psicanálise, supervisor de Centros de Atenção Psicossocial entre 1998 e 2011 e Consultor da Área Técnica  da Coordenação de Saúde Mental  do  Ministério da Saúde para a Saúde Mental de Crianças e Adolescentes entre 2003 e 2010.