Relato de Violência Obstétrica vivida no CAISM-Unicamp

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Antes de mais nada, acho importante explicar o lugar de onde falo: sou terapeuta ocupacional, trabalhei anos na rede pública de saúde em Campinas e hoje faço doutorado em psicologia social pela USP. Se trabalhei para o SUS é porque acredito nele, acredito na potência do SUS enquanto política pública e vejo nessa política o reflexo das lutas dos movimentos sociais que pautaram a saúde.

No entanto, temos ainda muitas lutas pela frente, na conquista de um serviço de saúde de qualidade e, sem dúvida nenhuma, a atenção a gestantes, parturientes, suas famílias e aos bebês é algo que precisa ser reformulado. Muitas práticas precisam ser revistas e, na minha opinião, os relatos das mulheres que são ou foram atendidas por instituições que prestam assistência em pré natal, ao parto e ao pós parto são fundamentais para iniciar uma mobilização nesse sentido.

É por isso que conto aqui a nossa história, que se soma às histórias de tantas outras famílias:

Fiz o pré natal e o parto no CAISM, que é o hospital da mulher da Unicamp. Sou defensora do SUS e fiz esta escolha, em grande parte, pela qualidade técnica da atenção prestada em situações como a minha, com grande risco de nascimento prematuro. Acredito que essa escolha foi fundamental nos momentos iniciais da vida das minhas filhas, que precisaram da assistência da UTI neonatal, devido a prematuridade. 

No entanto foi um acompanhamento marcado pela violência obstétrica.
Hoje, mais de um ano após o nascimento das minhas filhas (gêmeas), no CAISM, onde também fiz acompanhamento pré natal consigo me organizar para escrever este texto, com relatos de diversas violências sofridas por mim e minha família nesta instituição.

Decidi fazer o acompanhamento no CAISM logo no inicio da gestação, quando descobri que era uma gestação gemelar. Nessa época segui o acompanhamento com o médico do convênio, mas decidi seguir o acompanhamento na unicamp também porque esse hospital tem, na minha opinião, a melhor UTI neonatal da minha cidade (Campinas) e, como eu tenho gêmeos na família sei que são gestações que nem sempre chegam à termo e achei que, por garantia, seria bom poder contar com a estrutura de uma boa UTI neonatal. Eu sabia que talvez não precisasse (e torcia para não precisar), e sabia também que o simples fato de fazer o pré natal naquele hospital não me garantiria a vaga na UTI neonatal, mas nós (eu e o meu companheiro) achamos que seria importante estarmos familiarizados com o CAISM, caso precisássemos contar com essa estrutura.

Além disso haviam outras vantagens: o hospital é do lado de casa, poderia fazer gratuitamente os ultrassons que o convenio encrespa um pouco para liberar, etc.

Vale dizer que eu já trabalhei pro SUS e que eu não acho normal, e acho até que é violento, o que se considera como rotina nos ambulatórios públicos como o do CAISM (e que aconteceu conosco, durante nosso acompanhamento), onde todos os atendimentos e exames são marcados para o mesmo horário e os atendimentos são verdadeiramente por ordem de chegada e onde você encontra gestantes de risco, mulheres com câncer e recém nascidos aguardando por HORAS para fazer consultas ou exames (e quando eu digo horas digo 3 ou 4 horas). 

Com 18 semanas de gestação, ao fazer um exame de ultrassom de rotina os médicos disseram que meu colo do útero estava "apagado" na imagem. Aparentemente, até onde consegui saber, a insuficiência do colo do útero é a principal causa de aborto tardio e, enquanto um colo do útero considerado muuuuuuuuuuuuito curto tem 1cm o meu parecia ter 6mm. Os médicos me explicaram, da forma mais delicada que conseguiram, o que estava acontecendo, e me internaram por cerca de 24h, até decidirem qual seria a conduta, se eu deveria passar por um pequeno procedimento cirúrgico ou não.

Enquanto aguardava minha internação ficamos, eu e o Marcelo, no pronto socorro, apenas esperando o leito. Bem na hora que o Ma saiu pra buscar um almoço pra gente veio um estudante de medicina (um interno do quinto ano) conversar comigo, perguntar se tinham me explicado que eu teria que escolher um dos bebês. Na hora fiquei chocada, como assim? Escolher? Ninguém tinha me falado nada disso! Quando eu questionei ele ficou meio pálido, pediu licença e saiu, voltando depois com uma outra estudante que me explicou o que estava acontecendo e negou que eu teria que escolher entre as crianças.

Ninguém me pediu desculpas pelo "leve" engano e a vida seguiu seu curso no pronto socorro. Fiquei internada na PATOB (Patologia Obstétrica), com diagnóstico de IIC e prescrição de repouso absoluto. A equipe de enfermagem se negou a fazer minha higiene pessoal (banho), ofereceram-me uma comadre, mas não me foi oferecido papel higiênico ou gel para a limpeza das mãos.

Escutei, diversas vezes, a equipe de enfermagem queixar-se por ter que recolher minha urina por muitas vezes, sendo que uma técnica de enfermagem chegou a dizer a mim que faço xixi demais. Quanto ao banho, embora eu estivesse pedindo para tomar banho desde o começo da tarde, a equipe da tarde não me deu banho e a equipe da noite me disse que não me dariam banho também porque não estava na escala, porque a equipe da tarde, na passagem de plantão, havia dito que eu já tinha tomado banho em casa de manhã.

Felizmente esse pesadelo da internação hospitalar durou umas 24 horas e depois me liberaram para casa, onde eu permaneci de repouso absoluto até que as crianças nascessem. Porém, embora de repouso, segui fazendo consultas quase semanais no CAISM, onde a equipe seguiu dando amostras do despreparo para o atendimento humanizado.

Depois, durante o acompanhamento de pré natal uma interna do curso de medicina que me atendeu negou-se a preencher o formulário de pedido de BPC ao INSS, ela chegou a me dizer "sabe qual é o seu problema? Seu problema é que você não gosta de esperar?" (e eu pensei: bom, quem é que gosta, né?), posteriormente um docente assinou o mesmo relatório, indicando inclusive o repouso absoluto. Além disso, como eu chorei diante da negativa da estudante, ela escreveu no meu cartão de pré natal que eu teria traços depressivos. A mesma interna, em uma consulta posterior fez um toque que foi extremamente doloroso. quando ela saiu da sala eu e o Ma conversamos, na presença da técnica de enfermagem, sobre o porque o exame de toque me parecer tão doloroso. Quando a estudante voltou me deu uma bronca, dizendo que havia me escutando dizendo que ela havia feito o toque de forma errada (o que eu não disse) e foi bastante ríspida ao me recriminar por tê-la questionado.

Com 32 semanas de gestação minha bolsa estourou. Foi em casa, era quase meia noite e nós já estávamos felizes de a gestação ter chegado a tanto, sabíamos que as meninas estavam bem, que vinham se desenvolvendo bem, mas sabíamos que precisaríamos da UTI neonatal até que elas ganhassem mais peso, então pegamos nossa malinha e minha mãe levou a gente para o CAISM.

No ultimo ultrassom as meninas estavam sentadas, mas o médico, no toque, disse ter sentido primeiro um pé, mas depois uma cabeça. Conversamos nós 3 (eu, o médico e o Ma) e decidimos pela cesárea. Eu sei que tem muitas experiências negativas com indicações desnecessárias de cesárea, mas queria deixar claro que essa, concordem os demais ou não, foi uma decisão conjunta.

Durante o parto fui privada da presença do meu marido durante, o que se alegou ser a preparação para a cesárea. Neste período recebi informações importantes sobre o que aconteceria com as minhas bebês ao ir para a UTI nenonatal, sem a presença do meu acompanhante.

Ainda durante o trabalho de parto fui recriminada pela enfermeira obstétrica e pela anestesista, por fazer vocalizações durantes as contrações. A anestesista pediu para eu não gritar com ela (a pessoa tem que ser muito autocentrada para achar que uma mulher em trabalho de parto está gritando com ela) e eu expliquei que, bom, eu ia gritar de qualquer forma, mas que se ela preferia que eu não fizesse isso ao responder suas perguntas que simplesmente não as fizesse durante as contrações… com isso chegamos a um bom acordo.

Já a enfermeira ficou muito incomodada com as minhas manifestações de dor e chegou a dizer que eu estava sendo egoísta, porque, como estava insistindo para receber a anestesia apenas depois de uma contração, ela dizia que as bebês poderiam nascer antes da cesárea ser feita (como se isso pudesse ser uma coisa ruim, nascer via vaginal).

