O SUS depois de 20 anos… !!!

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SUS depois de vinte anos: reflexões sobre o direito à atenção à saúde
Gastão Wagner de Sousa Campos[1]
Introdução
 
O desenvolvimento do Sistema Único de Saúde provocou uma expansão significante da rede de serviços. Este crescimento aumentou a intervenção do Estado na saúde, tanto por meio da prestação direta do cuidado, quanto por formas indiretas como a compra de serviços e funções de regulação do mercado (Elias, 2004). Observe-se, contudo, que este movimento de estatização do setor vem ocorrendo de modo concomitante com a predominância, na sociedade brasileira e no mundo, de um discurso a favor do mercado e pelo afastamento do Estado da economia e das questões sociais.
Constituir-se neste meio hostil produziu cicatrizes e deformações no SUS, a exemplo do financiamento insuficiente, da ausência de uma política razoável de pessoal e da não realização de uma reforma sistêmica do modelo de organização e de gestão do pedaço do Estado denominado SUS. Considere-se ainda que o Estado brasileiro, mesmo após a promulgação da Constituição de 1988, não superou o funcionamento patrimonialista, ao contrário, reforçou-se a tendência à busca de governabilidade utilizando-se do leilão de postos de gestão segundo lógica distante da competência específica necessária a cada setor ou programa.
 
