Exploração sexual de meninas indígenas é crime corrente no interior amazônico

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A exploração sexual de meninas e jovens indígenas no interior do Estado do Amazonas vem sendo investigada pela Polícia Federal há mais de três anos. Em Coari, prefeito da cidade foi acusado de pedofilia, com processo em andamento desde 2009. 

Em São Gabriel da Cachoeira, a cidade com maior população indígena do país, dez envolvidos em exploração sexual de meninas indígenas, entre eles alguns comerciantes conhecidos da cidade, foram presos em 2013 e agora, sob decisão do STJ, terão seus processos julgados pela Justiça Estadual do Amazonas, que por sinal vem sendo investigada pela CNJ (Conselho Nacional de Justiça) por morosidade no julgamento de processos que envolvem exploração sexual de crianças e adolescentes no interior amazônico.

Morei por quase quatro anos em São Gabriel da Cachoeira, sei o rosto de cada um que é acusado, assim como todos que moram na cidade, e conheço, como todos indígenas e não indígenas, parte das histórias de vida dos comerciantes, chegados na década de 1980 para exploração de garimpo em Terras Indígenas, especialmente em território yanomami.

Cidade e indígenas sobreviventes da exploração e  violência do garimpo, exploração e violência dos patrões da piaçaba, da violência missionária com os internatos de crianças indígenas, que marca o corpo da geração que hoje tem entre 40 a 50 anos. Medo sempre presente. Medo que imobiliza a população, mas que teve coragem de denunciar e que hoje, de novo, vive com medo da impunidade, do descaso com a população indígena. 

Segue matéria da Elaíze Farias  e Kátia Brasil, para o Amazônia Real, sobre o caso da exploração sexual de meninas indígenas em São Gabriel da Cachoeira.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu transferir da Justiça Federal para uma Comarca da Justiça do Amazonas a competência para processar e julgar os dez réus acusados de explorar sexualmente meninas indígenas do município de São Gabriel da Cachoeira, na fronteira do Estado com a Colômbia. A Justiça do Amazonas vem sendo alvo de investigação do Conselho Nacional de Justiça por morosidade no julgamento dos crimes contra crianças e adolescentes.

A decisão do STJ saiu no dia 22 de abril, mas apenas na semana passada o Ministério Público Federal do Amazonas foi notificado. A ação que discutiu a competência do julgamento foi impetrada pela defesa de um dos réus identificado pelas iniciais M.C.P. Na mesma decisão, ele teve negado um pedido de liberdade.

O Ministério Público Federal no Amazonas informou à agência Amazônia Real que vai recorrer da decisão do STJ com um recurso extraordinário da Procuradoria Geral da República no Supremo Tribunal Federal. O objetivo é que a ação penal seja julgada na Justiça Federal, onde o processo tramita desde 2012.

Os dez réus foram presos durante a Operação Cunhantã, da Polícia Federal do Amazonas, em 22 de maio de 2013. Entre eles estão oito homens: comerciantes, ex-vereador, servidores públicos, militares do Exército brasileiro. Eles são acusados de manter relações sexuais com meninas indígenas virgens, com idades entre 9 anos e 14 anos, em troca de dinheiro, presentes, alimentos e bombons. Segundo a investigação, os acusados são pessoas com poder econômico que se aproveitaram da situação de pobreza das meninas.

As garotas são das etnias tariano, wanano, tukano e baré, que vivem na periferia de São Gabriel da Cachoeira, cuja população é 90% indígena.

Os réus da Operação Cunhatã (que significa menina na língua tupi) foram denunciados pelos crimes de estupro de vulnerável, corrupção de menores, satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, favorecimento da prostituição de vulnerável, rufianismo (tirar proveito da prostituição alheia) e coação no curso do processo. Quatro continuam presos, inclusive M.C.P, autor da ação do STJ.

Segundo o MPF, dois dos denunciados são réus em crime previsto no art. 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente: “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”.

Os casos de violência sexual contra as crianças e adolescentes foram denunciados em 2008 pelo Conselho Tutelar de São Gabriel da Cachoeira e pela missionária católica Giustina Zanato, mas só em 2012, quando a PF assumiu as investigações a pedido do Ministério Público Federal no Amazonas, é que os acusados começaram a ser investigados e punidos. O primeiro inquérito aberto em 2011 ficou parado por um ano na Polícia Civil de São Gabriel da Cachoeira.

