“Toda mulher é negra” – Diário de bordo de uma viagem-intervenção – Maputo

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Diário de bordo de uma viagem-intervenção
Regina Benevides e Eduardo Passos

No método da cartografia, a inseparabilidade entre pesquisa e intervenção desestabiliza pressupostos tradicionais do conhecimento científico e o ideal de inteligibilidade que se hegemonizou como positivo, rigoroso, neutro, objetivo.  Entender que toda pesquisa é intervenção, compromete aquele que conhece e quem (ou o que) é conhecido em um mesmo plano implicacional. O trabalho da pesquisa deve ser sempre acompanhado pelo registro não só daquilo que é pesquisado quanto do processo mesmo do pesquisar. E para quê registrar o processo? O que fazer com este registro? A quem endereçá-lo? O registro do processo da pesquisa interessa porque inclui tanto os pesquisadores quanto os pesquisados. Neste sentido, tal registro se complementa no ato de sua restituição. O texto a ser restituído aos diferentes intervenientes permite a ampliação e publicização da análise das implicações que se cruzam no trabalho da pesquisa. Acompanhamos, neste processo, a co-emergência do objeto e do sujeito da pesquisa que se apresentam em sua provisoriedade. Como diz Lourau (1988, p. 249) “é a instituição cultural que determina por si (por ela) e não em si a existência do sujeito, assim como a do objeto”. O pesquisador está, portanto, incluído no processo da pesquisa e se restitui, ele também, na operação de análise das implicações. O registro do trabalho de investigação ganha, dessa forma, função de dispositivo, não propriamente para concluir o trabalho ou apresentar seus resultados finais, mas como disparador de desdobramentos da pesquisa. A pesquisa-intervenção requer, por isso mesmo, uma política da narratividade. Aqui o modo de dizer e o modo de registrar a experiência se expressam em um tipo de textualidade que comumente é designado como diário de campo ou diário de pesquisa.
R. Lourau (1988) dedicou-se, no livro Le Journal de Recherche: matériaux d’une théorie de l’implication, à discussão do texto diarista, indicando uma estratégia metodológica para a pesquisa-intervenção. O autor encontra a pista metodológica num certo exercício de escrita íntima. O texto diarístico, muito antigo como relato pessoal em primeira pessoa, aparece no início do século XIX como recurso para o trabalho de cientistas que se lançam ao campo deixando a segurança dos laboratórios de pesquisa.
A técnica da restituição e do registro da pesquisa num texto diarístico se apresentam como um problema científico na etnologia de campo no momento especial da relação entre Europa e suas colônias já na fase da descolonização.
“Para que se realizasse uma verdadeira revolução epistemológica – introduzindo na pesquisa de campo a restituição do resultado à população estudada –, foi preciso um outro acontecimento político. Digo ‘outro’, porque a epistemologia é, antes de tudo, política. Esse acontecimento político foi o processo de descolonização, ocorrido no mundo inteiro, modificando na produção do saber antropológico, as sempre presentes e negligenciadas relações de poder entre ciência e colonialismo. A descolonização produziu um efeito analisador enorme” (Lourau, 1993, p.54). conhecido em um mesmo plano de articulaemonizou como positivo, rigoroso, neutro, objetivo.
O diário de campo se apresenta como um desvio metodológico, quando uma alteração da política de pesquisa se impõe a partir das viagens de investigação para outros continentes. A África é, então, terreno, a um só tempo, de práticas políticas de colonização e de uma experimentação epistemológica diferente daquela da ciência instituída. Correlata à descolonização, uma outra política cognitiva se dá (Kastrup, Tedesco e Passos, 2008). Essa política, em termos dos dispositivos que fazem funcionar uma prática de pesquisa, tomou o diário como nova narratividade.
No diário de campo da etnologia é, entretanto, de um estranho íntimo que Lourau nos fala: íntimo porque ato de criação ocultado na escritura oficial e estranho porque de uma intimidade não propriamente pessoal. Interessa a Lourau a intimidade que “nos inquieta quando ela surge em uma obra que jamais lhe conferiu uma existência científica” (1988, p.13). Tal intimidade é a do hors-texte (HT), o fora-texto que o analista traz à cena quando faz o movimento de se jeter dans l’eau. Lourau se lançou durante cinco anos na pesquisa dos diários para forçar a relação entre texte (T) e hors-texte (HT), relação sempre variável num jogo de presença e ausência, de contigüidade e de não-contigüidade, criando um plano de escritura que ele designa como “um tipo de hipertexto invisível a ser construído pelo leitor-pesquisador” (1988, p.13). Lourau está interessado, por exemplo, na relação entre o texto científico de Malinowsky e seu diário de campo, seu diário de pesquisa. Diz ele:

“Este panorama muito rápido de alguns gêneros de diarismo dá, eu espero, uma idéia da combinatória dos HT por relação aos T. Isto esclarece, nos fenômenos dos diários de campo, de entrevista, de pesquisa, utilizados em ciências sociais, o necessário ultrapassamento intimista enquanto lapso permanente, escoamento não premeditado do que não pode ser dito, revelador da dor cotidiana do pesquisador: les actes manqués de la recherche” (Lourau, 1988, p. 24)
Esta é uma idéia que Lourau (1994; 1997) persegue, à escuta dos lapsos, dos atos falhos que deixam escapar ou fugir as linhas do inconsciente institucional. O que o texto oficial da antropologia deve recalcar para se instituir como forma científica? O que foi mantido fora do texto, mas que é parte integrante do seu processo de produção? Segundo Lourau, os textos diarísticos “… revelam as implicações do pesquisador e realizam restituições insuportáveis à instituição científica. Falam sobre a vivência do campo cotidiana e mostram como, realmente, se faz a pesquisa. E é isso que não se deve dizer ou mostrar” (Lourau, 1993, p. 72). O texto diarista enuncia sua própria produção, liberando-se da pretensão do conhecimento definitivo sobre o objeto. Segundo o autor, é um devir feminino do texto que é preciso liberar, quando no texto se inclui o seu fora: o fora-texto. Por que a imagem do feminino? Por que pensar a aventura do pesquisador sendo levada, no limite, a uma experimentação com a linguagem que o confronta com o ideal civilizatório por definição sempre masculino? Qual é o sentido desta politização da prática de pesquisa, confrontada agora com o padrão hegemônico que elege o Homem como sua imagem identificatória ideal? Lembremos da análise aguda que Sarah Kofman (1978) faz da obra de A. Comte, designando a aberração do devir mulher do pai do positivismo.
A restituição de um processo de pesquisa-intervenção através do diário cria um plano onde pesquisadores e pesquisados se dissolvem como entidades definitivas e preconstituídas.

