Impressões sobre a audiência pública sobre parto humanizado no Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul

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Campo Grande, 20 de agosto de 2014

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Composição da mesa: Dr. Paulo Ito (médico obstetra), Msc. Angela Rios (apoiadora temática Rede Cegonha), Msc. Raquel Marques (Associação Artemis), Dra. Jaceguara Dantas da Silva Passos (Promotora), Dr. Wilson Ayach (médico obstetra)

 

É trabalhoso entender que o que foi ensinado na faculdade mudou e que precisamos estudar denovo, nos atualizar e praticar a assistência centrada na pessoa que está sendo assistida, no princípio de não causar dano e na autonomia do sujeito.

É doloroso perceber que a rotina do trabalho nos tornou frios e violentos, praticando uma assistência ineficaz e que gera traumas tão profundos que nossa sociedade hoje simplesmente perdeu a capacidade de lidar com o fenômeno da gestação e nascimento natural.

É revoltante ouvir relatos de violência obstétrica, relatos de uma assistência indigna prestada por nós e nossos colegas, mesmo sabendo que muitas vezes nós fazemos o melhor que podemos, em uma rotina desgastante que lida diariamente com a subjetividade do ser humano e com a fragilidade da saúde pública.

É cansativo ter que ler as recomendações da OMS, evidências científicas, meta-análises, e etc, entre um e outro plantão exaustivo em hospitais que muitas vezes não dão ao trabalhador condições de desenvolver suas habilidades, em processos de trabalho que são frustrantes por vários motivos que os trabalhadores da saúde tão bem conhecem.

Mas é preciso… e é urgente… não podemos perder o "timing" deste momento da construção das políticas de saúde para mulheres e recém-nascidos em nosso país. Momento este que há um investimento financeiro e de recursos humanos para a mudança do modelo de assistência à saúde materno-infantil no Brasil, conquistado após anos e anos de discussões políticas para a construção de um sistema de saúde de qualidade (Martins, 2014). Momento em que as mulheres se unem pela luta dos seus direitos, encontrando representatividade em entidades como a Parto do Princípio e a Artemis, que trocam informações pelas redes sociais e sentem-se chamadas a estarem presentes nos espaços e mostrar o que querem, carregando seus filhos, com lágrimas nos olhos, com relatos chocantes e comoventes sobre como foram atendidas na fase mais marcante da vida de uma família. Momento em que o poder judiciário se abre para discutir qual seu papel nesta questão, e como podem pressionar aqueles que receberam recursos de investimento, e que se comprometeram a cuidar da saúde das pessoas a realmente ajustarem suas condutas, cumprirem as leis, investirem em melhora dos ambientes, capacitação de suas equipes e processos de co-gestão para que tenhamos efetivos avanços no combate à violência obstétrica.

Da audiência saíram vários encaminhamentos. Tenho certeza que as entidades, profissionais e usuários que estiveram presentes e participaram ativamente das discussões entenderam que precisamos trabalhar juntos para mudar o cenário. Menos “mimimi” e mais trabalho árduo, mais rodas de conversas, mais espaços coletivos para discussão de casos específicos, que servem para chamar atenção aos problemas e abrirem-se propostas de soluções. Não será fácil, não será rápido, mas já podemos ver nas falas dos profissionais que a mudança de paradigmas faz sentido, traz reconhecimento e torna o trabalho mais prazeroso.

Àqueles que estão dispostos a dialogar sobre os avanços que conseguimos obter até o momento e os desafios para o que vem adiante, me coloco à disposição. Enquanto apoiadora do Ministério da Saúde, mas principalmente enquanto profissional da saúde e ativista, contem comigo. As experiências em vários municípios do Mato Grosso do Sul mostram que através do diálogo podemos efetivamente traçar um planejamento consistente e mudar o cenário atual da assistência obstétrica em cada local. Com base nos princípios e diretrizes da Política Nacional de Humanização, podemos tornar a rede de assistência menos fragmentada e mais resolutiva, melhorar as práticas de assistência para que profissionais e usuários sintam-se atendidos em suas necessidades quando estiverem em um serviço de saúde. E assim chegaremos à meta final de todo esse trabalho: reduzir morbi-mortalidade materna e neonatal, melhorar as relações de vínculos familiares, melhorar as condições de trabalho e dar autonomia às mulheres sobre seus corpos e seus processos de saúde e doença.

Quando as pessoas reclamam dos termos "parto humanizado", "boas práticas", "más práticas", "violência obstétrica", na verdade elas estão se esquivando de uma discussão profunda a que esses termos se referem. Não há como fugir! Este assunto sempre irá incomodar, provocar desconforto, e eu não devemos perder um tempo precioso de diálogo sobre o modelo de assistência que temos no Brasil, medicalizante, machista, fragmentado e pouco resolutivo discutindo se podemos usar ou não esta ou aquela palavra. Podemos mudar os termos, mas não vamos nos prender a detalhes e fugir desta discussão profunda e dolorosa, não podemos mais, não conseguiremos mais fugir desta mudança. Felizmente!

Desde 2003 temos estabelecida no Brasil uma Política Nacional de Humanização, que se pauta em três princípios: inseparabilidade entre a atenção e a gestão dos processos de produção de saúde, transversalidade e autonomia protagonismo dos sujeitos. Construída “de baixo pra cima” através de muito debate nos Conselhos de Saúde, entidade tripartite que dá base às políticas públicas de saúde neste país, e é nos termos desta política, transversal à todas as outras ações de saúde, que baseamos nossos argumentos e nossos métodos de trabalho.

Humanização não se resolve somente com medidas educativas, elas são importantes sim, fundamentais inclusive, mas a humanização também necessita de espaços adequados para o cuidado, relações profissionais éticas e inclusivas, contratos de trabalho justos e que qualifiquem o profissional. Ainda temos um longo caminho pela frente, mas foi excelente participar desse marco histórico e ver que temos grandes possibilidades de mudança, através do movimento social, poder judiciário, trabalhadores, gestores e usuários. Estamos juntos, e ainda há muito mais por vir. Pelo SUS que dá certo!

Angela Rios
Apoiadora temática da Rede Cegonha para o Mato Grosso do Sul

Referências:
BRASIL. Ministério da Saúde. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2ª. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2006.
BRASIL. Ministério da Saúde. Gestão participativa e cogestão. Brasília: Ministério da Saúde, 2010a.
BRASIL. Ministério da Saúde. Humanizasus: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2008.
MARTINS, Cátia Paranhos et al. Humanização do parto e nascimento: pela gestação de formas de vida das quais possamos ser protagonistas. Cadernos Humanizasus, Brasília, Df, v. 4, p.10-18, 2014