Síndrome do Distúrbio Racial: seria um bom diagnóstico para o racista brasileiro? E para o antissemita?

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Telmo Kiguel

Médico Psiquiatra

Psicoterapeuta

A publicação de hoje consta de duas partes.

Inicialmente trechos do resumo do livro Americanah, reproduzido do blog da Editora Companhia das Letras.

E logo após nossos comentários sobre alguns conteúdos mencionados por Ifemelu, personagem do livro.

Ifemelu é uma blogueira aclamada nos Estados Unidos e protagonista de Americanah, novo romance de Chimamanda Ngozi Adichie. Nos anos 1990, em busca de alternativas às universidades nacionais, paralisadas por sucessivas greves, a jovem Ifemelu muda-se para os Estados Unidos, deixando para trás sua família e Obinze, seu primeiro namorado. Ao mesmo tempo em que se destaca no meio acadêmico, ela se depara pela primeira vez com a questão racial e com as agruras da vida de imigrante, mulher e negra. O sucesso que obteve quinze anos depois, contudo, não atenuou o apego à sua terra natal, tampouco anulou sua ligação com Obinze. Quando ela volta para a Nigéria, terá de encontrar seu lugar num país muito diferente do que deixou e na vida de seu companheiro de adolescência.

Americanah foi o romance vencedor do National Book Critics Circle Award e eleito um dos 10 melhores livros do ano pela New York Times Book Review.

Por Ifemelu

Raceteenth ou Observações diversas sobre negros americanos (antigamente conhecidos como crioulos) feitas por uma negra não americana.

6. Ofertas de emprego nos Estados Unidos — a principal maneira nacional de decidir “quem é racista”

Nos Estados Unidos, o racismo existe, mas os racistas desapareceram. Os racistas pertencem ao passado. Os racistas são os brancos malvados de lábios finos que aparecem nos filmes sobre a era dos direitos civis. Esta é a questão: a maneira como o racismo se manifesta mudou, mas a linguagem, não. Então, se você nunca linchou ninguém, não pode ser chamado de racista. Se não for um monstro sugador de sangue, não pode ser chamado de racista. Alguém tem de poder dizer que racistas não são monstros. São pessoas com família que o amam, pessoas normais que pagam impostos.

Alguém tem de ter a função de decidir quem é racista e quem não é. Ou talvez esteja na hora de esquecer a palavra “racista”. Encontrar uma nova. Como Síndrome do Distúrbio Racial. E podemos ter categorias diferentes para quem sofre dessa síndrome: leve, mediana e aguda.

7.
Querido Americano Não Negro, caso um Americano Negro estiver te falando sobre a experiência de ser negro, por favor, não se anime e dê exemplos de sua própria vida. Não diga: “É igualzinho a quando eu…”. Você já sofreu. Todos no mundo já sofreram. Mas você não sofreu especificamente por ser um Negro Americano. Não se apresse em encontrar explicações alternativas para o que aconteceu. Não diga: “Ah, na verdade não é uma questão de raça, mas de classe. Ah, não é uma questão de raça, mas de gênero. Ah, não é uma questão de raça, é o bicho-papão”. Entenda, os Negros Americanos na verdade não querem que seja uma questão de raça. Para eles, seria melhor se merdas racistas não acontecessem. Portanto, quando dizem que algo é uma questão de raça, talvez seja porque é mesmo, não? Não diga: “Eu não vejo cor”, porque, se você não vê cor, tem de ir ao médico, e isso significa que, quando um homem negro aparece na televisão e eles dizem que ele é suspeito de um crime, você só vê uma figura desfocada,meio roxa, meio cinza e meio cremosa. Não diga: “Estamos cansados de falar sobre raça” ou “A única raça é a raça humana”. Os Negros Americanos também estão cansados de falar sobre raça. Eles prefeririam não ter de fazer isso. Mas merdas continuam acontecendo. Não inicie sua reação com a frase “Um dos meus melhores amigos é negro”, porque isso não faz diferença, ninguém liga para isso, e você pode ter um melhor amigo negro e ainda fazer merda racista. Além do mais provavelmente não é verdade, não a parte de você ter um amigo negro, mas a de ele ser um de seus “melhores” amigos. Não diga que seu avô era mexicano e que por isso você não pode ser racista (por favor, clique aqui para ler sobre o fato de que Não há uma Liga Unida dos Oprimidos). Não mencione o sofrimento de seus bisavós irlandeses. É claro que eles aturaram muita merda de quem já estava estabelecido nos Estados Unidos. Assim como os italianos. Assim como as pessoas do Leste Europeu. Mas havia uma hierarquia. Há cem anos, as etnias brancas odiavam ser odiadas, mas era meio que tolerável, porque pelo menos os negros estavam abaixo deles. Não diga que seu avô era um servo na Rússia na época da escravidão, porque o que importa é que você é americano agora e ser americano significa que você leva tudo de bom e de ruim. Os bens dos Estados Unidos e suas dívidas, sendo que o tratamento dado aos negros é uma dívida imensa. Não diga que é a mesma coisa que o antissemitismo. Não é. No ódio aos judeus, também há a possibilidade da inveja — eles são tão espertos, esses judeus, eles controlam tudo, esses judeus —, e nós temos de admitir que certo respeito, ainda que de má vontade, acompanha essa inveja. No ódio aos Negros Americanos, não há inveja— eles são tão preguiçosos, esses negros, são tão burros, esses negros.

