A Ritalina de novo? Argumentos políticos e ‘pílulas científicas’ para divulgação.

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Imagem: Kids on Ritalin – Ben Frost  

Em 13 de Julho de 2012 surgiu na web a "Carta de esclarecimento à sociedade sobre o TDAH, seu diagnóstico e tratamento" cuja redação foi encabeçada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e a Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA). Nessa carta o argumento era simples: o TDAH é entidade nosológica científica e quem diz o contrário é místico, por ser anti-científico, e psicofóbico.

Apesar da existência do TDAH ser uma contenda científica, dentro da carta não havia nenhum desses detalhes. Tampouco era apresentado algum dado científico que explicasse tal entidade nosológica. Desde aquela época, constroem-se argumentos "Científicos", mas são expostos poucos dados que os sustentem.

De fato, quando se diz que "30 associações e grupos de pesquisa" reiteram que o TDAH existe e pode ser tratado, não estamos, nem de perto, no campo da ciência, mas em um campo de poder. Onde a Ciência e suas instituições, como pesquisadores, estão alguns degraus acima dos seres comuns.

A questão oculta dessa carta era somente uma, e foi debatido por mim em uma comunicação de tom jocoso, cujo título era: O que é ciência, afinal?
Na qual argumentava

"… me preocupa ser acusado de difundir opiniões equivocadas por pessoas que sustentam as suas acusações com o apoio da indústria farmacêutica produtora dos remédios para o TDAH. Em jargão contemporâneo, isso é um conflito de interesse evidente. Por fim, imaginar que a ciência é algo pronto e apenas contestável com textos científicos escritos com base em ensaios clínicos patrocinados pela indústria farmacêutica e imaginar que outras opiniões que contrariem esses escritos sejam nocivas, só me faz imaginar que, ao cabo, para os meus acusadores, nociva é a ciência, nociva é a democracia, cujos pilares foram sempre a discussão e a pluralidade de opiniões e pensamentos."

Passados dois anos, nos vemos novamente nesse debate.

Com a promulgação da portaria 986/2014 da Secretaria Municipal da Saúde, que resolve, em seu 1° Parágrafo:

Art. 1º Instituir o Protocolo de Uso de Metilfenidato conforme os anexos A e B desta Portaria, que estabelece o protocolo clínico e a diretriz terapêutica para o emprego deste fármaco no âmbito da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo

Nos encontramos, novamente nesse debate. São os mesmos atores, mas dessa vez, em um cenário um pouco maior.

É novamente a Associação Brasileira de Psiquiatria que encabeça, em 16 de Julho, uma "Carta aberta à população" com uma redação que nos leva a entender que para além da tentativa de "disseminar conteúdo anticientífico e demagógico" somos ainda, portadores de preconceitos.

É interessante notar, que até mesmo Associações que se dizem baseadas em conhecimento tão científico, travestem-se de movimentos sociais e partem para levantar bandeiras de lutas. A dos signatários da carta aberta é:

Lutamos pela assistência multidisciplinar às pessoas com transtornos neurológicos e psiquiátricos e sabemos que tal meta só será alcançada com atitudes e políticas públicas inclusivas, e não com protocolos disciplinares pseudocientíficos e demagógicos.

Ora, novamente o argumento da pseudociência. A acusação de anticientífico.

Aqui o leitor não necessita de outra discussão sobre a ciência contemporânea no cenário global, isso já fizemos dois anos atrás. Os argumentos continuam os mesmos. E nessa dança onde cada qual fica de um lado pensei em apresentar uma nova performance, quase como em um espelho: que tal usarmos dados "científicos"?

Lembrando que, para a neurociência e a moderna psiquiatria, só é Ciência o que pode ser indexado, quantificado e citado. A performance proposta é a seguinte, um recorte com algumas considerações e apontamentos do Boletim Brasileiro de Avaliação de Tecnologias em Saúde, da ANVISA publicado em Março de 2014 e elaborado por profissionais sem conflito de interesse e nem participação em movimentos sociais, como é o caso da minha pessoa, militante do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade.

A estética agora é o de um pastiche, pequenos recortes como pílulas que contem frases descontextualizadas, mas de impacto, e que precedidas de questionamentos poderão ser replicadas assim como se faz na ciência. 

Aqui nesse debate não cabe defender ou acusar a existência do TDAH, mas questionar e implicar, que nesse processo, estamos todos nós silenciando e promovendo uma pedagogia do sofrimento a todo uma diversidade de pessoas que se fiam e se associam por meio do que veio a se tornar o "Portador do TDAH". A Ciência é instrumento de poder e nesse caso, vem mostrar que longe do real sofrimento das pessoas, está a fazer uso das suas bioidentidades. É preciso saber o local ético de onde se enuncia, para não levantar falsas bandeiras como "A Sociedade contra o preconceito" quando não se quer, nem ao menos, discutir o projeto de sociedade, mas apenas fazer uso mercadológico dos atores que sofrem com o processo da medicalização.

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Pequenas pílulas de uma performance científica

(Excertos retirados do BRATS n°.23)

 

Onde estão os estudos científicos e de qualidade sobre o TDAH e o Metilfenidato?
 