Queremos, através do texto a seguir, fazer uma restituição do que foi uma pesquisa-intervenção em Moçambique onde um de nós esteve como consultor convidado para intervir no processo de formação de profissionais de saúde envolvidos com a prevenção do HIV. Moçambique é um país que tem atualmente uma população de 20 milhões de habitantes e uma prevalência média de 16% de HIV soropositivos. As mulheres moçambicanas jovens são as mais atingidas pela infecção, sendo um desafio enfrentar as questões culturais e políticas que segmentarizam a sociedade moçambicana fazendo da mulher jovem a mais vulnerável.
Ir à África é fazer uma viagem muito distante. Mas de que distância se trata? Não só de uma distância geográfica, mas também dessa que encontramos em nós mesmos como um “distante interior” (Michaux, 1963). Acessar esta distância, aproximar-se da experiência africana é poder traçar um plano comum que nos une. A correspondência por correio eletrônico que ligou dois pesquisadores – um na África e outro no Brasil – nesta viagem-intervenção criou um diário entre-dois no qual pôde reverberar uma realidade coletiva.

Maputo, 24 de novembro, 15:38h
Querido Edu
Por uma Lisboa cinzenta e vista entre o aeroporto e um pequeno hotel para descansar das nove horas e meia do trecho Rio-Lisboa, chego a Maputo após mais dez horas de viagem. O contraste é imediato: calor úmido, aeroporto apertado, uma longa e lenta fila para os estrangeiros não residentes e um ar de desconfiança para quem chega.
Passo pelo guichê da alfândega e sou olhada com interrogação. Pego a mala e sou chamada para ser revistada. Eles revistam tudo e a todos que chegam. Digo que vim fazer um trabalho com o setor de DTS/AIDS. A oficial da alfândega chama outro guarda, explica o que lhe digo e ele me libera.
Um verdadeiro enxame de pessoas aborda cada um que sai da sala de desembarque. Querem segurar as malas, o carrinho, você, sua bolsa. Digo que alguém virá me buscar, mas eles não saem de perto e perguntam insistentemente se alguém virá mesmo…
O calor é insuportável. Todos falam alto e estou meio zonza. A abordagem que os residentes fazem aos estrangeiros não residentes é invasiva. Luiz não chega. Vou trocar dinheiro para telefonar.
Logo depois nos encontramos. Ele está animado e conta como tem avançado no programa de SIDA (como eles aqui nomeiam) em Moçambique. País atingido por onze anos de guerra pela independência da colonização portuguesa e dezesseis anos de guerra civil (Frelimo x Renamo), Moçambique recentemente (o acordo de paz foi assinado em 1992) começa a ter outra face. Mas que face é esta?
No caminho para o hotel vejo inúmeras pessoas na rua, sentadas nas calçadas, favelas horizontais à margem da avenida que liga aeroporto-cidade. As roupas são coloridíssimas, as mulheres com biotipo mais para o gordinho, os homens mais magros, as crianças também magras enroladas ao corpo de suas mães.
Do hotel parto para onde um curso está acontecendo. A turma é formada em quase sua totalidade por mulheres. Todas com roupas coloridas, cabelos os mais variados. O ar é abafado, o cheiro de suor é forte. Que face é esta?
Alguém conta que sua sobrinha foi fazer o teste de HIV e deu positivo. Ela, a conselheira (como aqui chamam as pessoas que trabalham nos Gabinetes de Aconselhamento e Testagem Voluntária – GATVS) não sabia o que fazer. Como dizer aos seus parentes sobre sua sobrinha se esta não tinha coragem de fazê-lo e ela não poderia quebrar a confidencialidade? O tema da confidencialidade toma a sala. Todos se incomodam. Que face é esta?
Estou exausta. Que face é esta? Que face é esta?
Bjs
Regina

Rio, 25 de novembro, 19:54h
Regina
Já sabíamos que a viagem seria mais do que quente, ou melhor, de uma temperatura complexa, paradoxal: quente e fria ao mesmo tempo. O aquecimento dos eventos sociais leva a um estado de tensão que esfria as relações pela desconfiança, pelo medo, pela vontade de evitar qualquer outro movimento. E o vírus da Sida é emblemático deste perigo e desta vontade de nada mover, de nada fazer, de nada contatar. O sexo, a transação, a conectividade são contagiadas pelo medo da morte. Amiga, take care!!!
Um beijo
Edu

Maputo, 25 de novembro, 15:03h
Pois …, como se diz por aqui. Frio e quente em estranhas conexões. Tens r(zzz)azão, caro amigo (olha o sotaque). Sida é doença de contágio e contágio é o que mais nos falta neste estranho mundo de distâncias impressas pelo capitalismo completamente avassalador.
Que face é esta? Que corpos são estes envoltos em capulanas? Mulheres oprimidas por uma cultura em que devem servir aos maridos? Crianças que aos doze anos têm relações sexuais para não morrerem de fome? Culturas que alimentam crenças de que devem manter relações com virgens para se verem livres de doenças sexualmente transmissíveis (!)? Homens polígamos que sustentam suas cinco ou seis famílias e que ao descobrirem que uma de suas mulheres é soropositiva a expulsa de casa e a deixa morrer à míngua?
Há saída para um continente em que a previsão é de que a expectativa de vida, ao contrário da tendência mundial, cai a cada ano e que em 2020 será, no caso de Moçambique, de trinta e cinco anos???
Onde está o com(um)? Que face é esta?
Vejo esculturas belíssimas, impressionantemente expressivas. São rostos estarrecidos, olhos horrorizados, corpos magrelizados. Mas há as cores incrivelmente fortes. Tudo por aqui é colorido. As mulheres usam turbantes, vestidos estampados, panos enrolados (capulanas). Os homens são menos coloridos, ainda que suas camisas também, grande parte das vezes, o sejam.
Hoje foi o primeiro dia do “curso para supervisores”. Eram treze participantes com alguma experiência na rede de saúde e em aconselhamento em SIDA. Espera-se que eles trabalhem apoiando, dando suporte aos “conselheiros”. Fazemos um bom contato. Eu estava, no início, apreensiva. Acho que eles também. Há toda uma desconfiança com os estrangeiros. Afinal, seríamos novos colonizadores? Talvez esta ainda seja um pergunta que deva ser feita.
Usamos modos de trabalhar incluindo. Método cartográfico, sem dúvida. Abrir o mapa. Mostrar o Brasil, mostrar a África, mostrar Moçambique. Afinal, estamos na mesma metade do planeta. Mostrar este mapa como estratégia para traçar um outro, menos geográfico, menos cheio de fronteiras rígidas, mais intenso em suas linhas de fuga, em suas linhas nômades. Onde estarão os nomadismos destas savanas africanas? Falar de supervisão? Mais um taylorismo? Como escapar das verticalidades? Como ampliar o mapa, esticá-lo para que ele vire outra coisa?
Ao final do dia, dança africana. Lulu, o professor de dança, ensaia e ensina uns passos. Eu danço com os supervisores, com os conselheiros. Faz um calor danado. O suor escorre. Agora, entretanto, há alegria. Todos rimos. Digo que quero aprender com eles. O ritmo mostra nossas raízes. Viemos todos de cá? Corpos em movimento. Corpos “encalorados” e famintos. Estranhamente eu não sinto fome.
O que podem estes corpos?
Bj
Regina

