A humanização e o hibridismo cultural das histórias em quadrinhos

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A humanização e o hibridismo cultural das histórias em quadrinhos
Vera Dantas: adaptação de trecho tese: Dialogismo e Arte na gestão em saúde: a perspectiva popular nas Cirandas da Vida em Fortaleza- CE
Em minha caminhada dançante pelas rodas das Cirandas da Vida uma das experiências significativas no que diz respeito à humanização, refere-se à produção de uma História em Quadrinhos construída como possibilidade de formulação teórica, sistematização das discussões e potencialização da criação coletiva.
Trazida pelo cirandeiro Josenildo, autodidata nessa linguagem comunicativa, revela-se como espaço comunicativo e de aprendizagem coletiva como observa ele em um encontro da Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa:
No início, sempre tinha alguém me auxiliando. Mas com tempo precisei caminhar com minhas próprias pernas. Comecei, então, a facilitar as oficinas estando à frente do trabalho. Como éramos convidados para realizar vivências curtas e as rodas das Cirandas onde reuníamos as crianças eram, no geral, encontros rápidos, comecei a pensar então uma metodologia que pudesse ser utilizada nesses espaços e tempos. Desenvolvi uma forma de construção de quadrinhos através de recortes, onde os participantes montariam seus painéis. Os diálogos poderiam ser criados a partir de temas discutidos em grupos e escritos em balões de diálogo e colados nos painéis. Nas primeiras oficinas, as crianças desenhavam aquilo que representasse seus sonhos, seus medos, suas dores, seus sentimentos, seus desejos, sua raiva e tudo que representasse sua realidade. Eram desenhos soltos, criados em folhas de papel A4. Com o tempo, começamos a trabalhar vivências de HQs. As oficinas começaram a ganhar mais espaço e passamos de simples vivências para oficinas com uma carga horária maior, onde além da expressividade se juntava falas.
 
Ouvindo Josenildo é emocionante perceber como ele amplia seu olhar e compreende mais a mais a importância dessa linguagem, não só na discussão das situações-limite, mas como expressividade, fala e exercício do protagonismo infantil e de suas leituras de mundo.
 
As histórias produzidas sempre tinham a ver com a realidade de vida das crianças e jovens. Muitas até abrangiam situações-limite discutidas nas comunidades. O gibi produzido sobre a Granja Portugal traz um pouco da discussão realizada na comunidade e traz em seu conteúdo o sonho das crianças por um bairro melhor. A fala das crianças. O roteiro é das próprias crianças da comunidade…
Aqui nos remetemos a Canclini (1997) que traz á cena a importância das histórias em quadrinhos na cultura contemporânea produzindo novas técnicas narrativas, evidenciando a potencialidade visual da escrita e a dramaticidade que pode ser condensada em imagens estáticas.
 Ouçamos como eles chegam à temática da humanização:
Para a oficina de quadrinhos que abordou o tema da Humanização na saúde resolvemos convidar crianças e jovens que haviam se envolvido nas oficinas de noções de histórias em quadrinhos que fizemos nos anos anteriores com a idéia de possibilitar a essas pessoas sua expressão nas técnicas dos quadrinhos e na temática da humanização na saúde. Iniciamos com nove adolescentes e jovens das diversas regionais, além de Mayana e eu como trabalhadores do projeto.
Para o cirandeiro, a imagem parece guardar possibilidades expressivas que não trazem os limites do sentido aprisionado pelo conceito. Parecia–nos também que o trabalho com imagens produziria sínteses de temas geradores a serem explorados nas rodas.  Josenildo nos dizia ainda que a oficina foi construída com base no conhecimento prévio dos adolescentes e jovens, trabalhando em uma abordagem teórico-vivencial, partindo de idéias força e imagens geradoras de reflexão, articulando a discussão conceitual à produção de imagens e roteiros acerca do tema. O conteúdo programático incluiu a discussão acerca da educação popular com a linguagem do cordel, o SUS e a luta popular na conquista da saúde como direito. Os autores puderam se ancorar em vídeos, cartilhas e outros materiais da Política Nacional e Municipal de Humanização.
Do relato do cirandeiro, é possível apreender a perspectiva de elaboração coletiva do conhecimento, base referencial desta proposta metodológica:
Nas oficinas trabalhamos com leituras do cordel “Educação Freiriana” do poeta João Santiago, parte do texto teatral “Pacientes pacientes” do grupo Semearte, que discute o SUS, seus princípios e as dificuldades de acesso da população aos serviços como forma de problematizar, com os atores e atrizes envolvidos, referências acerca dos princípios da educação popular do SUS e da política nacional e municipal de humanização.
 