Devido às limitações metodológicas dos estudos, a avaliação do efeito do metilfenidato para TDAH deve ser cautelosa. É necessário diagnosticar corretamente os pacientes e encontrar um equilíbrio entre benefícios e riscos antes de se iniciar a administração de metilfenidato em crianças e adolescentes, especialmente quando o tratamento é de longo prazo (BRATS, 2014:01)
 

Conforme avaliação do Centre for Reviews and Dissemination(CRD) sobre a metanálise de Hanwella et al.(2011), os  resultados  da  avaliação  da  qualidade  dos  estudos  incluídos  não  foram relatados,  tornando  a  confiabilidade questionável.  Portanto,  as  conclusões dos  autores  da  metanálise  exigem cautela devido às limitações da revisão, ao potencial viés de publicação e à informação insuficiente sobre a qualidade dos estudos incluídos. (BRATS, 2014:06)

Estudos de curta duração são particularmente problemáticos em condições crônicas  como  o  TDAH,  pois  as crianças recebem os medicamentos estimulantes por períodos de tempo mais longos do que o considerado nas pesquisas. Além disso, os resultados desta RS podem ter sido influenciados pela inclusão de vários estudos financiados por empresas farmacêuticas. (BRATS, 2014:06)
 

O que é o Metilfenidato?

A Ritalina®, Ritalina® LA e Concerta® não  fazem  parte  da  Lista  de  Medicamentos  e  Procedimentos  no  Sistema Único  de  Saúde,  e  não  constam  na Relação  Nacional  de  Medicamentos Essenciais  (RENAME,  2012). Segundo a lista de medicamentos genéricos registrados na Anvisa, ainda não foi aprovado medicamento genérico a base de metilfenidato. (BRATS, 2014:07)

Como o Metilfenidato funciona?

Seu  mecanismo de ação não é inteiramente conhecido, mas  se  acredita  que  o  fármaco  inibe transportadores de dopamina e norepinefrina, aumentando a disponibilidade desses  neurotransmissores  na  fenda sináptica  e  produzindo  efeito  excitatório  no  SNC14. (BRATS, 2014:03)

Não  foi  possível  demonstrar  que  o efeito de metilfenidato é mantido após quatro  semanas,  pois  poucos  estudos (14,5%)  incluíram  tratamentos  desta duração.  A  escassez  de  pesquisas  em longo prazo é problemática, já que, em contextos clínicos, as crianças recebem metilfenidato  por  muito  mais  tempo do que foi observado no conjunto de estudos selecionados. (BRATS, 2014:05)

Quanto  à  segurança,  os  participantes que  receberam  metilfenidato  apresentaram  uma  maior  percentagem  de eventos  adversos.  As  diferenças  foram significantes  nos  seguintes  eventos (relatados pelos pais ou autoavaliados): diminuição do apetite, insônia, tontura,  dor  de  estômago  e  dor  de  cabeça, sendo  reportados  eventos  graves  nos dois últimos desfechos. (BRATS, 2014:05)

O Metilfenidato é seguro?

As evidências sobre a eficácia e segurança do tratamento com o metilfenidato em  crianças  e  adolescentes,  em  geral, têm  baixa  qualidade  metodológica, curto  período  de  seguimento  e  pouca capacidade de generalização. Além disso, a heterogeneidade entre os estudos foi um dos problemas mais frequentes nas revisões sistemáticas selecionadas. (BRATS, 2014:09)

Finalmente,  assim  como  os  dados  de eficácia,  não  se  sabe  se  esse  perfil  de segurança de curto prazo persistirá em longo prazo. (BRATS, 2014:05)

Alternativas  terapêuticas,  como  intervenções  sociais,  psicológicas  e  comportamentais  para  terapia  do TDAH, que não foram avaliadas neste boletim, devem ser consideradas. Neste sentido, recomenda-se  o  uso  do  metilfenidato em  casos  estritamente  necessários  e avaliar  também,  a  concomitância  do seu uso com tratamento psicológico ou comportamental (BRATS, 2014:09)

Para que ele pode ser administrado segundo o registro na ANVISA?

Segundo  o  registro  concedido  pela Anvisa, as indicações legais para o uso de metilfenidato são restritas a crianças diagnosticadas  com  TDAH. Na Europa, o uso em adultos é permitido desde  que  seja  para  continuação  do tratamento  do  transtorno,  entretanto, restringe-se àqueles em que o medicamento foi eficaz na adolescência. (BRATS, 2014:03)

Nessa linha, alguns estudiosos afirmam que primeiro produziu-se o metilfenidato  (descoberto  no  início  da  década de  1940  e  patenteado  em  1954)  e, posteriormente,  tentou-se  configurar cientificamente  a  doença.  Destaca-se que  o  metilfenidato  chegou  ao  Brasil em 1998 e que em 2011 foram vendidas 1.212.850 caixas do medicamento elevando-o ao posto do psicoestimulante sintético mais consumido. (BRATS, 2014:03)

Mas não o TDAH não é subtratado?

Embora  pesquisas  da  indústria  farmacêutica afirmem que há escassez de pessoas diagnosticadas no Brasil, a revisão da  literatura  nacional  de  Itaborahy  e Ortiz (2013) relatou que apenas três artigos científicos, num universo de trinta e cinco, concordam com essa afirmação. A revisão relata ainda que, de 72 reportagens  brasileiras  veiculadas  na  mídia, 35  delas  afirmam  existir  o  excesso  de prescrições, pois tanto crianças que não possuem TDAH estariam sendo medicadas, quanto casos da doença estariam sendo  tratados  sem  necessidade,  diferentemente do preconizado na bula do medicamento.  Destaca-se  que  nessa revisão não foram encontrados estudos científicos brasileiros sobre a qualidade do diagnóstico, apenas reportagens. Apesar da polêmica citada, existe uma tendência  à  ampliação  do  diagnóstico desde a infância até a fase adulta, e consequente  aumento  da  medicalização desse transtorno. Essa hipótese é corroborada a partir dos dados registrados no SNGPC que mostram também que o aumento no consumo de metilfenidato no  País  tem  comportamento  variável, com destaque para redução nos meses de férias e aumento no segundo semestre dos anos estudados. (BRATS, 2014:04)