Não diga: “Ah, o racismo acabou, a escravidão aconteceu há tanto tempo”. Nós estamos falando de problemas dos anos 1960, não de 1860. Se você conhecer um negro idoso do Alabama, ele provavelmente se lembra da época em que tinha de sair da calçada porque um branco estava passando. Outro dia, comprei um vestido de um brechó no eBay que é da década de sessenta. Ele estava em perfeito estado e eu o uso bastante. Quando a dona original usava, os negros americanos não podiam votar por serem negros. (E talvez a dona original fosse uma daquelas mulheres que se vê nas famosas fotos em tom sépia que ficavam do lado de fora das escolas em hordas, gritando “Macaco!” para as crianças negras pequenas porque não queriam que elas fossem à escola com seus filhos brancos. Onde estão essas mulheres agora? Será que elas dormem bem? Será que pensam sobre quando gritaram “Macaco”?) Finalmente, não use aquele tom de Vamos Ser Justos e diga: “Mas os negros são racistas também”. Porque é claro que todos nós temos preconceitos (não suporto nem alguns dos meus parentes de sangue, uma gente ávida e egoísta), mas o racismo tem a ver com o poder de um grupo de pessoas e, nos Estados Unidos, são os brancos que têm esse poder. Como? Bem, os brancos não são tratados como merda nos bairros afro-americanos de classe alta, não veem os bancos lhes recusarem empréstimos ou hipotecas precisamente por serem brancos, os júris negros não dão penas mais longas para criminosos brancos do que para os negros que cometeram o mesmo crime, os policiais negros não param os brancos apenas por estarem dirigindo um carro, as empresas negras não escolhem não contratar alguém porque seu nome soa como de uma pessoa branca, os professores negros não dizem às crianças brancas que elas não são inteligentes o suficiente para serem médicas, os políticos negros não tentam fazer alguns truques para reduzir o poder de veto dos brancos através da manipulação dos distritos eleitorais e as agências publicitárias não dizem que não podem usar modelos brancas para anunciar produtos glamorosos porque elas não são consideradas “aspiracionais” pelo “mainstream”.

Então, depois dessa lista do que não fazer, o que se deve fazer? Não tenho certeza. Tente escutar, talvez. Ouça o que está sendo dito. E lembre-se de que não é uma acusação pessoal. Os Negros Americanos não estão dizendo que a culpa é sua. Só estão dizendo como é. Se você não entende, faça perguntas. Se tem vergonha de fazer perguntas, diga que tem vergonha de fazer perguntas e faça assim mesmo. É fácil perceber quando uma pergunta está sendo feita de coração. Depois, escute mais um pouco. Às vezes, as pessoas só querem ser ouvidas. Um brinde às possibilidades de amizade, de elos e de compreensão.

O texto de hoje poderá ser melhor entendido por quem ler os anteriores.

Motivação para essa publicação: “Ifemelu” postou em seu blog muitas idéias semelhantes às já postadas por nós.

1 – Propôs uma definição psiquiatrica para o racista: Síndrome do Distúrbio Racial.

Leia

https://saudepublicada.sul21.com.br/2014/05/11/conduta-discriminatoria-tentativa-de-conceituacao-motiva-correspondencia-entre-psiquiatras-2/

https://saudepublicada.sul21.com.br/2014/06/27/o-antissemita-seria-um-doente-e-o-racista/

2 – Enfatizou a invisibilidade do racista: “os racistas desapareceram”.

https://saudepublicada.sul21.com.br/2014/03/13/violencia-e-racismo-no-futebol/

https://saudepublicada.sul21.com.br/2014/03/20/protegendo-o-discriminador/

https://saudepublicada.sul21.com.br/2014/03/30/proteja-o-discriminador-e-modifique-o-discriminado-2/

3 – Lembrou que a conduta do antissemita pode vir acompanhada de inveja.

https://saudepublicada.sul21.com.br/2014/08/04/1-o-antissemita-o-racista-o-machista-e-a-inveja/

4 – “Mas os negros são racistas também”. Porque é claro que todos nós temos preconceitos”…

https://saudepublicada.sul21.com.br/2014/05/11/conduta-discriminatoria-tentativa-de-conceituacao-motiva-correspondencia-entre-psiquiatras-2/

5 – “Os Negros Americanos não estão dizendo que a culpa é sua”.

https://saudepublicada.sul21.com.br/2014/04/05/progressos-na-inibicao-da-conduta-discriminatoria-2/

Agora uma possível discordância: diz respeito à conduta discriminatória racista que, segundo a personagem do livro, não viria acompanhada de inveja. Ela se refere aos Estados Unidos. Na nossa idéia, e o que temos acompanhado a respeito do racismo no futebol, os discriminados, também poderiam ser atacados por inveja: da sua fama (visibilidade) e de situação financeira invejável.

Esperamos que este livro estimule, aos brasileiro interessados em diminuir o sofrimento dos grupos discriminados, a procurar outras alternativas para prevenção das Condutas Discriminatórias além da educação e criminalização.

Fonte:

https://saudepublicada.sul21.com.br/2014/09/18/sindrome-do-disturbio-racial-seria-um-bom-diagnostico-para-o-racista-brasileiro-e-para-o-antissemita/