crônica da vida cotidiana na RHS – a grande saúde da infância – 10-11-2013

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"as crianças são prisioneiros políticos" – Jean Luc Godard

 

 

A próxima semana será marcada por uma intensa discussão sobre o fenômeno ou processo de medicalização da vida. Tal intensidade se deve ao fato de buscar chamar a atenção para o trato com a vida tal como ela se apresenta hoje. A vida em geral, mas principalmente a infância, como devir da vida.

O dia 11 de novembro foi escolhido como o Dia Municipal de Luta contra a Medicalização em São Paulo a partir de mobilizações em torno da questão, predominantemente levantadas e organizadas pelo Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade, sediado em São Paulo.

"Entende-se por medicalização o processo que transforma, artificialmente, questões não médicas em problemas médicos. Problemas de diferentes ordens são apresentados como “doenças”, “transtornos”, “distúrbios” que escamoteiam as grandes questões políticas, sociais, culturais, afetivas que afligem a vida das pessoas. Questões coletivas são tomadas como individuais; problemas sociais e políticos são tornados biológicos. Nesse processo, que gera sofrimento psíquico, a pessoa e sua família são responsabilizadas pelos problemas, enquanto governos, autoridades e profissionais são eximidos de suas responsabilidades.

Uma vez classificadas como “doentes”, as pessoas tornam-se “pacientes” e consequentemente “consumidoras” de tratamentos, terapias e medicamentos, que transformam o seu próprio corpo no alvo dos problemas que, na lógica medicalizante, deverão ser sanados individualmente. Muitas vezes, famílias, profissionais, autoridades, governantes e formuladores de políticas eximem-se de sua responsabilidade quanto às questões sociais: as pessoas é que têm “problemas”, são “disfuncionais”, “não se adaptam”, são “doentes” e são, até mesmo, judicializadas.

A aprendizagem e os modos de ser e agir – campos de grande complexidade e diversidade – têm sido alvos preferenciais da medicalização. Cabe destacar que, historicamente, é a partir de insatisfações e questionamentos que se constituem possibilidades de mudança nas formas de ordenação social e de superação de preconceitos e desigualdades."

( https://medicalizacao.org.br/manifesto-do-forum-sobre-medicalizacao-da-educacao-e-da-sociedade/ )

O conhecido cineasta Jean Luc Godard disse, numa entrevista, que as crianças seriam prisioneiros políticos dos adultos, pais, professores, Estado…, conforme o modo como são orientadas e introduzidas na vida por estes. Ou seja, comunica-se um mundo nos ensinamentos e disciplinamentos a que estão expostas na relação com os adultos que delas se ocupam.

As crianças são capturadas pelo discurso dos adultos, observa Ferenczi, psicanalista cuja obra, não à toa, ficou relegada a segundo plano no cenário do pensamento sobre a infância. Enquanto elas se encontram no "registro da ternura", por sua própria condição de crianças, estes lhes comunicam uma língua de adultos, marcada pela "paixão", um modo sexualizado de ver o mundo. E aí se instala a confusão de línguas e de mundos. Coisa atualíssima hoje.

Assim, as cenas que assistimos ou são descritas no cotidiano da clínica com crianças revelam claramente um ethos da vida adulta a ser analisado com toda a atenção, para que algo se ilumine neste deserto de sentido, ou excesso de sentidos outros, que se tornou ser criança.

Que cenas são essas?

Antonio é encaminhado para avaliação psicológica por recusar-se a fazer lições! Do alto de seus seis anos de idade, ameaça a professora. Os coleguinhas o imitam neste rompante de pequeno rebelde sem causa. Pais e mestres se descabelam ao temer um futuro "transtorno de oposição".

A primeira passagem por psicólogo resulta na impotência da profissional em "avaliá-lo", pois recusou-se a submeter-se aos famigerados testes psicológicos "estruturados". Mas seus desenhos foram objeto de um 'relatório' que indicou, por meio de um corta e cola dos manuais, tratar-se de criança sem "tolerância à frustração". Pergunto-me se existe alguma criança de seis anos com essa tal tolerância e como podemos medir objetivamente algo tão singular. Como se não bastasse, as conclusões desastrosas são passadas aos pais do guri.

Que ethos é esse?

Nos anos setenta e oitenta, costumávamos nos referir aos efeitos da inserção das crianças nas famílias, com seus consequentes conflitos, como "distúrbios reativos de conduta". Notem que o acento era colocado na RELAÇÃO da criança com o mundo que a cercava. Havia também os "distúrbios evolutivos de conduta", advindos do desenvolvimento comparativo com um padrão. E a coisa ficava por aí, sem recair sobre os sujeitos qualquer rotulação identitária. As relações eram o foco do trabalho terapêutico e a infância era poupada de figurar nas intermináveis classificações de doenças psiquiátricas. Salvo engano, apenas algumas dimensões mais graves de psicoses, como o autismo, constavam do DSM. E a vida se desdobrava em seu devir…

Pois bem, o que vemos hoje? Que experiência de infância vivem as crianças no mundo contemporâneo?

"Crianças digitais", com subjetivações marcadas pela vivacidade trazida pelo contato precoce com o mundo dos computadores e das redes de toda espécie, em sua grande maioria são inseridas em "escolas analógicas". Se não levarmos em conta essa nova realidade nas análises do que é ser criança hoje, cairemos nos enquadramentos apressados das tristes categorias e supostos transtornos como TDAH, transtornos opositores- desafiadores e outros não menos danosos às subjetividades.

Pois é nesta imersão no espírito de nosso tempo que deve se dar a clínica, seja com crianças ou adultos. Um exemplo disso, de intervenção "fora do tempo e do lugar", é atribuir aos usuários de redes sociais a condição de sujeitos que "fogem às relações"! Nada mais distante da realidade do que afirmar algo desta espécie… Nada mais revelador de um ensaio sobre a cegueira em relação aos modos de ser hoje…

 

Termino a crônica desta semana, indicando o último livro de Antonio Prata, uma mirada de rara beleza e sensibilidade sobre a infância como uma "grande saúde" da vida:

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