Formação de vínculo e criminalidade.

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Foto da obra de Jan Fabre

Mães dilaceradas

Há uma surda exclamação nas expressões silenciosas das mães que perdem seus filhos em conflitos urbanos. Essa conflitualidade reúne teias de vínculo e pertencimento tecidas na margem superpovoada que separa a criminalidade e a comunidade. A criminalidade é um sintoma das sociedades sufocadas pela redução dos bens coletivos ao valor monetário e ao consumismo. É uma paisagem cultural onde todos os meios para se inserir no restrito mercado de bens simbólicos são tratados como válidos. O custo da criminalidade é o maior deles. Mas nem por isso, diante das vulnerabilidades e negligências, ele deixa de ser um caminho fatídico para muitos jovens.

Uma sociabilidade e um pertencimento às avessas, testemunham a necessidade, preeminentemente humana, de amar e ser amado, de estar inserido em uma rede de afetos. Lembro de um mítico velho dos cobertores que explorava menores de rua, no centro da cidade, na década de 90. Nos momentos em que os meninos que viviam nas ruas estavam com os trabalhadores da Assistência Social, dormindo em abrigos, falavam dessa lenda urbana.

Era evidente que havia afeto em meio a depravação que ligava os que não tinham mais mães, ao arremedo de figura paterna, o abusador, o velho dos cobertores. O fato é que todos desejam um leito onde descansar o corpo e aproximar-se dos parceiros de existência. De algum modo, aquela forma abusiva de vínculo era mais potente que a nossa piedade desinteressada de pessoas que se aconchegavam em camas limpas, junto aos seus amores, longe das ruas e das instituições de abrigo. Trabalhávamos com uma forma remunerada de construção de vínculo. Um cuidado institucional que só adquiria eficácia se pudesse superar a dimensão burocrático/institucional do afeto e do vínculo.

Pois é exatamente esse tipo de vínculo, livremente escolhido, vivenciado como um elo de aço, que nos une apaixonadamente a nossos filhos e mulheres amadas, que parece estar sendo emulado, de forma invertida, nas tragédias da violência cotidiana.

Assassinatos em praças públicas, à luz do dia, na presença de crianças, perpetrados por adolescentes, filhos de mães que já desesperaram, são mais complexos do que a imprensa pode fazer com que acreditemos. Não se trata apenas de acertos de conta entre facções em guerra.

Quando adolescentes são levados a matar em bandos há mais do que retribuição violenta entre grupos de fora-da-lei. Essas guerras de quadrilha são, mais precisamente, eventos de formação de vínculo e pertencimento. As identidades criminosas não estão dadas a priori. O DNA não é uma forma para moldar o metal fundido do afeto. É mais como o tipo de metal que temos para os moldes que encontramos ao longo da vida. É preciso coser os ingredientes, tramar os fios do tecido identitário que vestirá um pastor, um trabalhador, um pai de família, filho, uma mulher de bandido, um sequestrador ou um traficante.

Há situações que surgem, como narrativas espetaculares, descoladas de seus contextos. A mídia conta fragmentos da trama como se fossem o cerne que revela o quadro completo. Uma ordem é dada. Uma pessoa deve ser assassinada por uma razão, geralmente absurda, e todos que participarem da execução cumprem com uma obrigação para com o grupo. Recebem reconhecimento pela lealdade e engajamento. Não são meras ações de uma guerra. Mesmo que toda a guerra seja mais do que uma guerra. Esse cenário específico, onde ritos de passagem são torturas (em que reparte-se o homicídio entre muita mãos e gestos) é uma forma de definir sentido existencial e pertencimento.

Os conflitos não tratados, essas reiteradas necessidades de retribuição, possuem um potencial de falar univocamente, a uma só voz, com aqueles que estão presumidamente fora do campo de batalha. Tragicamente os soldados em guerra são adolescentes em um mundo de adultos ausentes. Armados até os dentes, ninguém pode reconhecer que eles se angustiam na espera de que sejam reconciliados pela vos firme e segura de um adulto que lhes diga: – Parem de brigar.

Dramaticamente, postos de saúde e escolas param de funcionar, depois de uma série de assassinatos. Um fenômeno que em um bairro de classe média, demandariam uma parada pela necessidade de luto coletivo, na periferia desencadeia um “toque de recolher”. Em vez de luto e reflexão, as próximas mortes são esperadas com surda expectativa.

Não é que uma ordem paralela tenha se estabelecido. É tudo a mesma ordem. Agentes do Estado e as comunidades, paralisam-se como se esperassem que o que acreditam que não tem remédio, pudesse ser remediado pela morte.