Lançamento do livro “Humanização na Estratégia Saúde da Família”

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É com imensa alegria que divulgo na RHS o lançamento do livro "Humanização na Estratégia Saúde da Família" da nossa querida Rosana Alves Vilar a ser realizado às dezessete horas do dia cinco de dezembro na cooperativa cultural da UFRN. 

O prefácio de Willington e a apresentação de Paulo Henrique Martins dispensam minhas palavras. Abraços a todos e a todas.

PREFÁCIO

Humanização em Saúde: Uma ética da resistência e da solidariedade “Somente os homens podem ser desumanos”. Mas, “somente eles podem – e devem – tornar-se humanos”.André Comte Sponville

Parece um contrassenso falar em humanização ao nos referirmos à vida humana, principalmente no que diz respeito ao campo da saúde, conforme aborda Rosana Lúcia Alves de Vilar, no seu trabalho, por ser uma área em que os seus profissionais, em tese, deveriam se dedicar ao alívio da dor e do sofrimento, o restabelecimento do equilíbrio e a cura das pessoas. Postas nesses termos, as práticas em saúde teriam que se pautar pelos princípios éticos de respeito à vida, às diversidades, subjetividades, culturas e saberes dos indivíduos envolvidos nessa teia de relações sociais. Mas não é isso que tem prevalecido como prática hegemônica, o que implica em considerações éticas. Para Edgar Morin, “a finalidade ética tem duas faces complementares. A primeira é a resistência à crueldade e à barbárie. A segunda é a realização da vida humana”. Por isso, ele propõe uma “‘ética da resistência’ à crueldade do mundo, da vida, da sociedade e à barbárie humana”.
Ora, se há crueldade e barbárie, logo há desumanização imposta por humanos, em geral, os mais poderosos, sobre outros grupos igualmente  humanos. Desse modo, a própria noção de humano e de humanização está clivada pelas relações assimétricas de poder e dominação, portanto, nem sempre associada à ideia do bom e do belo, mas também do acúmulo de horrores: guerras, massacres, colonialismos, escravidões, torturas, genocídios, desastres ambientais. Por isso, como diz Walter Benjamim, “o conceito de progresso deve ser fundamentado na idéia de catástrofe”.
Nessa perspectiva, são humanos não apenas a grandiosidade da literatura de Shakespeare, os encantos da música de Mozart ou a riqueza da ciência de Einstein. De igual modo, são humanos a bomba atômica, o racismo e a intolerância, os governos totalitários, a distribuição desigual da produção e da riqueza, a exploração predatória e mercantil do homem e da natureza, o colonialismo, a escravidão ou a destruição de sistemas transeculares do conhecimento.
Na área da saúde, essa desumanização assume dimensões ameaçadoras à própria noção de vida humana digna. Nesse sentido, escreveu Freud, “os homens chegaram agora tão longe na dominação das forças da natureza, que, com a ajuda destas últimas, ficou mais fácil exterminarem-se até o último deles”. Os horrores dos campos de extermínio e de experimentos médicos e biológicos, protagonizados pelo nazismo, com o genocídio de milhões de seres humanos a exemplo do campo de concentração de Auschwitz, simbolizaram, portanto, como diz Elizabeth Roudinesco, “o paradigma da maior perversão possível do ideal da ciência”, ou uma “banalização do mal”, como sugere Hanna Arendt. Ao mesmo tempo, indicam que a planificação biológica da vida assim contribuiu para engendrar uma das mais brutais formas de totalitarismo do Século XX.
Nessa perspectiva, a desumanização no campo da saúde é abordada por Giovanni Berlinguer e Volnei Garrafa ao tratarem da constituição de um “mercado humano”, o qual enfoca a mercadorização da vida ao denunciar a existência de uma nova forma de escravidão decorrente da compra e venda de partes do corpo, para transplante de órgãos. É evidente que, nessas relações, o vendedor é o pobre e o comprador é o rico. Trata-se de um processo que compreende não apenas a compra e venda de órgãos, mas também o roubo, a hipoteca,  o sorteio, o tráfico e a comercialização de crianças, prostituição, o patenteamento de genes humanos por empresas privadas, mães de aluguel etc., tudo isso com o envolvimento de grandes clínicas, profissionais, centros médicos e laboratórios, sobretudo do chamado desenvolvido mundo rico. O sujeito humano é reduzido, assim, à condição de mero objeto. São fatos e ideias, como escrevem Berlinguer e Garrafa, “que dizem respeito ao destino de nossa espécie e de cada um de nós”.
A esse quadro, em um país como o Brasil, juntam-se uma assistência precária, fria, utilitarista ou mesmo a inexistência e exclusão de sistema público de saúde de substanciais parcelas da população brasileira, apesar dos inegáveis avanços do Sistema Único de Saúde (SUS).
Como resistir a tudo isso? Como construir um outro paradigma de prática e de assistência à saúde? São desafios como esses que Rosana Lúcia Alves de Vilar enfrenta, no presente livro, com a leveza e a prudência que lhes são peculiares.
Escrito originalmente como tese de doutorado defendida com êxito junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN, agora vertida em livro, enriquecendo a bibliografia, sobre tema tão importante. Desse modo, a autora, evidentemente, irá se debruçar sobre o campo da política.  Afinal, esse é o espaço privilegiado da esfera pública, das grandes decisões coletivas, da democratização e da atuação aberta de uma pluralidade de vozes e de atores sociais, capazes de redefinir a agenda política e os rumos de uma sociedade. Por este motivo, Rosana irá direcionar a sua pesquisa para as políticas de saúde no Brasil, a partir da redemocratização do país, enfocando o processo de construção do SUS, em particular a política de Humanização e a Estratégia Saúde da Família, tendo como campo empírico a cidade de Natal.
Fazendo uso dos aportes referenciais de Boaventura de Sousa Santos, notadamente no que diz respeito à “sociologia das ausências” e à “sociologia das emergências”, bem como ao pensamento de clássicos, entre eles Marcel Mauss e dos seus intérpretes contemporâneos, como Paulo Henrique Martins, a autora chega a resultados inovadores para a interpretação das políticas de saúde. Para ela, a desconstrução da inferioridade, implícita nas práticas de saúde, e a conquista da humanização não dependem apenas das lutas pelos direitos de cidadania, apesar de serem muito importantes. Mas implicam, sobretudo, na implantação de uma democracia de alta intensidade, a qual compreende também uma democracia cognitiva que busque o reconhecimento, desconstrua as monoculturas do saber, descolonize as mentes e faça emergir uma ecologia dos saberes.
As páginas de Rosana Lúcia Alves de Vilar, portanto, se inserem na perspectiva de uma ética da resistência e da solidariedade, evidenciam um notório amor ao mundo, como diria Hanna Arendt, e simbolizam a sua esperança de que um outro mundo é possível, mais justo, mais humano e solidário. Porém isso depende da nossa ação neste mesmo mundo, pois se “somente os humanos podem ser desumanos”, como afirma Comte-Sponville, “somente eles podem – e devem – tornar-se humanos”.

José Willington Germano
Sociólogo e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

APRESENTAÇÃO
A publicação, como livro, de parte da tese de doutorado de Rosana Lúcia Alves Vilar, apresentada com sucesso no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, constitui uma iniciativa muito importante para se avaliar o êxito do SUS (Sistema Único de Saúde), no momento presente, em particular do PSF (Programa de Saúde da Família), que é o carro-chefe das políticas de descentralização na saúde. Trata-se de um trabalho bem escrito e estruturado, que explora com agudeza os avanços e limites da humanização em saúde. O apoio nas idéias da sociologia das ausências e da sociologia das emergências, sistematizadas por Boaventura Santos e tendo como um dos seus mais importantes divulgadores no Brasil José Willington Germano,  orientador do doutorado da Rosana, foi decisivo para que a autora pudesse realizar um mergulho cartográfico mais profundo no tema. 
O SUS prova que reformas estatais fundadas na descentralização e na contextualização da ação pública constituem o caminho mais adequado para se enfrentar tanto as pressões utilitaristas, geradas pelo neoliberalismo que busca forçar a privatização da saúde pública, como igualmente se opor às resistências burocráticas, cuja força é diretamente proporcional à centralização do poder nas mãos de uma tecnocracia autoritária. O SUS busca escapar de ambas lógicas, e o PSF é a expressão mais viva do potencial democratizante das reformas em saúde. O reforço de ações face a face, nos bairros e nas comunidades, permite superar o antigo paradigma da  saúde/doença, que torna a relação médico e paciente meramente funcional, para favorecer a emancipação de outro paradigma de base interacionista, que reforça a emancipação de redes de atenção.
Mas o avanço da humanização, como registra com pertinência Rosana, não pode se limitar à luta por direitos de cidadania na saúde. Pois a realidade tem mostrado que a garantia de direitos não se traduz automaticamente na tomada de responsabilidade da população relativa à construção de um sistema de dádivas e reciprocidades horizontalizado entre o serviço público em saúde e os usuários. Há que se desconstruir e se descolonizar os saberes fragmentados que perpetuam uma cultura de subserviência, para se permitir a emergência de uma ecologia de saberes, apropriada para reforçar a luta por reconhecimento por parte dos usuários no plano local, e também favorecer novos mecanismos de diálogo, de inteligibilidade de sentidos e de novos processos de formação.  Por tudo isso, o livro da Rosana passa a ser uma leitura importante para os profissionais da área, e para os demais profissionais e curiosos, interessados em conhecer mais de perto o valor desta iniciativa tão importante de mudança de paradigmas na saúde, que é o processo de humanização do SUS.
Paulo Henrique Martins
Sociólogo e professor titular da Universidade Federal de Pernambuco