Após o parto, a enfermeira recusou-se a me ajudar a sair da cama do centro cirúrgico e ir para a maca, queixando-se da minha conduta ao pedir ajuda e alegando que eu deveria faze-lo sozinha (sendo que minhas pernas estavam completamente paralisadas, como efeito da anestesia).

Após o parto tive que aguardar 15 horas para poder ver minhas filhas porque a equipe da PATOB não me liberava sem que a residente (que não aparecia antes disso) me visse.

No dia seguinte ao nascimento, quando o médico que supervisiona os residentes me viu, questionou como eu poderia já ter tido bebê, se ainda tinha "esse barrigão". O detalhe supérfluo aqui é que o médico em questão era um quarentão bem barrigudo.

Na UTI neonatal nós, e diversos outros casais, fomos privados de ver nossas filhas, com a alegação de que, na sala onde estavam, alguma criança estava passando por algum tipo de procedimento que impossibilitava a presença de visitantes. Algumas vezes cheguei a ficar mais de 24 horas sem ver uma de minhas filhas, tendo passado dois períodos inteiros no hospital.

Não sei dizer o que estava acontecendo em todas essas vezes, acredito que, de fato, hajam procedimentos a serem feitos, e que, talvez seja necessário sair da sala, mas posso dizer que muitas vezes eu fui a única mãe dentro da sala e ouvi a campainha sendo tocada por diversas vezes (provavelmente por um pai ou uma mãe) sem que nenhum profissional se movesse para atende-la e, posso dizer que, em algumas dessas vezes os profissionais pareciam ocupados, mas em outras eles estavam mesmo numa rodinha de conversa.

Ainda na unidade de internação semi intensiva da neonatologia uma técnica de enfermagem tirou uma das minhas filhas dos meus braços, sem me pedir permissão, enquanto eu amamentava e a sacudiu e apertou tanto que as marcas de seus dedos ficaram na pele da bebê. A conduta foi tomada com a justificativa de acordar a criança para que pudesse mamar, e me deixou assustada e com medo de intervenções posteriores de outr@s profissionais.

Escutei discussões da equipe da neo (tanto equipe médica quanto de enfermagem) sobre outras famílias, algumas dessas discussões eram técnicas e outras julgamentos de valor, de qualquer forma, é completamente antiético discutir na frente dos outros pacientes.

Uma técnica de enfermagem tentou me impedir de ter acesso à pasta de informações de uma das minhas filhas, chegando a inventar procedimentos burocráticos para que eu pudesse acessá-la (quando, na verdade, o acesso aos responsáveis é livre).

Uma enfermeira orientou as técnicas de enfermagem a me impedir de pegar sozinha minhas filhas dentro da incubadora, sob a alegação de que eu poderia deixá-las cair no chão. Por duas vezes quando técnicas de enfermagem foram pegar uma das meninas na incubadora aconteceu de baterem alguma parte do corpo da criança contra a própria incubadora. Acho que é o cúmulo não poder pegar o próprio filho, ou ter alguém que acha que pode decidir por mim quando eu posso pegar minhas filhas. As filhas são minhas, não do Estado. Eu sou a responsável. Simples assim.

Além de tudo, a sala da semi intensiva é muito fria, pois compartilha o sistema de ar com o banco de leite e, mesmo os bebês ficando super agasalhados, uma de minhas filhas (além de outros bebês) teve repetidos episódios de hipotermia, o que lentificou seu processo de alta.

Uma enfermeira também me repreendeu pelo fato de que uma de minhas filhas mamava por pouco tempo (cerca de 10 minutos, porém ganhando peso de acordo com o esperado), dizendo que, se ela não mamasse por, pelo menos 20 minutos, teria alta com sonda (nesse dia eu chorei por horas com medo de estar atrapalhando o processo de alta das meninas).

 Não sei bem o que fazer com isso do ponto de vista institucional… me parece que não há o que fazer, para além de entrar para as estatísticas. Então resolvi mandar este e-mail com este conteúdo para a ouvidoria do CAISM e publicar o texto no facebook. O que será feito a partir desta mensagem eu não sei. Acredito que, muito possivelmente, nada. Mas posso adiantar que a diretoria clinica do CAISM me escreveu depois disso, pedindo uma reunião. Aguardo ainda os desdobramentos… mas espero que a divulgação dessa experiência ajude outras mulheres a botarem a boca no trombone, a buscarem a ouvidoria dos hospitais, a publicarem suas experiências e constrangerem os profissionais e instituições que se envolvem nesse tipo de conduta.