Rio, 26 de novembro, 20:25h
Regina mulata
A viagem transatlântica inverte o movimento que um dia fizeram as caravelas. De cá para lá reinventamos o sincretismo, hibridizamos às avessas. E se estamos dispostos ao contágio, se problematizamos exatamente o contágio, é porque não vamos como colonizadores. De fato, não haveria de ser diferente, já que neste ponto a África e a América do Sul estão lado a lado no hemisfério menor. Entre nós nos ligam as aventuras trans-Atlânticas. A superfície do mar é o plano para a decolagem. Trata-se de uma viagem, e toda viagem traz germens do devir. Regina mulata. Como fazer o mapa do mar? Como cartografar esta geografia aquática da viagem? Como lidar com estas distâncias que parecem ser tantas? O capitalismo em sua máxima crueldade fez da distância uma experiência genocida: africanização se torna um nome da perversão. Mas como lidar diferentemente com a distância? Como trabalhar com o que nos distingue sem necessariamente nos separar? É no entre-dois, entre a África e o Brasil, que algo se passa – tal como numa passarela do samba, numa passarela sobre a avenida Brasil. E Isso que se passa tem ritmo e cores vibrantes. Na verdade, há que se sentir a pulsação vibrátil deste meio. E tenho certeza que é como você, atenta, se posiciona nesta experiência de u-topia ultramarina. O que vibra nestas crianças que comem sexo, que não viverão mais do que trinta e cinco anos, que sofrem por ser mulher, por ser preta, por ser pobre, ser africana, ser? Como fazer do contágio algo diferente da morte? Dançando, talvez, você me diz. Entre Regina e estes africanos algo se passa: Regina mulata!!!
Um beijo
Edu

Maputo, 26 de novembro, 14:52h
Alma mulata. Entre o negro e o branco. Difícil equilibrismo numa linha da cor de muitas cores. As ruas são pouco iluminadas. Nelas “todos são pardos”. Dizem-me que não devo sair depois que escurece andando a pé. Os turistas são muito visados, explicam-me. Insisto, mas abro os olhos e aperto os passos. Olho fugazmente os edifícios. São velhos, mal conservados e alguns abandonados. Dizem que foi a guerra. Mas de qual guerra estão a falar? Não há muitas guerras sendo ainda travadas? Haverá paz? Lembro-me de uma carta-poema que li por ocasião da guerra no Iraque onde se afirmava ser impossível estar em paz quando em alguma parte da terra houvesse genocídio. Sinto-me assim. Não estou em paz. Talvez por isso não sinta fome. Tenho tido náuseas do cheiro forte dos corpos suados, de ver como as pessoas na hora do lanche avançam para pegar alguns sanduíches e guardam em pequenos pedaços de papel.
Como esticar o mapa se claramente querem que parte dele suma em algumas décadas? Quais as chances?
Na avaliação do dia de trabalho, o relato dos participantes destacava que havíamos chegado quinze minutos atrasados, os celulares não tinham sido desligados e a sala estava desarrumada. Fico contente por um lado, por outro extremamente preocupada. O que eles não tinham gostado dizia respeito ao não cumprimento das normas e tudo por muito pouco (os celulares haviam tocado duas ou três vezes e mesmo assim muito baixo e o atraso tinha sido mínimo). Chama a atenção tanta rigidez. Na discussão aparecem outros aspectos relativos às normas. Normas despregadas do poder de normatizar. Normas/regras que se absolutizam como forma de controle. Propomos um trabalho onde eles devem ser construtores de seu conhecimento. O tema é a relação DST/SIDA. Abordamos a relação cultura-habilidades clínicas. Aproximarmo-nos das diferenças culturais (Changana, Shona, Matsuá, Maronga), da necessidade de acolhê-las para diferir. Retomo o que na véspera falara sobre o duplo sentido da clínica (clínica como acolhimento, Klinikós e clínica como desvio, Clinamen). Abre-se uma longa e forte polêmica sobre o termo “apoio clinico” como tarefa do supervisor ao conselheiro. Com toda a crueza aparecem os corporativismos, as lutas de mercado, o poder médico. Insisto tensionando e fazendo funcionar a clínica. É no limite que algo se desterritorializa para novas invenções. É no entre branco e negro que encontramos o devir negro do negro, negro da mulata. Agüento o debate mostrando que é ali, no conflito que nos alojamos para o exercício da mudança. Como desdobramento do tema da clínica outra polêmica se abre: os conselheiros pagos por ONGs ganham mais do que os enfermeiros que trabalham no mesmo lugar e que são pagos pelo governo. O tema da clínica se cruza com o do dinheiro (o analisador D). Do outro lado do Atlântico, beirando o Índico, o mapa se homogeneíza pela ação do equivalente universal. Aparece a relação das políticas das ONGs com o governo moçambicano. Políticas de Estado? Políticas de governo? Onde estão as políticas públicas? As ONGs colocam dinheiro através de projetos no governo que não tem como sustentar o avanço de suas políticas sozinho. Pergunta-se: quem define as políticas? Quem define é quem paga? Vejo-me enfática defendendo o público, o povo moçambicano, o povo brasileiro. Defendo para não desistir. Ou seria porque não desisto é que defendo? Paradoxos mulatos.
Hoje teve som na dança promovida por Lulu.  Já na hora do almoço os alunos da outra turma perguntavam-me se eu novamente iria dançar com eles. Brinco dizendo que estava treinando desde cedo e que certamente estaríamos juntos no final da tarde. Mesmo gripada e cansada, fui dançar com eles.
Beijos
Regina

Maputo, 26 de novembro, 19:45h
Mulata Regina
Estar aí defendendo um público como se estivesse aqui. A defesa é a forma da resistência quando estamos ao sul do Equador. E nisso somos irmãos dos africanos, quase pretos porque pobres. O cheiro forte do suor é um dos signos territoriais que aí parecem ser tantos: cores, cheiros, temperaturas, ritmos. Todo povo quer marcar sua terra, fazer o seu natal, garantir a expressão malgrado toda a força devastadora dos que pensam ser todo branco. Os brancos são todos iguais porque são todos brancos e todo branco. Como é difícil vivermos na parcialidade quando somos menores! Como é difícil não totalizar quando experimentamos o mundo abaixo desta linha imaginária que separa os desiguais! Imagino que deva ser dramática a luta (inglória) deste povo menor – porque pretos e pobres. Mas lutar por quê? Luta pelo totalitarismo!?! Mas, não!!! Este é o grande engodo: sofrer porque somos parciais e menores e tentar compensar isto numa luta inglória pela totalidade majoritária. Mas como explicar isto para quem tanto sofre? Como pedir para que estes menores que nunca chegarão aos 35 anos se conciliem com a condição menor. É isto: distinguir minoridade de minoritário, afirmar a força da expressão territorial que vence os obstáculos da fome, do calor, da miséria se impondo volátil como um cheiro, impalpável como um ritmo, intocável como uma cor.
Um beijo
Edu