A competência da investigação foi transferida da Polícia Civil do Amazonas para a Polícia Federal sob o argumento do MPF de que os crimes contra as meninas indígenas teve repercussão sociocultural na vida delas e de seus familiares. A instituição atendeu solicitação do Conselho Tutelar da Infância e Juventude, que criticou o andamento da apuração dos casos de exploração sexual na esfera estadual. Conselheiros e quatro meninas foram ameaçados de morte.

A mudança de competência da esfera estadual para a federal foi acatada pela juíza da Comarca de São Gabriel da Cachoeira, Tânia Mara Granito.  Com a decisão do STJ, o caso retornará para mãos da juíza, que deverá julgar, inclusive, a permanência ou não das quatro réus presos preventivamente. Três, que são comerciantes e irmãos, incluindo M.C.P., cumprem as prisões em cadeias de Manaus. Um outro réu, que é ex-vereador, cumpre prisão domiciliar na capital amazonense.

Para STJ, crimes não foram consumados em terra indígena

A decisão do STJ acatou parecer integral do ministro Moura Ribeiro. Em seu relatório, ele usou como exemplo para declinar a competência da Justiça Federal para Estadual um julgamento no Rio Grande do Sul. A denúncia envolveu crime de exploração sexual de adolescentes indígenas, mas sem relação com disputa sobre direitos delas, o que atraiu o enunciado da Súmula n.º 140, do STJ, “para garantir a competência à justiça comum estadual para processar e julgar o crime em que o indígena figure como autor ou vítima”.

Em seu voto, o ministro-relator Moura Ribeiro diz que o argumento da Justiça Federal para manter a competência da ação penal ficou mantida na “hipotética da ofensa ao patrimônio moral e cultural da comunidade indígena, em razão da agressão à coletividade silvícola, pela grande quantidade de vítimas componentes de uma tribo, mas os crimes não foram consumados na terra indígena, mas sim contra a dignidade sexual”.

“O registro que a narrativa dos crimes imputados aos denunciados tiveram por local de consumação as residências urbanas, motéis e interior de automóveis, nada se referindo a atos praticados no âmbito da comunidade indígena, além do que os envolvidos apresentam um alto grau de civilização, o que por si só, já fragilizaria a idoneidade do entendimento das instâncias ordinárias”, diz o ministro Moura Ribeiro em sua decisão.

No relatório do STJ, há relatos de meninas indígenas entre 9 e 14 anos que foram exploradas sexualmente. Um dos trechos diz: “É possível verificar que os acusados foram apontados por mais de uma vítima como autores dos delitos de exploração sexual de menores indígenas,os quais se aproveitavam da condição das famílias de baixa renda para oferecer dinheiro em troca de favores sexuais”.

Os crimes contra as meninas indígenas teve repercussão na imprensa do Amazonas, nacional e internacional. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República realizou ações de fortalecimento das Redes Locais de Proteção à Criança e ao Adolescente em São Gabriel da Cachoeira. A ministra Maria do Rosário esteve na cidade e ouviu as menores ameaças. Devido a ameaças de morte contra quatro garotas ingressaram no programa de proteção.

Policiais federais prenderam acusado (de branco) em São Gabriel da Cachoeira (Foto: Alberto César Araújo)
Policiais federais prenderam acusado (de branco) em São Gabriel da Cachoeira (Foto: Alberto César Araújo)
Juíza estadual diz que não foi notificada

Procurada pela agência Amazônia Real, a juíza Tânia Mara Granito, titular da Comarca de São Gabriel da Cacheira, disse que não sabia da decisão do STJ. “A Comarca ainda não foi notificada”, afirmou.

Indagada sobre o caso das meninas exploradas sexualmente, ela afirmou que a Comarca “nunca recebeu denúncias contra os acusados e que nunca desceu procedimento de delegacia nem do Conselho Tutelar”.

“Alguém falou que tinha um esquema montado (de exploração sexual). Mas nunca recebi denúncia”, disse a juíza Tânia Granito. Ela não quis comentar sobre a decisão do STJ.

Perguntada sobre sua opinião acerca da exploração sexual das meninas, ela limitou-se a dizer: “Quem permite que essas meninas vão para a rua são os pais”.

A agência Amazônia Real apurou que atualmente São Gabriel da Cachoeira está sem promotor titular há duas semanas. A assessoria de imprensa do Ministério Público Estadual disse que em breve um promotor será enviado para o município, conforme os trâmites para a escolha.

Decisão do STJ provoca indignação em conselheiros

Em entrevista à agência Amazônia Real, a missionária italiana Giustina Zanato, que foi uma das conselheiras que denunciou os crimes contra as meninas indígenas de São Gabriel da Cachoeira, disse que transferência da competência do processo da esfera federal para a estadual é “dar pouco peso ao Estatuto da Criança e do Adolescente”.

