Nós e os Passageiros do Vôo 447

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Vamos convivendo com tragédias todos os dias. Furacões, terremotos, enchentes, desabamentos. Até parece que os noticiários da TV nos deixa uma crosta de insensibilidade, como se víssemos as manchetes como os resultados dos jogos de times que não nos afetam.

A morte parece ter se transformado em estatística. Por exemplo, nos finais de semana prolongados somos informados da quantidade de mortos nas rodovias federais e esses números são sempre comparados com os do ano passado. A imagem já  virou um clichê: o repórter a beira do acostamento com o tráfego pesado por trás dele nos olha como um certo ar de censura e nos passa os números.

Assim, milhares de vidas, projetos de existência ceifados, pessoas e individualidades chafurdam na mesmice das quantidades, de tal forma que tudo aquilo que nos é informado aparece como um fenômeno externo. A morte do outro virou manchete, incrementa o ganho financeiro das redes de TV e, quem sabe, faz os ricos optarem pelo “air-bag” e as “barras laterais” de proteção em seus automóveis.

Mas volta e meia essas imagens podem nos sensibilizar, principalmente quando os clichês impõem um maior nível de envolvimento. Aqui estou me referindo aos acidentes aéreos e, mais precisamente ao vôo 447 da Air France que desapareceu no mar com seus 228 passageiros.

Todos nós ficamos de alguma forma envolvidos. Por um lado, podemos ser mobilizados pela mera curiosidade mórbida. Disso não falarei nada pois, a depender de suas formas de expressão, será o territórios dos psiquiatras e psicólogos clínicos. Quero falar sim do envolvimento emocional. Nesses dias presenciei pessoas chorando vendo a TV e suas reportagens. Vi pessoas refletindo sobre a própria vida…enfim…percebi a morte dando o seu ar meio que filosófico, quando ela comparece e nos faz pensar na própria vida, naquilo que estamos fazendo e/ou gostaríamos de fazer.

    E isso parece acontecer porque, diferente das outras reportagens, agora somos “convidados” a olhar as fotos dos mortos, a perceber que eles tinham vidas muito parecidas com parte daquilo que fazemos, que eles tinham sonhos: as férias há tanto tempo desejadas, o trabalho ambicionado, o curso de pós graduação que abriria novas portas na vida ou, simplesmente, querer ser feliz nas ruas de um país diferente e cheio dos estereótipos da luz, arte e conhecimento.

    Isso tudo passou a ser importante no momento em que descobrimos que aqueles que morreram no vôo 447 eram seres humanos dotados de singularidade e sonho. No conforto das nossas salas e protegidos pelas nossas paredes, podemos vivenciar essa experiência e nos defrontarmos com o rol de necessidades que ela pode despertar.

    Todos nós somos passageiros de um vôo sem que nos apercebamos disso. Somos arrastados por milhões de quilômetros todos os dias pelo Sol que marcha rapidamente rumo à constelação de Libra. Mas parte do tempo só vemos a singularidade dos mortos na TV. A maioria de nós tenta fugir da singularidade dos que vão morrer, seja no trabalho, seja em casa, seja na rua ao lado.
Isso pode ter conseqüências trágicas, principalmente se pensarmos  na solidão de muitos que estão morrendo hoje nos hospitais. Como já foi dito, muitos morrem bem equipados porém mal informados. E nós, pilotos e comissários desse vôo, temos que saber mais desses passageiros, afinal, voamos todos juntos.

    Pensemos que as pessoas vivenciando a situação de finitude são um pouco nossos espelhos. Queremos fugir do sofrimento porque, na verdade, a maioria das pessoas padece muito ao morrerem e isso decorre da forma como são cuidadas, nós não queremos nos ver no sofrimento. Olhemos então para elas como vemos as fotos dos passageiros do vôo 447, com a diferença fundamental que as pessoas vivendo a experiência de morrer ainda estão vivas e, se fizermos tudo o que pudermos para lhes trazer conforto e autonomia, um dia quem cuidar de nós fará o mesmo. Assim, poderemos ter um pouso mais tranqüilo e chegarmos ao aeroporto que ninguém quer ir mas “morre” de curiosidade para conhecer.