Maputo, 27 de novembro, 18:20h
Como viver na parcialidade sendo nela inteiro? Espinoza me acode. Há deus em cada modo, deus está todo lá. Este modo mulato é mistura pura. Como a mistura pode ser pura? Não é bem assim… não é mistura pura, mas pura mistura. Este talvez seja o meio possível para a expressão da minoridade. Mas aqui, eles querem (por força da ciência branca e pura) separar de um lado os praticantes da “medicina tradicional” (os curandeiros) e de outro os da “medicina oficial” (!). Não percebem que é na mistura que há a potência. Não se pode mesmo separar, mas distinguir. Há práticas estimuladas pelos curandeiros que levam à morte, que não criam proteção com relação à transmissão do HIV. Além disso, sabe-se que eles miseravelmente exploram tirando dinheiro dos doentes ao prometer curá-los dos maus espíritos. Mas, entre os da medicina oficial também há exploração ao transformarem a saúde em valor de troca e ao reafirmarem a onipotência médica. Ambos se igualam na maioridade de seus discursos de verdade e poder. Como inventar práticas pelo meio? Como criar dispositivos de ampliação das redes e de lateralização dos territórios? Hoje queria falar dos dois dispositivos clínicos: analítico e articulacional. Como dizer? Lembrei-me da massa de pão e comecei perguntando quem ali fazia ou sabia fazer pão. Surpresa no ar… (que história é essa de pão?!). Começamos a falar dos ingredientes, da importância de sovar a massa, de deixar crescer o fermento, de esticar e voltar a amassar e depois de colocar no forno para então comer. Ingredientes e processos. Assim era a ação da clínica: em cada situação perguntávamos sobre quais ingredientes e vetores que a compõem; depois amassávamos, esticávamos, conversávamos, entrávamos em contato, víamos e inventávamos outras possibilidades, deixávamos descansar a massa … e forno. Pão: forma cheia de força para nos alimentar. Nada estava pronto, haveríamos que criar com o outro, no encontro. Era aí no ponto das misturas que encontraríamos a força para resistir, lutar, fazer a vida vingar. Mulatices.
Hoje não quis dançar. Sinto saudades. Sinto-me só. Há solidão da qual não devo e nem posso escapar.
Obrigada amigo
Beijo
Regina

Rio de Janeiro, 28 de novembro, 21:55h
Querida amiga
A solidão é um estado pessoal, uma condição psicossocial ou uma velocidade do espírito? Se na passagem daqui para aí você já não é quem era, se a negritude é a forma desta multidão de quem você sente o cheiro e as cores vivas das roupas, logo é de uma velocidade afetiva que você está falando. O afeto é um signo vetorial como nos ensina Deleuze. Ele é a resultante do encontro entre corpos ou idéias, apontando para um aumento ou diminuição da velocidade absoluta do devir ou do viver. O afeto triste vetoriza para baixo e indica maus encontros, o alegre exalta nas alturas, é êxtase ou transvasamento, tal como o despregar-se de si que vimos na Vitória de Samotrácia. Por que os encontros aí te entristecem? Porque a África hoje parece realizar o racismo genocida de maneira autóctone. Já não é preciso invasores, colonizadores, navios negreiros e estrangeiros brancos contrabandistas de carne humana negra. É de dentro da própria experiência negra que o racismo se faz, como se estivesse inoculado através desta forma letal de contágio. Eis então uma cena horrível para nossos olhos, horrível porque traidora de nossas expectativas e valores: a imanência como figura da devastação e o contágio como forma da morte. Mas nós sempre apostamos na imanência e no contágio, embora já soubéssemos – talvez de forma ainda não trágica, diferente de como você hoje experimenta – que o CMI invadiu a vida tornando-se figura letal na imanência. É o CMI em toda sua virulência, fazendo da carne negra a mais barata do mercado. E isso é muito triste. Impossível não ficar triste. Creio que você está tendo um encontro trágico com o real capitalismo sem transfiguração, sem os conchavos que a América Latina foi obrigada a fazer para não padecer do mal de estar ao sul do mundo. O sul aí aparece em toda a sua crueza. E como não ficar afetado por isso? Impossível. Mas sabemos também que além do que é possível ou impossível, há isso que insiste em todos nós brancos e pretos e pardos e amarelos e vermelhos e … como pura virtualidade. E você já apreendeu a vibratilidade negra nestas cores e ritmos. Não é bom parar de dançar! É pela força disto que insiste malgrado a miséria, malgrado a devastação provocada pela guerra, pela fome, pela SIDA, é pela força do que escapa das figuras da morte que podemos experimentar afetos-efeitos, signos vetoriais ascendentes que indicam o céu azul acima da África. Este céu tal como este mar nos une neste ser coletivo no qual não estamos sós.
Um beijo
Edu

Maputo, 29 de novembro, 18:42h
Leio seu e-mail e choro. Sinto como é fundamental, porque é o que nos funda, termos criado este modo entre nós de deixar os afetos irem ganhando formas, palavras e gestos. Esse jeito que encontramos para viver nossa amizade é estética de existência potente e nos firma em meio aos fortes balanços do mar, do ar.
Hoje o curso terminou. Pura formalidade, é claro, pois o percurso começado só tem bifurcações a serem seguidas. No per(curso) fui criando escuta, criando fala misturada. Durante a semana fui coletando o que havíamos juntos dito, pensado, conceituado. Hoje mostrei, apresentei, o que e o como do (per)curso. A cada passo no caminho que ganhava ali visibilidade perguntava-lhes se queriam mudar algo, acrescentar, retirar. O dispositivo era para fazer falar e ver o processo de produção do qual grande parte das vezes eles se sentem separados. As “capacitações” vêm prontas, eles têm que engolir, absorver conteúdos, mudar comportamentos. Tentei um outro jeito, fui fazendo misturas, convidando-os à autoria. Ontem foi um dia intenso – arriscamo-nos ao trabalho da “escuta ativa” como dizem por aqui e lidamos com as situações que eles vivem como as mais difíceis nos acompanhamentos que fazem nos Gabinetes de Testagem Voluntária. Considerar o colonialismo, a opressão de gênero, de condição socioeconômica mostrou os pactos de morte que são feitos. Como abrir bifurcações, como deixar passar os devires minoritários onde vigoram políticas subjetivas tão molares? Como rasgar estes corpos “fechados”? Escolhemos jogar ali mesmo o jogo e perguntamos àqueles homens e mulheres como viviam suas relações. No jogo, fraturas se abrem: afinal, ali tínhamos mulheres falando de um outro lugar. Não era então assim tão natural a posição das mulheres. Podia ser diferente. Pode ser diferente. Pode diferir! Encontro uma tênue via. Sigo mais forte no encontro. Conversamos sobre grupo, grupalizar, coletivizar, rede … rede. Não há dúvida, as redes quentes são fundamentais. Dão suporte, alimentam, conectam. É contágio que aqui, diferente do caráter letal da SIDA, do CMI, explodem em alegria, vida. Vamos dançar. Ainda estou gripada, mas vou dançar. Vejo-me mais solta, brinco, sambo. Provoco a dor, provoco o corpo adoecido pela tristeza para deixar passar a mistura dos encontros. Suamos, rimos, brincamos. Negros, mulatos e alguns poucos brancos numa mesma dança. O ritmo da música, os passos da dança, os gestos que ensaiamos nos unem. Não estamos sós.

Obrigada amigo
Beijos
Regina

Rio de Janeiro, 29 de novembro, 21:33h
Querida Regina
Se você encontra uma via, mesmo que uma tênue via, é porque há chance. Tenho certeza que o trabalho está produzindo pequenas fraturas no corpo de uma África que parece oscilar entre a hemorragia desenfreada e a calcificação totalitária, endurecida. Deve ser, de fato, muito difícil intervir provocando o limite, operando clínico-politicamente, promovendo micro-fraturas analíticas onde fraturas expostas criam cenas assim tão duras. E as mulheres negras são mais negras porque mulheres. E as crianças negras são mais negras porque crianças. E os doentes negros são mais negros porque doentes. A cena deve ser a de um exponencial perverso no qual o negro sobre negro, o menor elevado à sua própria potência gera uma grandeza plena de perigo, cheia de desesperança, endurecida pelo exagero de si. Como foi possível deixar que a forma do si mesmo chegasse a tal paroxismo? Por que não foi possível deixar que o negro deviesse outra coisa? Por que as crianças negras não terão tempo de se tornarem adultos e velhos? Por que as mulheres negras não podem ocupar outros lugares? Por que a África está fadada à africanização? Mas como Gil percebeu, o deus MU dança. E nesta dança, o ritmo garante o transe e o trânsito para outras formas. Apostemos nisso, minha amiga.
Beijo
Edu

Maputo, 30 novembro, 15:20h
EduMu
Fazer a forma mexer-se, fazê-la vibrar de alguma maneira, ou melhor, tocar no vibrátil que há na forma. A dança, sem duvida. Eles por aqui dançam e cantam. As danças e os cantos são marcas nos corpos que quando se mexem “chamam” a vibratilidade. “As mulheres são feitas para a beleza, os homens para a força”, diz para mim Parruque, um negro de olhos miúdos e de sorriso largo. Esta frase é dita em meio a uma provocação que faço quando pergunto como eles lidam em seu trabalho como supervisores, conselheiros, mas também em sua vida pessoal, com as relações homem-mulher. E difícil para as mulheres que em geral são “loboladas” (lobolo = dinheiro e/ou bens que o homem dá à família da mulher com a qual vai se casar por ocasião das bodas) não se submeterem a este marido. É difícil para as mulheres em sua maior parte analfabetas e sem trabalho remunerado não depender deste marido. Mas, pude ouvir, que é muitas vezes também difícil para os homens que não concordam com este sistema. As famílias das mulheres pressionam para que se reproduzam os hábitos, os rituais, os modos de subjetivar. Vejo-me falando sobre saúde como valor de uso. Saúde não pode ser tratada como mercadoria! Falamos de valores. Quais valores? Desta vez é Nietzsche que vem: “qual o valor dos valores?”. No calor do encontro com eles avanço afirmando que nada é natural, mulheres e homens são efeitos de muitos entrecruzamentos. Há muita desigualdade na África entre mulheres e homens. Consideram “natural” a relação de desigualdade e menos-valia em relação às mulheres? Mas, não seria esta a mesma explicação usada para naturalizar a desigualdade entre negros e brancos? Não teriam eles lutado contra as teses feitas pelos brancos de que os homens negros eram mais ignorantes e feitos apenas para o trabalho físico? Por acaso consideravam-se inferiores aos brancos? A inteligência, a capacidade de pensar estava na cor da pele? Não, é claro, com isto ninguém concordava. Deveríamos então usar o mesmo raciocínio para pensar a diferença entre homens e mulheres? Não estariam os homens ao submeter as mulheres usando o mesmo tipo de opressão que a eles havia sido imposto e contra o qual haviam lutado pela independência de Moçambique?  Por que não lutamos pela liberdade de todos os homens, mulheres, crianças, jovens? O pulso acelera e a voz embarga. Todos olham calados. Vejo cabeças levemente afirmando minhas palavras. Respiro fundo, escuto o silêncio. Terei ido ao limite? A escolha tinha sido feita e não havia volta. Nos olhos de Isabel, um brilho; nos de Ana, um sorriso, nos de Francisco, Parruque, Onofre, Orlando, interrogações.  Algo ali se passou.
Beijos
Regina

Rio de Janeiro, 30 de novembro, 21:00h
Regina MUlata
Perguntar na África qual é o valor daqueles valores não é tarefa fácil já que ali os valores parecem estar como que saturados de natureza. Essa foi talvez a estratégia insidiosa e perversa que o capitalismo em sua versão imperialista desenvolveu na África. Ao chegarem as expedições européias e brancas, encontraram uma diferença pungente e provavelmente aberrante em sua distância negra. O que é mais distante do que a natureza – como a das feras e da carne negra? Os brancos intervieram provocando desvios no curso daquelas populações, propondo classificações, separações, formas de segregação que se mimetizavam nas práticas tradicionais ou tribais. No entanto, tudo permaneceu sob a chancela da natureza da carne negra – natureza estranha e distante que, se morre de fome, é por sua conta, se se contagia desta maneira avassaladora é por sua conta, se se endocolonializa de maneira tão segregadora é por sua conta. É como se dissessem: se é negra é por sua conta. Mas a mulher negra é mais negra do que o homem negro. A criança negra é mais negra do que o homem negro. Há mais negros do que os negros. E aqui estamos em plena geo-política de organização do socius, com suas tiranias, seus déspotas, suas minorias, seus centrifugismos e centripetismos. Mas como intervir agora diante de uma geo-política naturalizada? Não se pode fazer isto sem prudência, sem alianças, sem convocação para análises coletivas desde que estejamos nós todos submetidos à análise. E se há o sorriso de Ana e as interrogações de Onofre, há resistência. E se há resistência é porque ali algo se passa. O que se passa na África?
Um beijo e se cuida
Edu

Maputo, 1º. de dezembro, 17:39h
Edu amigo
A mulher negra sempre envolta em seus panos coloridos, com pelo menos um filho a tiracolo amarrado em outro pano. Seus cabelos são impressionantemente esculpidos e os turbantes enrolados dão o tom da invenção de passagens a um corpo de mulher aceso. Hoje é o dia internacional de combate ao HIV/SIDA, dia 1/12. Fui visitar um Gabinete de Aconselhamento e Testagem Voluntária no meio rural. No caminho, muita gente andando (as vans ou, como se diz por aqui, os “chapas” são caros para a população em geral e os ônibus, os “machimbombos” são péssimos, e também caros), muita criança fora da escola (em torno de 50%), muitas mulheres sentadas no chão em suas capulanas tentando vender alguma raiz, algum alimento para quem puder comprar (quem??). Há sempre uma banquinha, um “puxado” coberto com plástico, ou zinco ou palha, vendendo-se algo. O tal GATV estava fechado. Todos tinham ido para as comemorações, mas vi muitas mulheres com suas crianças aguardando consultas no Posto anexo ao GATV. O calor era grande, mas elas caminhavam com seus filhos em busca de alguém que as pudesse acolher. Fomos visitar um “hospital de dia” (HdD) onde também funciona um Gabinete. Tudo muito bem cuidado. As conselheiras disseram-me que em média atendem 50 pessoas e na Unidade anexa 20 mulheres grávidas ao dia. Grande parte das vezes o teste dá positivo. Contam-me como lidam com esta grave situação. Pergunto o que é mais difícil: quando a mulher é soropositivo e o homem é negativo. Novamente as mulheres. No corredor do hospital vejo muitas mulheres com suas crianças. Todas aguardando consultas, remédios. Mulheres. Passamos por um lugar onde se aglomera um grupo de umas 40 pessoas com camisetas brancas comemorativas do dia contra a SIDA. Estão sentados embaixo de uma árvore. Ouvem e conversam sobre o tema. O sol é escaldante. Eles estão sob a árvore e conversam. Linda cena. Visito outro HdD que foi hoje inaugurado. Encontro-me com Guita com quem havia trabalhado durante a semana anterior. Ela fica feliz por ter ido visitá-la. Encontro mais duas outras conselheiras que fizeram uma capacitação com Zeneide e elas riem para mim perguntando-me se eu ainda me lembrava dos passos da dança. Brincamos e fazemos a “coreografia”. No hospital converso com Malume Felipa (quer dizer Tia Felipa), senhora que iniciou o trabalho junto às profissionais do sexo no interior do país. Ela me conta histórias do início dos anos 90. Levava, na época, “tomates e batatas” quando ia conversar com estas mulheres sobre a proteção que deveriam ter. Mulheres. Saio e vejo um anúncio de um grupo de pessoas que vivem com HIV. O nome me chama a atenção “Kudumba”. Pergunto o que significa: confiar!  Como confiar, como produzir alianças? Amanhã começo o curso sobre grupos com 30 conselheiros. Nova experiência. Não os conheço, eles não me conhecem. Como construiremos nossas nytuananos (“alianças”, no dialeto de cá, o changana)?
Beijos
Re

Rio de Janeiro, 1º. de dezembro, 19:30h
Amiga MUlata
Mulheres! Estar com elas é como saber do segredo das cidades. Elas são como a face oculta das coisas, o lado escuro da lua, a luz negra do negro. E como será quando as mulheres passam a ser a matriz das crianças e da contaminação? Por que as mulheres? Por que, na fisiologia das mulheres, a reprodução e o sexo tiveram que coincidir de maneira tão comprometedora? Deve ser muito difícil ser mulher na África! Deve ser muito difícil ser uma mulher visitante na África: estar lá como estrangeira e, a um só tempo, tão distante e tão próxima daquela realidade negra. A mulher negra é mais negra que os homens negros. Toda mulher é negra. Como você se experimenta assim tão negra? Como será experimentar um devir minoritário como se deslizasse no fio do precipício? Cada mulher está sentada acocorada em sua barraquinha para vender alguma coisa: improviso mercantil, desespero para entrar no circuito do capital, esforço de sobrevivência? Debaixo da grande árvore, um grupo dança em comemoração ao dia internacional de combate à doença que os mata? Maternidades de mães e crianças infectadas? Cenas muito duras porque muito negras!!
Um beijo e se cuida
Edu

Maputo, 2 de dezembro, 16:54h
Há uma revolta. Meu estômago diz isso. Desde que cheguei, falta de fome. Hoje: enjôo, diarréia. “Foi a comida de ontem”, tento apaziguar com minha racionalidade. Mas, o corpo, sempre o corpo, fala. Fiquei em jejum e só à noite comi algo. Botei para fora. O que?
Hoje comecei o curso sobre grupos. Apesar do mal estar, senti-me mais à vontade. O tema sempre me anima. Gosto mesmo das misturas dos grupos. Eram 28 participantes, a maioria mulheres e elas não perderam esta chance. Chance de que? A chance de discutir o que é a diferença de ser negro, de ser mulher, de ser jovem, de ser soropositivo e o comum que pode atravessar as diferenças sem neutralizá-las, o desafio dos grupos, o desafio do viver. “Pegaram” rápido e entramos por esta via. A concepção de grupo é a de conjunto de pessoas e enfrentamos a desmontagem deste conceito-ação trazendo os vínculos, as diferenças. Dizem que os moçambicanos sofrem de DAP. Pergunto o que é. Eles respondem: Doença de Ambição e Poder. Mas o que é isto? Todos querem ser chefes, diz-me Júlio. Trabalhamos este efeito-capitalismo das redes frias. Não é só aqui, digo. Não é natural, lembro-lhes. E a guerra pela qual passaram? E a fome que existe em nossos países? Misturamos, misturamos, trazemos outros componentes para pensar. Afinal, para que grupos? Alguns lembram de outras experiências de solidariedade. Desidealizamos os grupos, mas também começamos a tirá-los do lugar a que ficaram destinados na experiência moçambicana de “meio para tirar proveitos pessoais”. Nossa! Quanto trabalho a fazer. Voltei cansada, mas “botei para fora”. Na tv moçambicana acompanho muitas manifestações-alertas sobre o dia 1/12. Vejo enormes contingentes de pessoas nas marchas, nas manifestações. Ouço, entretanto, o governador da província de Zambézia dizer: “temos que incentivar as práticas de abstinência contra esta terrível doença”! Bush não dá trégua: para ter o dinheiro americano, vem junto o controle do CMI.  Há muito que fazer.
Beijos
Re

Rio de Janeiro, 2 de dezembro, 20:01h
Regina já quase negra
Para fora, para fora! O estômago se rebela contra o que não é assimilável. E o que resiste à assimilação é o que envenena ou o que obriga a outras formas de composição, a outras experiências de si, a aventuras ou despregamentos de si? Deleuze e Guattari disseram de maneira enigmática que o devir se inicia sempre por um médium feminino. O devir mulher é a maneira de “entrar numa”. Entrar numa o quê? Numa roubada, numa viagem às cegas, numa aventura selvagem? E como será quando a médium é negra? Como será devir mulher negra? Exponencial do devir, paroxismo vertiginoso que obriga o corpo a uma contorção baconiana, dilarecerante. Então a mulher vomita e nada come, já se precipitando nesta aventura feminina e negra. As mulheres negras têm mais fome que os homens negros. A fome é feminina e negra. O devir não se anuncia sem um custo e não há como entrar nele confortavelmente, tranqüilamente. O devir é o sacrifício da história, a sua torção, o seu martírio intempestivo. Esta é a história de uma viagem à África onde o continente negro é como um catalizador de devires doídos porque femininos e negros. Regina já quase negra e tão pouco una. Mil reginas negras. Daí a força do coletivo que as mulheres negras comportam. Cada uma dessas mulheres é uma corte de rainhas negras. No grupo, tematizando o grupo, este exponencial do devir assumirá sua máxima potência: luz negra da tua aventura.
Um beijo e se cuida
Edu

Maputo, 3 de dezembro, 13:53h
Negro amigo
Para fora! Rebeldia do corpo contra o que vem como pura forma. Não. Não é fácil a experimentação desses devires que invadem e enlouquecem as formas. Para suportar tanta turbulência, precisamos de pontos-referência. A amizade, o comum do humano, a multidão presente nos gestos singulares dos filhos, dos amores, dos amigos. Quando vinha para cá pensei nas navegações. Afinal, eu fazia a rota ao contrário dos meus antepassados. Por uma questão do acaso(?!), vim para a África passando por Lisboa. Périplo inverso: portugueses que escravizavam africanos e os desembarcavam no Brasil. Eu agora, brasileira, passando por Portugal e chegando à África. Eu … eu, mistura de portugueses e africanos, sem dúvida. Eu, misturas. Essa viagem pôs-me em contato com os antepassados. Mas o que eu vejo? Escravos, ainda. Colonizados todos pelo CMI: portugueses e africanos e brasileiros. Mas o que eu sinto, onde me toca? Por onde passa o devir? Como acionar esta negra-mulher que (re)existe? Diziam: navegar é preciso, viver não é preciso. Digo: viver é preciso, devir é preciso mesmo em meio a tanta imprecisão. Luz negra, que ilumina no escuro. Hoje faltou luz em Maputo. Dizem que é comum (?!) Peguei-me dizendo: “mas há a nossa luz e esta ninguém nos pode tomar”.
Beijos
Re

Rio de janeiro, 3 de dezembro, 17:15h
Regina negra
Mil rainhas negras em uma viagem que reverte o périplo das caravelas. Mil viagens em uma só Regina. Mil rainhas em uma negra. Mil negras nesta rainha. Mil platôs numa composição negro sobre negro como em Malevitch, o pintor soviético do construtivismo russo. Por que o comunismo não chegou em sua versão criativa na África? Por que o construtivismo soviético foi desperdiçado e as vanguardas abolidas? Por que as vanguardas não chegavam na África? O negro sobre negro da tela é diferente do negro sobre negro da carne. A carne negra é a mais barata do mercado porque parece menos carne ou carne menor. Como uma carne pode ser menor? Como uma cor pode ser pior? É só mediante uma operação de artificialismo despótico que tal valoração assume a natureza de uma existência carnal: inferior porque sendo desta carne negra. E tal artificialismo ou construtivismo despótico e contra-vanguarda opera escamoteando sua artimanha. Tudo fica naturalizado. Como ser natural a inferioridade da mulher negra? Como a carne feminina pode ser mais barata? A carne da mulher negra é a mais barata do mercado. E desta carne barata fomos herdeiros, misturando-a ao branco reluzente dos portugueses despóticos. Somos filhos de um estupro ou de bodas contra a natureza? A rainha mulata é meio negra, meio branca. Sua cor é indecidível no espectro das posições geopolíticas: ela está no centro ou na periferia? Ela está no meio. Mas no meio, ela está onde? Qual é o valor deste limite? No limiar do negro e do branco algo se passa que um dia fez da caravela sua emblemática navegante. O que se passa agora? Que meios devemos utilizar para dar curso hibridizante à nossa aventura. O grupo!! Sim, o coletivo é como uma caravela!
Um beijo e se cuida
Edu

Maputo, 4 de dezembro, 13:41h
Mares, caravelas e o desejo do incomensurável. Desejo em sua expansão, fazendo realidades. Os navegadores sabiam e temiam o mar. A África é ladeada por dois oceanos: Atlântico e Índico. É muito mar para navegar, muito pedaço de chão para aportar. O exótico, a selva, tudo sempre alvo da curiosidade do branco navegador. Os seres estranhos e de outra cor que por ali existiam deviam ser parte desta natureza a ser dominada, pensaram. Estupro, sem dúvida. E assim o fizeram, por séculos. Depois vieram as lutas por emancipação, independência e aqui, em Moçambique, ares de libertação acompanhados de mais guerra, mais opressão. Onde está o coletivo? Como ele foi enquadrado em normas, regras? De que coletivo falavam? Como desenformar este coletivo num curso sobre “formação de grupos”. Eles, tão acostumados aos manuais, queriam novos e reluzentes instrumentos prontos para funcionar. E como, em tão pouco tempo, tocar este fazer para além de sua necessidade imediata? Grupo é conjunto de pessoas. Definição chavão, repetição de palavras cujo horizonte era simplesmente juntar pessoas. Mas, pergunto: “para que fazemos isto? Para que juntamos as pessoas?”. Estranha pergunta. Olhares interrogantes. Começamos nosso percurso. Soubemos, naquele instante que a aventura dos mares estava para ser vivida. Quem toparia? Topamos. “Contem aí como fazem, contem como vivem, contem como pensam. Deixa agora eu contar como faço, como vivo, como penso”. Como fazer encontrar, cruzar, hibridizar fazeres, vidas, pensamentos? Nos grupos, em grupos, com os grupos. Esforço-me também por passar e discutir conceitos. Digo-lhes que são ferramentas. Eles ouvem atentos, perguntam, trazem exemplos. O grupo funciona como? E afinal, para que grupos? “Pensam vocês agora que grupo é conjunto de pessoas? Ah… é mais, é diferente disso”. Armindo, que tem malária (coisa comum por aqui) diz-me que quer fazer um exercício. Quer dizer-me algo: a turma está cansada, quer movimentar-se. Vamos ao exercício. Rimos muito, nos divertimos. Aproveito para juntar aos conceitos e aos trabalhos que eles fazem nos Gabinetes. Hoje teve dança africana. Conseguimos acionar o coletivo.
Beijos africanos

Rio de Janeiro, 4 de dezembro, 22:13h
Negra Regina
Onde estava o coletivo? Armindo tem malária e propõe um exercício. Ele quer dançar e o sorriso escapa da sobriedade imposta pela doença, pela dor, pela miséria, pela memória das guerras e das caravelas negreiras. A experiência de ser negro tira a fome ou nos coloca frente a outra dimensão da vida? Não quero comer ou não posso comer: as duas alternativas se embaralham de maneira a confundir nossa experiência ainda tão pobre porque tão branca. Experimentar a negritude é poder posicionar-se diferentemente frente à comida, às caravelas, ao Atlântico. Que memória tem para eles as águas do Atlântico? No mar mil rotas podem ser traçadas – o mar é o plano desterritorializado dos devires náuticos – mas uma das rotas tem a forma da abolição. O que é ter esta relação com o mar? Quando dançam algo se passa por entre o negro e os negros, assim como por entre o branco e os negros: algo se passa. A passagem tem a forma do coletivo. Onde está o coletivo? No mar em que tudo passa. E esta viagem vai passar? Pergunta que agora não se coloca desde que falamos com uma Regina já negra. Luiz Melodia cantava a Pérola Negra. Melodia é negro e tudo por sua voz se torna negro, mesmo o mais alvo da pérola. Assim é a experiência radical da viagem que faz o revés das caravelas: no mar, mesmo o seu mais alvo, perolado, devém negra melodia.
Um beijo e se cuida
Edu

Maputo, 5 de dezembro, 14:54h
Amigo e parceiro de viagem
Termino o segundo curso. Mais um intenso dia de encontros com a vida que insiste em condições impensáveis. Começo o dia fazendo uma rodada do que fizemos durante a semana. Trabalhamos especialmente conflitos. Peço que cada um tome o nosso grupo (porque é claro, já nos sentimos numa grupalidade) e trabalhe modos de aproximação, contatos, modos de vinculação. Eles trazem suas experiências de grupo, trazem seus coletivos, seus impessoais para acionar o contato. Dançamos, cantamos, brincamos, ligamos, tecemos, trabalhamos os muitos grupos. Há um devir criança que se insinua, que corta as cenas, as dores de um povo no grande e forte corpo de Amélia, no cuidado de Sérgio, nos gestos contidos de Chiruca, no sorriso maroto de Patrício, no olhar desconfiado de Cinturão. Quando dançamos e trabalhamos em grupo é algo entre o branco e o negro, entre o homem e a mulher, mas também entre o negro e o negro, entre o homem e o homem que atiça o coletivo. No almoço Liliana vem sentar-se à mesa comigo. Conta-me que é soropositiva e que mora com sua família num lugar longe de Maputo, em Tete, com 30 crianças (??!!). É uma família alargada, como dizem por aqui, com 30 crianças que foram abandonadas ou cujos pais morreram de SIDA. Estas crianças, quase todas são também HIV positivo. Ela fala-me de como muitas vezes é difícil ter algo para comer. Seu olhar é plácido, mas sofrido. Ela tem 26 anos. Conversamos muito sobre a importância de seu trabalho e como a vida nela tem força. Ela quer que na próxima vez eu conheça sua terra. À tarde, mais casos para analisarmos, mais estratégias para inventar. Faço uma retrospectiva mostrando nossa produção grupal. Digo, ao final, lembrando o I Fórum Social Mundial, que trabalhamos em grupo porque acreditamos que um outro mundo é possível. Sorrisos, carinhos, palmas para todos! Amanhã parto para Lisboa. Ficarei lá um dia. Como será? Chego na segunda-feira. As caravelas atravessam novamente o mar. Como chegarei depois dessa viagem?
Beijos, carinho e kanimambo, amigo!
Re

Rio de Janeiro, 5 de dezembro, 19:46h
Querida amiga
A viagem é ininterrupta em qualquer das direções que atravessamos o Atlântico. Como interromper a radicalidade desta experiência que se faz entre o negro e o negro? Como não ser diferente depois disto? Temia a tua ida à África, agora tenho certeza que valeu à pena porque há o sorriso negro, a dança negra, as cores negras. O negro é policromático malgrado todos os preconceitos. O negro se expressa de muitas maneiras, em muitas cores. Mas há uma tristeza que insiste em se afirmar como negra de direito. Como se esta cor fosse de direito a cor da dor. Por que insistir que um continente por ser negro deve ser triste e doloroso? É muito injusto que a miséria e a dor tenham um continente e uma cor. É muito injusto que tenham criado um território no qual a africanização se torna a forma de uma desventura. A África foi marcada, desde os séculos da colonização, pela desventura da aventura branca. Mas por que a aventura daqueles teve que se fazer pela desventura dos outros? Por que esta inversão perversa teve uma cor? O olhar plácido e triste de Liliana nos comove. Sua condição de HIV soropositiva mãe de 30 crianças soropositivas tem a cor mais negra que só uma mulher mãe soropositiva poderia ter. Como Liliana pode ter dificuldade de comer e dar a comer a seus filhos? Como pudemos ser tão cruéis?! O homem é branco em sua crueldade! A crueldade parece também ter uma cor, e isso é terrível.
Um beijo e boa viagem a Lisboa
Edu
Algumas palavras sem finalizar

A correspondência foi uma via de comunicação que serviu como estratégia de construção de um plano comum de acolhimento da experiência da viagem à África e elaboração de um diário de bordo que registrava o trabalho de intervenção clínico-política que se fez naquele período. A intimidade da correspondência permitiu que texto e fora-texto se mantivessem lado a lado, criando um relatório que incluíque incluo, criadno um relatora-texto se mantivessemropositivoa sua casa. oi agendada para o dia 24

Bibliografia:
Deleuze, G. (1988) Foucault. São Paulo: Brasiliense.
Deleuze, G. (1997) Espinoza e as três éticas. Em Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, pp. 156-170.
Foucault, M. (1990) O pensamento do exterior. Rio de Janeiro: Princípio.
Guattari, F. (1981) O capitalismo mundial integrado e a revolução molecular. Em Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, pp. 211-226.
Kastrup, V., Tedesco, S., Passos, E. (2008) Políticas da cognição. Porto Alegre: Sulinas.
Kaufman, S. (1978) Aberrations: le Devenir-Femme d’Auguste Comte. Paris: Aubier Flammarion.
Lourau, R. (1988) Le journal de recherche: materiaux d’une théorie de l’implication. Paris: Méridiens Klincksieck.
Lourau, R. (1993) Análise institucional práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ.
Lourau, R. (1994) Actes manqués de la recherche. Pais: PUF
Lourau, R. (1997) L’a clé des champs. Une introduction a l’analyse institucionnelle. Paris: Anthropos.
Michaux, H. (1963) Plume (Lointain Intérieur). Paris : Gallimard

 

Benevides, R, PASSOS, E.
Diário de bordo de uma viagem-intervenção In: Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade ed.Porto Alegre : Sulina, 2009, p. 173-202.