Regra privada ganha espaço na saúde pública

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Luciano Máximo, de São Paulo
 

Cresce em Estados e municípios brasileiros a tendência de mudança da tradicional gestão da saúde concentrada nas mãos do governo e atrelada a regras da administração pública direta. Há duas alternativas sendo adotadas: modelos públicos mais flexíveis através de fundações ou entrega da gestão ao setor privado, a exemplo do que ocorre em São Paulo.
 

Sergipe, Bahia, Acre e Rio de Janeiro, por exemplo, estão passando a gerência de hospitais públicos e diferentes atividades de responsabilidade governamental na área sanitária a fundações estatais, entidades públicas com maior flexibilidade e autonomia porque são regidas pelo direito privado. O Valor apurou também que as prefeituras de Curitiba e Nova Iguaçu (RJ) estudam o assunto. Já Pernambuco pretende "importar" as parcerias privadas com organizações sociais de saúde (OSS) para dirigir hospitais e unidades médicas do governo, modelo adotado há 11 anos por São Paulo, que, por sua vez, planeja estender o esquema para serviços de transplantes oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) .
 

Os Estados argumentam que, diante de problemas constantes de financiamento, é necessário melhorar a qualidade do gasto e a eficiência dos serviços – e isso não é possível ser alcançado dentro das atuais formas jurídico-institucionais da administração pública direta, como sugerem os Ministérios da Saúde e do Planejamento em material informativo. O modelo de fundações estatais, assim como nas OSS privadas, prevê, principalmente, avanço na política de compras dos hospitais, com licitações mais ágeis e em escala, e maior dinamismo na contratação e dispensa de funcionários. As mudanças, contudo, enfrentam forte oposição do movimento sindical e de entidades jurídicas porque permitem a admissão de trabalhadores fora do regime do serviço público e dão margem para o entendimento de que o SUS não pode ser "terceirizado" ou até "privatizado".
 

Há dois anos, o governo federal tenta, sem sucesso, aprovar o projeto de lei complementar 92, que trata da regulamentação de fundações em vários setores. Previsão do Ministério da Saúde indica que a aprovação da lei ajudaria a modernizar a gestão de até 2 mil dos 5 mil hospitais do SUS.
 

O relator do PLC, deputado Pepe Vargas (PT-RS), que é médico,admite que a medida deixou de ser prioridade para a bancada governista e só deverá voltar à pauta em 2011, depois da eleição presidencial. "O movimento sindical tem receios compreensíveis, porque a história de inovar no setor público é relacionada à perda de direitos. Aí é a velha história: gato molhado tem medo de água fria. "As iniciativas nos Estados e municípios, porém, podem criar experiências concretas para retomar o processo em todo o país, acredita o parlamentar. "Parte dos receios vão se esfumaçar, o pessoal vai ver que, ao contrário do que dizem, fundação é um órgão público e funcionará como instrumento para fortalecer e modernizar o SUS", aposta.
 

As administrações petistas de Acre, Bahia e Sergipe, seguidas pelo Rio de Janeiro (PMDB), lideram esse processo em âmbito estadual e enfrentam as vozes contrárias. Em estágio mais avançado,o governo sergipano aprovou legislações para a criação de três fundações estatais. A Funesa, que passa a gerenciar os serviços de atenção básica de saúde e a escola técnica do SUS, entrou em operação neste mês e concluiu na semana passada a contratação de741 empregados via CLT. Comprevisão para janeiro, a segunda fundação vai incorporar a gestão dos 12 hospitais estaduais e do serviço de emergência (Samu 192) e a terceira, as atividades de hemoterapia e laboratórios.
 

O secretário estadual de Saúde, Rogério Carvalho, frisa que as fundações vão permitir que o sistema sanitário em Sergipe volte para o controle do Estado, já que a maioria dos hospitais públicos estavam privatizados ou nas mãos de entidades filantrópicas, e a massa da mão-de-obra era terceirizada. "Ninguém fala hoje em fazer reformas por dentro da administração direta. O Estado continua sendo o grande agente, agora com vantagens privadas, como autonomia e maior dinamismo, preservando transparência e controle público. Buscamos essa combinação", explica.
 