“Querem desacreditar que o trabalho foi sério? Querem dizer que no Amazonas as meninas que foram abusadas não tinham ninguém que olhava por elas com a vontade de ajuda-las? Querem dizer que as meninas indígenas podem ser abusadas sem que ninguém lute por elas?” questionou a religiosa.

Na cidade de São Gabriel, a irmã Giustina Zanato coordenava o programa assistencial “Menina Feliz”, que atende crianças e adolescentes exploradas sexualmente. Também presidiu o Conselho Municipal da Criança e do Adolescente. Ameaçada de morte por alguns dos acusados, ela foi enviada pela Igreja Católica em de janeiro de 2013 para Moçambique, na África.

“Gostaria muito poder dizer a estes senhores (do STJ) que senti na minha carne as dores destas meninas. Cada palavra delas me dava uma facada no coração e me diziam: estou desse jeito por que eles (os acusados) fizeram assim. Isso me fazia chorar muito, principalmente, quando penso como estão sofrendo agora”, disse a missionária.

Conselheiros tutelares que denunciaram os casos em São Gabriel da Cachoeira se dizem “indignados” com a decisão do STJ.  Uma conselheira, que pediu para não ter seu nome publicado por receio de sofrer ameaças no município, se disse revoltada. Para ela “tudo volta a estaca zero”.

“Mas é justamente isso que não poderia acontecer. Estou revoltada com essa decisão. Quando finalmente conseguimos fazer com que um trabalho faça efeito, quando os culpados foram parar na prisão e poderiam ser condenados, vem uma decisão dessas? Como assim não teve danos às famílias das indígenas? Claro que teve. Foi um crime com toda a cultura indígena. São meninas que vieram do interior sem nenhum conhecimento, sem noção de nada, e esses homens se aproveitaram delas. Pegaram as meninas mais vulneráveis”, disse a conselheira.

Segundo a conselheira, dos acusados que se encontram soltos, a maioria já voltou a morar em São Gabriel da Cachoeira e “muitos deles voltaram a caçar as meninas nas ruas”.

“A prática continua. Quem está aqui está fazendo tudo de novo. Um deles fica circulando nas ruas mais pobres da cidade, atrás das meninas. E as famílias das meninas que denunciaram andam receosas, com medo de ameaças. Se o caso bater aqui, não vai dar em nada e é capaz até da justiça soltar os que estão presos, que são os mais perigosos”, disse ela.

Mulher acusada de aliciar meninas foi presa pela Polícia Federal (Foto: Alberto César Araújo)
Mulher acusada de aliciar meninas foi presa pela Polícia Federal (Foto: Alberto César Araújo)
Defesa vai pedir liberdade dos réus

A ação que fez o STJ determinar a competência da Justiça Estadual do Amazonas para julgar os crimes contra os dez réus da Operação Cunhantã da Polícia Federal em São Gabriel da Cachoeira foi impetrada pela defesa do comerciante M.C.P, que está preso em Manaus junto com os dois irmãos.

Mário Aufiero, um dos advogados do comerciante, disse que o argumento decisivo da ação de competência foi a de que o crime praticado contra as garotas não afetou a cultura indígena. “As vítimas são indígenas, mas não teve lesão à cultura indígena ou afetou à aldeia ou o meio onde eles vivem. Nesse sentido, o STJ aprovou por unanimidade o deslocamento da ação da esfera federa para estadual”, afirmou o advogado Mário Aufiero.

Em 2012, o Ministério Público Federal pediu a transferência da competência, ainda na fase das investigações, da Polícia Civil do Amazonas para Polícia Federal. O advogado Mário Aufiero disse que não tinha como comentar as dificuldades da investigação na esfera estadual.  “Se ela (juíza Tânia Granito) declinou da competência, inicialmente, ela agora tem que julgar como determinou o STJ”, disse o advogado.

Sobre a manutenção da prisão do comerciante M.C.P, o advogado Mário Aufiero afirmou que prefere se reservar. Segundo ele, STJ ainda vai julgar um embargo que trata do pedido de liberdade. Caso não tenha sucesso no embargo, um habeas corpus pode ser impetrado na Justiça Estadual, quando o processo chegar às mãos da juíza Tânia Granito.

A reportagem não conseguiu entrevistar o coordenador da Funai (Fundação Nacional do Índio) no Alto Rio Negro, Domingos Tukano.