Humanização ou Cerebrização

13 votos

O sujeito cerebral: De órgão a ator social

Francisco Ortega e Benilton Bezerra Jr.

Océrebro humano é cada vez mais percebido como aquilo que nos define.  Nas últimas décadas o cérebro vem se tornando, mais que um órgão, um ator social. O espetacular progresso das neurociências, a popularização pela mídia de imagens e informações que associam a atividade cerebral a praticamente todos os aspectos da vida, e certas características estruturais da sociedade atual têm produzido no imaginário social uma crescente percepção do cérebro como detentor das propriedades e autor das ações que definem o que é ser alguém. O cérebro responde cada vez mais por tudo aquilo que outrora nos acostumamos a atribuir à pessoa, ao indivíduo, ao sujeito. Inteiro ou em partes, surgiu como o único órgão verdadeiramente indispensável para a existência do self e para definir a individualidade. Com isso, o ser humano tornou-se o que alguns definem como "sujeito cerebral".

A importância das neurociências nas mais diversas áreas é objeto de pesquisas diversas que mostram como sua influência não só introduz um tema – a relevância do cérebro para cada disciplina específica – como reorganiza o próprio debate interno. Exemplos interessantes são as coletâneas Ecce cortex (Hagner, 1999) e Hirntod (Schlich and Wiesemann, 2001). Ecce cortex mostra como o cérebro adquiriu significados diferentes em áreas diversas (anatomia, psiquiatria, antropologia, psicologia, psicologia e arte), nas quais vem sendo incorporado como forma de exprimir ou encarnar princípios e programas próprios a cada uma delas. Hirntod ("Morte cerebral") desenha uma história cultural da definição de morte que tem na cessação da atividade cerebral o critério fundamental. A adoção desse critério, longe de circunscrever o debate nos limites do campo médico, fez com que ele ultrapassasse fronteiras disciplinares e culturais, precipitando querelas e análise jurídicas, filosóficas, religiosas, éticas e sociológicas.
Estudos como esses examinam as condições de possibilidades históricas e epistêmicas do surgimento da noção de ser humano como sujeito cerebral, mas não tratam do sujeito cerebral em si. Seu objeto comum é a história dos estudos do cérebro e a análise do seu impacto social, mas só recentemente esses dados têm sido conceitualizados como novo paradigma antropológico.

Um exemplo interessante de pesquisa cujos resultados apontam nessa direção é o trabalho do antropólogo da medicina Joseph Dumit, que examina como a difusão das tecnologias de imageamento ce-re-bral afeta não apenas as noções teóricas do self, mas também a experiência individual da identidade pessoal. Dumit procura mostrar como essas técnicas produzem uma "imagem digital da categoria da pessoa" capaz de mudar a percepção que os indivíduos têm de si próprios mediante o que ele denomina "auto-estilização objetiva". Ao assinalar este efeito, o antropólogo aponta para um processo geral em curso no cenário social atual no qual práticas de si e tecnologias do eu típicas da cultura do individualismo moderno sofrem claro deslizamento de seu centro de gravidade, deixando a interioridade discursiva do self psicológico para se alojar numa interioridade visível, objetiva, representada fundamentalmente pela imagem do cérebro em ação.

Como assinala Fernando Vidal, o sujeito cerebral pressupõe o que o historiador das ciências do cérebro Michael Hagner denominou homo cerebralis. Essa expressão captura a transformação do cérebro ao longo do século XIX de local da alma para órgão do self. A noção do sujeito cerebral também implica a idéia de que o ser humano depende de maneira crucial do sistema nervoso – o que o neurocientista francês Jean-Pierre Changeux chamou "homem neuronal".