Reflexões sobre o SUS com base na tradição dos sistemas socializados

 
Esta situação paradoxal vem produzindo resultados igualmente paradoxais quando se avalia o impacto do SUS sobre o direito à saúde. Ampliou-se o acesso dos brasileiros às vacinas e a outras formas de cuidado, entretanto, há ainda resultados pífios quando se compara a sobrevida de pacientes brasileiros com câncer com aquela alcançada em países com sistemas nacionais assemelhados ao nosso, conforme indica pesquisa recente coordenada pelo professor Michel Coleman, da London School of Hygine and Tropical Medicine. O que seria encontrado caso se investigasse a hipertensão arterial, diabetes ou até mesmo tuberculose?
O SUS filia-se à tradição iniciada na primeira metade do século 20 quando vários países europeus instituíram o direito à saúde, a ser assegurado por meio de políticas públicas. Algumas voltadas para determinantes sociais do processo saúde e doença, outras dirigidas diretamente para a atenção à saúde, tanto em seus aspectos preventivos quanto de assistência. É curioso observar que estes sistemas nacionais, todos com amplo grau de estatização do cuidado, resistiram à sanha privatista dos últimos trinta anos. Esta tradição prosperou, mesmo durante o auge do neoliberalismo, porque, desde o Informe Dawson (OPS,1964), de 1920, baseava-se em uma requintada engenharia social. Em realidade, inventou-se uma mistura de política, gestão e reforma do paradigma médico vigente com razoável capacidade para produzir resultados favoráveis a saúde da população. É verdade que estas políticas exigiram importante investimento público, ainda que suportáveis à dinâmica de cada um dos países que foram adotando estas reformas sanitárias. Esta nova cultura sanitária desenvolveu a gestão e o planejamento muito para além da mera administração hospitalar ou da compra de serviços pelo Estado ao setor privado.
Michel Foucault (2008) analisando a transformação do liberalismo em neoliberalismo, no fim do século 20, constatou a inexistência de uma “arte de governar socialista”. Segundo ele, para fugir à racionalidade capilar do mercado, o comunismo utilizou um modelo de gestão e de planejamento bastante embasado em estratégias do denominado estado autoritário, a saber, exacerbação do controle social em todas as esferas da vida social. O abrandamento destas formas totalitárias de governo não passou pela invenção de um novo modelo de gestão do Estado, ao contrário, sempre significou um retorno ao mercado, às vezes principalmente no âmbito econômico, vide caso chinês; outras, de maneira mais ampla, com retorno ao sistema capitalista, como na Rússia e no leste europeu.
Pois bem, esta constatação do filósofo francês deveria ser tomada com cuidado quando pensamos no caso da saúde. Para a saúde, acredito, inventou-se uma arte de governar que tem permitido a sistemas estatais funcionarem com desempenho social satisfatório. A cultura sanitária dos sistemas nacionais vem constituindo um campo de conhecimento inovador e que tem sido, inclusive, recomendado para outras políticas públicas. Todas as reformas sanitárias do século 20 tiveram como diretrizes o direito à saúde, que seria assegurado por meio de uma rede de serviços, ordenados de maneira sistêmica, organizados em níveis de complexidade (invenção da atenção primária), de forma a assegurar atenção integral. A integralidade sanitária implicava em sistema que articulasse as tradições da Saúde Publica com a da clínica. O financiamento e a prestação de serviço seriam públicos; intervenção do Estado, portanto. No Brasil, se fez uma reforma considerada tardia, a partir de 1988, acrescentaram-se algumas diretrizes novas a esta cultura, a saber: a descentralização com o município sendo a célula básica do sistema e ainda o conceito de gestão participativa e de controle social do governo pela sociedade civil.
Pois bem, levanto a hipótese de que no Brasil, apesar de o SUS inspirar-se claramente nesta tradição quando de sua constituição discursiva e legal, não fomos ainda capazes de sustentar, no concreto, a maior parte de suas recomendações e diretrizes. Isto explicaria, em minha opinião, grande parte dos percalços e dificuldades com resultados sanitários mais equânimes e amplos.
Examinemos alguns dos elementos desta tradição. Uma das inovações destas políticas foi o conceito de socialização ou de nacionalização dos serviços de saúde; ou seja, considerava-se, explicitamente, que a atenção à saúde deveria ser protegida da lógica de mercado. Para isto, hospitais, clínicas e programas de saúde passaram ao controle e gestão do Estado. Desde a 8ª. Conferência Nacional de Saúde optou-se por omitir este elemento de nossa política. Alegaram-se razões táticas de correlação de forças – médicos e hospitais privados e filantrópicos impediriam a reforma caso houvesse estatização, isto prejudicaria seus interesses – além de argumentos de conteúdo ideológico – o Estado seria mal gestor em princípio. Neste contexto, optou-se por dar prosseguimento à tradição do Estado brasileiro de realizar compra de serviços ao mercado, por contratos e convênios. Trazendo para dentro do SUS toda a cultura do antigo INAMPS, uma forma de gestão precária, voltada para a dimensão contábil e segundo regras da oferta de mercado. Como resultado temos hoje um sistema distinto dos paradigmáticos sistemas inglês (Tanaka e Oliveira, 2007) ou canadense, nos quais concessões ao interesse médico e a cultura liberal foram realizados na atenção primária, já que no sistema deles o médico generalista conservou um modelo de organização com importante grau de autonomia, ainda que com formas de regulação e de gestão eficazes. No Brasil, existe uma atenção primária absolutamente estatal e organizada segundo um planejamento centralizado – o Estado brasileiro indica quem será o médico ou equipe de cada família ou cidadão –, e um predomínio da lógica de mercado e da prestação privada no atendimento hospitalar e especializado. No Canadá e na Grã-Bretanha os hospitais são estatais e estão organizados em redes regionais.
Esta diferença genealógica agravou-se ao longo destes vinte anos em virtude do argumento, de origem neoliberal, sobre a suposta incapacidade constitutiva do Estado de gerir serviços. A moda hoje, entre intelectuais da saúde, é admitir que no Brasil temos e teremos, para a eternidade, um “mix privado público”. Isto quando, na maioria dos países, reconhece-se a impossibilidade de se deixar o cuidado à saúde preso à lógica do mercado!