Segundo Carvalho, as empresas serão incluídas nos investimentos de até R$ 300 milhões que o Estado pretende destinar neste ano à saúde. Os recursos contemplam construção de novos hospitais e clínicas, compra de equipamentos e contratações. Serão abertas 3 mil vagas para as fundações, via concursos públicos e nos termos da CLT. "Dispensamos o entulho da administração legal: as portarias, os carimbos, todo mundo com um pedacinho de poder, todo mundo querendo negociar uma fatia. Isso tira o foco do serviço
público. "
 

O presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Francisco Batista Júnior, desconfia das medidas e defende as diretrizes nacionais de planos de cargos, carreiras e salários do SUS, que, 21 anos depois da criação do sistema, estão longe de ser implementadas. "A carreira única na saúde para todo o país deve ser pactuada e financiada pelos três níveis de governo. Municípios, Estados e governo federal reclamam das amarras para contratar servidores, por isso mesmo eles devem se reunir e colocar essas necessidades sobre a mesa, definir atribuições e fazer concursos, priorizar a estabilidade. É possível fazer isso imediatamente com contratações emergenciais de servidores por tempo determinado [de dois anos]", argumenta. Além disso, o sindicalista defende a profissionalização dos quadros do SUS. "Fundações e OSS favorecem grupos e partidarizam a saúde pública, com indicações de ‘amigos do rei’ para cargos de comando, e reforçam a gestão patrimonialista do SUS", critica Júnior.
 

Uma das principais consultoras do governo federal e de Estados para projetos referentes a fundações estatais de direito privado, a especialista em direito sanitário da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Lenir Santos pondera que a CLT, mesmo no serviço público, não significa fragilização de direitos. "A massa de trabalhadores do país é CLT, então todo mundo é precarizado?", pergunta. Ela segue argumentando que a decisão desses Estados não pode ser encarada como uma panaceia para a saúde pública. "É apenas mais uma alternativa para contribuir com o SUS, que é um sistema único num país federativo, razão que por si só obriga que a administração pública tradicional se modifique", diz Lenir, citando um dos resultados da consultoria que prestou em Sergipe: "Um hospital da secretaria gastava em média 180 dias para finalizar uma licitação. O mesmo processo conduzido por uma fundação durou 20 dias. As modalidades licitatórias não mudam, são apenas mais flexíveis por causa da autonomia financeira", completa.
 

O governo da Bahia aprovou legislação para a criação de uma fundação para gerenciar o Programa Saúde da Família (PSF). Como trata-se de atividade de responsabilidade municipal, a Secretaria Estadual da Saúde costurou acordo com 110 das 417
prefeituras baianas, e a nova entidade funcionará como um tipo de centro de controle do PSF nas cidades que assinarem o contrato de gestão. Espera-se a adesão de 180 prefeituras até o fim deste ano – o orçamento compartilhado do projeto será de cerca de R$ 200 milhões.
 

O diretor executivo da Fundação Estatal Saúde da Família da Bahia (Fesp), Heider Pinto, destaca ganhos administrativos. "Além da dificuldade da legislação para comprar, muitos municípios do interior compram muito pouco e pagam mais caro. Vamos criar um sistema e passar a adquirir materiais em grande escala. "Segundo ele, o governo baiano está adiantado no processo de lançamento de outras fundações para a administração de hospitais e de uma fábrica estatal de remédios, que foi desativada em 1999. Até maio, as fundações admitirão 4 mil profissionais. Mesmo com as novas vagas na saúde, servidores estatutários mantêm os cargos e podem solicitar transferências para o novo modelo. No Acre, as fundações estão em fase de regulamentação e também deverão valer para a gestão do Instituto de Previdência Complementar do Estado.
 

Em 2005, a crise dos hospitais municipais do Rio de Janeiro, que precisaram de intervenção federal, foi o ponto de partida para a decisão de incluir organizações públicas mais flexíveis à frente do gerenciamento da saúde. Logo depois da apresentação do PLC 92 ao Congresso, em 2007, o governo fluminense sancionou projeto de lei estadual que criava fundações para gerenciar os hospitais gerais e de urgência, os institutos de saúde e a Central Estadual de Transplantes.
 

Na época, a expectativa era operacionalizar as fundações ainda no primeiro semestre de 2008, mas uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) do PSOL atrapalhou os planos do governo, que preferiu interromper as ações na área. De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde do Rio, os estatutos e os conselheiros das fundações já foram escolhidos, o governo espera a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a ação do PSOL. "Fundações representam ataque à saúde pública, são privatizantes e retiram direitos de trabalhadores", afirma Janira
Rocha, dirigente do partido.

 

(Fonte: Valor Econômico, 01/12/2009)