Porém, a idéia do sujeito cerebral é mais ampla que a de homo cerebralis ou de homem neuronal. Designa uma figura antropológica – o ser humano como cérebro – com uma diversidade grande de inscrições sociais e imaginárias, dentro e fora dos campos neurocientíficos. Como tal constitui uma das condições de possibilidade de projetos emergentes que visam aproximar as neurociências das ciências humanas para reformular estas  com base no conhecimento cerebral. Nas últimas décadas este processo sofreu uma verdadeira explosão, como se pode verificar pelo aparecimento de campos como neuropolítica, neuroteologia, neuroética, neuroeducação neuromarketing, neuroascese, neurofenomenologia, neurofilosofia, neuroeconomia, neuropsicanálise, neuroarte etc.

O cérebro é obviamente crucial para as propriedades que definem a personalidade humana e as trocas sociais, tais como linguagem e consciência. E o avanço das pesquisas empíricas demonstra com informações cada vez mais precisas as bases biológicas e neurais das diversas modalidades da experiência subjetiva. Mas é equívoco supor que a emergência do sujeito cerebral seja resultado necessário do progresso neurocientífico. É a expressão de uma transformação antropológica e sociocultural de maior amplitude, relacionada com o uso crescente de predicados biológicos para definir os indivíduos – processo identificado por termos tais como "biossociabilidade" e "bioidentidades". Desse modo, mais que efeito, o sujeito cerebral é, em grande medida, pressuposto das neurociências modernas.

Na verdade, essa transformação tem raízes antigas. A mais conhecida talvez tenha sido a frenologia, baseada nas teorias do médico vienense Franz Joseph Gall (1758-1828). Ao mesmo tempo estudo das faculdades psicológicas, teoria sobre o funcionamento do cérebro e método para determinar o caráter e as habilidades das pessoas pelo exame das características do crânio, a frenologia empolgou a imaginação cultural de seu tempo, até ser relegada a um ostracismo duradouro pelo descrédito cientifico que sepultou as pretensões de Gall e de seus seguidores (entre eles o tristemente famoso Cesare Lombroso). Gall considerava o cérebro o órgão da mente, composto de faculdades inatas, cada uma delas com localização própria ou pequeno "órgão". O crescimento diferencial desses "órgãos" moldaria o cérebro e, como conseqüência, também a forma do crânio. Assim, a superfície ou "protuberâncias" do crânio revelariam as atitudes psicológicas e as inclinações do indivíduo.

Mesmo se os pretensos órgãos do cérebro resultaram ser imaginários, a frenologia foi o primeiro sistema a atribuir funções para regiões localizadas do córtex cerebral, e algumas de suas premissas foram confirmadas na segunda metade do século XIX, especialmente no que diz respeito às localizações cerebrais e à arquitetura celular do cérebro. Desde então, o pressuposto neurofilosófico de uma correlação entre estados cerebrais e psicológicos nada perdeu de seu fascínio. Pelo contrário, sua atração aumentou graças à difusão de técnicas como o pet scan, que produzem imagens cuja natureza objetiva, dinamismo, aparente legibilidade e apelo intuitivo parecem lhes fornecer o estatuto científico decisivo – que faltava a Gall – para estabelecer a ancoragem cerebral da identidade pessoal.

Mas só nas últimas décadas precipitaram-se as condições para o surgimento dessa nova figura antropológica. Entre elas, o fortalecimento do cientificismo (crença ideológica na superioridade do discurso científico sobre os demais), o apagamento da política e das práticas sociais que consideravam sujeito como autor de sua existência individual e coletiva, a emergência de uma cultura da objetividade que valoriza a imagem em detrimento da palavra e da interpretação, o deslocamento das regras de socialização fundadas na interioridade sentimental em direção a uma cultura da subjetividade somática, a explosão da tecnociência, das biotecnologias e do consumo intensivo de produtos e serviços voltados para a otimização do desempenho biológico como correlato das práticas de si, e assim por diante.

Compreender e analisar a história e as implicações do aparecimento do sujeito cerebral exige uma estratégia que articule disciplinas geralmente dispersas, o que nunca é fácil realizar. O esforço, porém, vale a pena. Afinal, o que está em jogo não é pouca coisa: a discussão sobre o que, afinal, nos define como humanos.