Este caminho de conservação da gestão privada no setor hospitalar e de atenção especializada talvez explique a impossibilidade, política e cultural, verificada quanto a construção de um novo modelo organizacional ou de gestão para as organizações estatais do SUS. As soluções oferecidas por vários governos têm implicado em alguma forma de retorno do estatal à racionalidade privada de funcionamento: refiro-me à invenção das fundações privadas de apoio, às organizações sociais e afins.
Provavelmente, em virtude desta origem diferente, o SUS não tem conseguido, apesar de sua denominação, constituir-se em um “sistema”. A integração em rede é precária, em decorrência a regionalização vem acontecendo de maneira insuficiente para assegurar o cuidado eficaz à saúde. Na tradição dos sistemas nacionais a regionalização ocorre com referência a territórios e populações. Em cada região constitui-se um gestor único, com autoridade para governar atenção básica, saúde pública, programas e hospitais. O SUS vem se organizando por subsistemas verticais: assim funciona a rede de atenção básica, estratégia de saúde da família e outras; assim opera o programa de saúde mental, AIDS, etc. Os hospitais sequer se compõem em rede, e não foram integrados à gestão do SUS de um modo satisfatório. Em geral, predomina a compra de serviços. Infelizmente esta lógica impera em relação a serviços privados e filantrópicos, mas também em relação a outros estatais: sejam universitários ou pertencentes a estados e municípios. As experiências de contrato de gestão, ainda incipientes, destinadas a alguns segmentos – universitários principalmente – vêm procurando atenuar esta fragmentação.
Neste sentido o SUS é um “mix” entre o velho modelo de mercado e, em pequena medida, algum controle sistêmico pelo Estado. Com certeza a diretriz da municipalização, bem como a característica federativa do Estado brasileiro, vem agravando esta fragmentação. O pacto de gestão interfederativo e a constituição de Colegiados de gestão regionais representam um esforço para atenuar os malefícios decorrentes deste processo histórico.
Deixo explícito que estou me valendo da tradição dos sistemas socializados de saúde para criticar a história do SUS. Significa um modo de ver apenas, não a verdade absoluta. Entretanto, acredito, seria conveniente considerar estas evidências históricas, construindo justificativas para cada singularidade que cometermos, já que há certo consenso mundial sobre a superioridade destas experiências sobre a tradição liberal ou de mercado prevalente nos Estados Unidos da América e, em grande medida, no Brasil, apesar da política oficial denominada SUS.
Em todos estes países houve confronto – conflito, oposição – entre a política oficial e o discurso médico hegemônico. Isto porque faz parte desta tradição alterar tanto o processo de trabalho quanto o paradigma com que se pensa e se pratica o cuidado à saúde. Quanto à organização do trabalho, observou-se, nestes países, mudanças importantes na forma de remuneração, na relação profissional e usuários, bem como na relação interdisciplinar e com outros setores. Em geral, estes processos combinaram autonomia com integração dos médicos e demais profissionais em redes e sistemas de compromisso, alterando radicalmente o modelo liberal de prática. Já me referi a composições e concessões que vários sistemas realizaram com esta tradição, algumas cedendo a pressões corporativas, outras no interesse dos pacientes e familiares. De qualquer forma, abriu-se um período de conflito e de negociação explícita entre trabalhadores e o projeto reformista. No Brasil, tem se evitado a explicitação destas diferenças e, portanto, não se gerou, em vinte anos, um entendimento nacional sobre como organizar-se o trabalho em saúde. Ao contrário, constato, nos últimos anos, uma tendência do movimento médico em confrontar-se com o SUS com a intenção de retomada da lógica de mercado na prestação de serviços. E isto sem que os governos apresentem opções razoáveis de reordenamento do trabalho segundo uma lógica sistêmica, interdisciplinar e ampliada.
Outra linha de enfrentamento refere-se aos denominados paradigmas. Modos para reduzir a “medicalização”, ampliando o grau de autonomia da sociedade, famílias e pessoas com relação às instituições de saúde. Maneiras para ampliar os mecanismos de intervenção sobre os “determinantes sociais” do processo saúde e doença: defesa das pessoas e do planeta. No Brasil, avançamos na estratégia de saúde da família e nos programas de saúde mental e AIDS, nos quais importante reformulação e ampliação do trabalho em saúde vem se realizando. Entretanto, perdemos espaço na saúde pública e não avançamos na lógica da atenção hospitalar e de outras especialidades. A saúde pública no Brasil, em uma perspectiva discursiva mudou radicalmente: virou Saúde Coletiva. Na prática do SUS, contudo, a saúde pública passou a se denominar vigilância em saúde, conservando o paradigma reducionista e autoritário da velha saúde pública. A saída estaria na Promoção, apresentada como novo paradigma? Quanto a hospitais e serviços especializados sequer criou-se a “tensão paradigmática”, conforme Luiz Odorico Andrade (2006) classifica os longos períodos de convivências de várias escolas e linhas de pensamento e de prática.
Resumindo, acredito que a reforma sanitária brasileira não conseguiu ainda co-construir uma cultura e sujeitos com capacidade de análise e de intervenção à altura da complexidade do setor saúde. A expansão do setor público no cuidado à saúde não se acompanhou de um desenvolvimento harmônico da capacidade de gestão e de construção de novos projetos. A política e o estado brasileiro estão aquém do que seria necessário para concretizar a existência de um sistema nacional de saúde. Não existe política e gestão sem pessoal, sujeitos, logo…

Referência bibliográfica
 
ANDRADE, L O M. A saúde e o dilema da intersetorialidade. São Paulo: Editora Hucitec; 2006.
ELIAS, P E. Estado e Saúde: os desafios do Brasil contemporâneo. São Paulo em Perspectiva 18 (3): 41-46, 2004.
Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/spp/v18n3/24777.pdf
FOUCAULT, M. O nascimento da Biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Editora Martins Fontes;
2008.
OPS/WHO – Dawson Report (Informe Dawson). Publicación Científica número 93. Washington/DC/EUA; fevereiro de 1964.
TANAKA, O Y; OLIVEIRA, V E. Reforma(s) e estruturação do Sistema Saúde Britânico: lições para o SUS. Saúde e Sociedade 16 (1): 7-17, 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v16n1/02.pdf

 
[1] Médico sanitarista e professor titular de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas.