Raphael Henrique Travia: do desespero à militância

17 votos

Por Sonielson Luciano de Sousa
É publicitário (CEULP/ULBRA), pós-graduado em Educação, Comunicação e Novas Tecnologias (Unitins), editor do jornal e site O GIRASSOL, graduando em Filosofia (Universidade Católica de Brasília), e colaborador do (En)Cena.

 

raphael-travia-1_0.png

Foto: Michel Rodrigues

 

Raphael Henrique Travia tem 28 anos, é natural de São Paulo, e mora grande parte de sua vida no interior de Santa Catarina. Ele tem transtorno bipolar, é autor do site “Folha de lírio: O Jornal Virtual da Saúde Mental”, uma referência em notícias que abordam a luta das pessoas em sofrimento psíquico. Quando tinha 15 anos e ainda morando na grande São Paulo, começou a ter alguns surtos, mas demorou muito tempo para descobrir a patologia. Passou por vários hospitais psiquiátricos, por diversos CAPS e os médicos não conseguiam diagnosticá-lo corretamente; eles achavam que Raphael tinha esquizofrenia, “já que eu só apresentava apenas a parte triste do transtorno bipolar, não havia a euforia”, recorda.

Aos 19 anos, Raphael mudou-se para o Meio Oeste de Santa Catarina, uma vez que o seu irmão havia lhe arrumado um emprego numa agroindústria da região. “Acabei surtando lá dentro, na linha de produção”. Raphael foi conduzido para o CAPS I de Herval D’ Oeste, mas não obteve sucesso no tratamento. Aos 23 anos, mudou-se para Joinville com sua família, mas o início do tratamento na cidade dos príncipes não foi fácil… Houve até um médico, ele lembra, que dizia que ele era o eterno “Peter Pan”, que ele tinha que crescer, pois “tudo o que eu começava eu não terminava”. Raphael não conseguia permanecer na faculdade nem nos empregos. “Ele [o médico] falava que eu já tava velho e que eu tinha que parar de ser criança”, comenta, para emendar que, com isso, descartou a hipótese de esquizofrenia.

Raphael continuou fazendo um tratamento na Atenção Básica, com uma terapeuta ocupacional bastante conhecida de Joinville. Por trabalhar na área há mais de 20 anos e ter ajudado a estruturar toda a rede de saúde mental da cidade, “ela me entendia muito”, explica. “O objetivo dela era que eu voltasse a trabalhar, e todo o tratamento era para que isso acontecesse. E aí eu comecei a fazer um curso de aprendizagem no Senai e no meio do ano eu vi que tinha vestibular para o Instituto Federal de Santa Catarina. Passei no vestibular, fiz seis meses de Mecatrônica, um curso totalmente baseado na matemática, e apesar de todo mundo ter muita educação, ninguém falava com ninguém”, recorda. “Percebi que eu tinha dificuldade com a matemática, e o IF-SC ofereceu outro curso, de Gestão Hospitalar. Daí eu pensei que este curso poderia ser um pouco mais fácil, e senti que podia concluí-lo. Só que quando eu troquei de curso no primeiro semestre de 2010, eu comecei a me sentir incomodado, e aí apareceu a fase da euforia, pois as coisas estavam dando certo, eu tinha acabado de entrar na faculdade, e eu não parava de dar risadas”, conta.

raphael-travia-2.png

Atualmente Raphael possui uma vasta experiência na área de Saúde Mental, e foi convidado pela Mostra para falar um pouco de suas experiências – Foto: Michel Rodrigues.

Conduzido ao Pronto Atendimento Psicossocial (PAPS), uma espécie de ambulatório em Saúde Mental da cidade, julgaram que Raphael não tinha nada que configurasse situação de emergência, e sua consulta foi marca para alguns dias depois. Nesta espera, ele teve um surto na sala de aula. Assustado, o pessoal da sala falou que se ele não estivesse feliz lá [no curso de Gestão hospitalar], poderia então voltar para a Mecatrônica. “A minha professora tinha ido para a sala dos professores, eu saí da minha sala fui atrás dela, quando a encontrei eu comecei a falar que não aguentava mais as pessoas, estava um pouco agressivo e comecei a chorar. Quando ela [a professora], percebeu que eu estava tendo um surto, ligou imediatamente para o SAMU, mas o serviço não quis fazer o atendimento. Como a professora é também enfermeira, convenceu a equipe a vir à faculdade”, lembra-se. O SAMU então o levou para o Hospital Regional de Joinville. Como já era noite, o psiquiatra só retornaria no dia seguinte, às 7h30. “Eu e minha mãe não queríamos ficar ali esperando a noite inteira. Então pegamos um táxi e fomos para casa”, conta.

Dois dias depois, Raphael foi para o CAPS III e fez o primeiro acolhimento, passando então uma semana no local. Uma psiquiatra (Dra. Carla) começou a tratá-lo com ácido valpróico, já que acreditava que o lítio (recomendado para o tratamento de bipolaridade) não resolveria mais o seu problema. “Lembro que ela me falou para fazer o tratamento direitinho e parar de ter surtos, pois um dia eu não iria conseguir mais voltar ao normal”, comenta.

No fim da primeira semana de tratamento no CAPS, ia ocorrer a Conferência Regional de Saúde Mental, e Raphael saiu do período de hospitalidade e já foi direto para a Conferência. Lá, ele conseguiu ser eleito delegado para participar da conferência estadual e pouco tempo depois chegou a participar da etapa nacional do evento. Nesse meio tempo, a sua mãe – que é psicóloga – não aceitava muito aquela circunstância. Ela julgava que Raphael não merecia passar por tudo aquilo, pois além de ter nascido com uma deficiência física, sequela da falta de oxigênio em seu cérebro no momento de seu nascimento, agora acabara por ser diagnosticado com transtorno mental. “Eu e meu irmão fomos criados pela nossa mãe. Quando eu tinha cinco anos meus pais se separaram, e não tive convivência com meu pai. Apesar de ser psicóloga e de ter trabalhado muito tempo com usuários de álcool e outras drogas, ao se deparar com uma situação destas dentro de casa, é outra história. Minha mãe estava confusa, dizia que eu não merecia passar por aquilo, por quê Deus tinha feito isso comigo”, relata. A família é membro da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mórmons).

Ao ser eleito para a etapa nacional da Conferência, devido ao fato de estar medicado, Raphael tinha direito de ir com um acompanhante. Foi então que ele levou a sua mãe. Lá, ela conheceu outras famílias e outras pessoas que também têm o mesmo problema, e percebeu que isso não acometia somente o filho dela. “Ou seja, passou a ver que podia acontecer com qualquer um. E aí percebeu a importância de eu fazer o tratamento no CAPS, já que quando eu fazia [o tratamento] nos hospitais, eu sempre voltava muito pior do que eu tinha ido”, relata.

Assim, Raphael esteve em acompanhamento terapêutico no CAPS III 24 Horas de Joinville durante os anos de 2010 e 2011; paralelo a isso, o pessoal da faculdade foi no CAPS e fez uma parceria, pois mesmo sendo de uma faculdade que tinha um curso na área de saúde, “estava difícil para eles entenderem a situação”. Raphael conta que na sua turma, de 40 alunos, havia cinco pessoas com transtorno mental grave, e quando ele surtou, “o surto dos demais também apareceu”, conta,entre risos. Raphael, no entanto, conseguiu terminar o curso e se formar em abril de 2013.

Durante o período de estudos, ele era aposentado por invalidez, teve oportunidades de fazer pesquisas pelo CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), passou a ganhar uma bolsa (o que ele acumulou com a aposentadoria, com previsão legal), e também enfrentou algumas resistências. “Eu procurei uma professora minha, para que ela me colocasse para fazer pesquisa, mas ela estava com medo, pois havia visto o meu surto”, lembra. “Depois de um tempo eu consegui fazer a pesquisa, e foi aí que nasceu a Folha de lírio”, conta, em referência ao jornal virtual com notícias voltadas para a saúde mental. “Durante a pesquisa, eu vi que todos os serviços de saúde mental de Joinville estavam na página de saúde mental da prefeitura, menos o CAPS III, que já existia há pelo menos três anos. Ou seja, os serviços não estavam sendo atualizados nas páginas oficiais. Foi daí que surgiu a ideia de eu fazer o website”.

Inicialmente Raphael contou com o apoio financeiro da bolsa de estudos fornecida pelo CNPq para arcar com a confecção e hospedagem do site. Quando a bolsa de estudos acabou, o site foi mantido com o auxílio de seus familiares. A primeira projeção só viria com a inscrição do trabalho no 2° Laboratório de Inovação e Participação Social da OPAS (Organização Pan Americana da Saúde, ligada à Organização Mundial de Saúde). Ele foi selecionado para apresentar o projeto neste Laboratório, sendo que de 10 trabalhos do Brasil inteiro, o de Raphael estava lá. “Então eu apareci em jornais, fui na televisão, várias pessoas me procuraram para saber mais detalhes. Foi tudo muito recompensador. Na época eu fiquei marcado como alguém que sabia demais de saúde mental, os meus professores já não aguentavam mais porque tinha coisas que eu falava que eles ainda não sabiam, e eles tinham que correr atrás”, recorda.

Há menos de 1 ano,  Raphael Henrique Travia conseguiu passar no concurso público para o IF-SC (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina), no sistema de cotas para Pessoas Com Deficiência (PCD). Ele foi lotado na cidade de Canoinhas, no norte catarinense, a 380 km de Florianópolis.

 

Para saber mais sobre a Folha Delírio, acessar https://www.folhadelirio.com.br/ 

Texto originalmente publicado no portal (En)Cena – A Saúde Mental em Movimento