A produção técnica da história também foi permeada por essa perspectiva da formulação coletiva do conhecimento e suas possibilidades. Ouçamos a cirandeirra Mayana: Toda a construção e caracterização dos personagens e dos roteiros, assim como a própria metodologia da oficina foi coletiva e articulada a momentos de vivência nas unidades de saúde, onde a conversamos com pessoas da comunidade, trabalhadores e gestores para a construção do gibi.
O processo foi revelador das potencialidades dos atores na reflexão acerca do tema da humanização na saúde, além de promover a “autoralidade” de atores populares juvenis. Ouçamos Josenildo:
Após a leitura dos textos, foram trocados os papéis e cada um leu o que o outro escreveu para, então, desenhar a representação do que se discutiu. Este encontro serviu para esclarecer mais sobre a metodologia das Cirandas, que tem como ponto de partida a reconstituição da história da comunidade por idosos, adultos, jovens e crianças.
 
No enfrentamento das situações-limite se unem o saber popular e o acadêmico. Nesse momento discutimos as possibilidades de enfrentar a situação-limite de forma coletiva e percebemos que a arte é uma maneira de expressar as angústias, de conversar, de dialogar.
 

 
Em encontro ampliado da Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa, outros atores desvendam, as estratégias de trabalhar coletivamente as diferenças e contradições, sempre na perspectiva de fortalecer as potências dos sujeitos. Assim ouçamos Mayana, quede aprendiz se constituiu autora no processo.
Resolvemos fazer uma visita à uma unidade de saúde e o que vimos e ouvimos na unidade era muito diferente do que a teoria mostrava. O acolhimento naquela unidade ainda não funcionava e então ficamos pensando como íamos escrever sobre uma realidade que não vimos. Foi então que tivemos a idéia de escrever a história real e o sonho. Fugindo à regra das produções que, em geral, exibem uma assinatura individual, essa HQ teria a assinatura de diversos autores, jovens das comunidades da periferia de Fortaleza. Cada autor trazia em sua bagagem um traço diferente com estilos diferenciados de desenho como, por exemplo, o mangá, cartum, ou mesmo um estilo mais americanizado. Naquele momento já nos perguntávamos como iríamos fazer isso. Decidimos produzir inicialmente tirinhas de humor tipo aquelas de jornal. Depois resolvemos construir o roteiro da história principal e o grupo chegou ao consenso de dividir a história em dois momentos que representariam o real e o sonho em relação à humanização. A construção do roteiro com todos participando foi muito interessante. Uma pessoa pensava a idéia geradora, vamos dizer assim, um tema, ou uma situação, outro por sua vez pensava o desenvolvimento ou o conflito da história e outro ou outra pensava o final. Esse processo seguimos também para a produção das tirinhas, aliás começamos com elas.


 
E o sonho da humanização? Nessa produção compartilhada de conhecimento deixavam-se ver as dobras: a realidade e o sonho. Justapostos ou enfrentando-se? O riso e a releitura das imagens parece também provocar certo estranhamento que dá espaço a leituras novas e possibilidades de transformações:
Na construção dos desenhos, as tirinhas foram o momento da produção de cada um e possibilitou aos que ainda não tinham conseguido dar ritmo e qualidade à sua produção, no que se refere as técnicas, a possibilidade de mostrarem sua potência. Por outro lado, ficamos pensando sobre qual estilo de desenho melhor se adequaria e como fazer dialogar dois estilos diferentes em uma mesma história. Para nós, naquele momento, era como se a arte, ao trazer o cômico, pudesse nos ajudar a mudar aquela realidade que se transfigura a partir do riso que o desenho provoca.
 
Dessa forma, a produção coletiva de histórias em quadrinhos, refletindo a edificação da política de humanização em Fortaleza, configura uma linguagem comunicativa acessível a diversas faixas etárias que podem se entreolhar; revela a potencialidade dos atores juvenis comunitários como produtores de reflexões e tecnologias pedagógicas e comunicativas, possibilitando a discussão sobre o tema em diversos ambientes, como escolas, grupos, unidades de saúde, entre outros

 
Portanto, urge enxergar o horizonte das potencialidades humanas, sobretudo objetivando a superação das situações-limites identificadas pelos grupos e reconhecer as possibilidades e a criatividade que cada ser utiliza em seu percurso rumo à emancipação e à capacidade para a tomada de decisões.
Como disse Freire (1997, p. 99),
 
 (…) o sonho pela humanização, cuja concretização é sempre processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica etc., que nos estão condenando à desumanização. O sonho é assim uma exigência ou uma condição que se vem fazendo permanente na história que fazemos e que nos faz e re-faz.
 
O autor afirma, ainda, que a luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, somente é possível porque, mesmo considerando a desumanização, um fato concreto na história, ela não significa destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que alimenta subjetividades aviltadas e que geram a violência dos opressores e, assim, o ser menos