Encerrando o debate com Flávio Aguiar incluindo editorial do Charlie Hebdo sobre laicidade.

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Telmo Kiguel

Médico Psiquiatra

Psicoterapeuta

 

Flávio e eu estamos encerrando o debate com a publicação dos nossos comentários feitos no último post. (*)

E com o editorial (1178) do Charlie Hebdo de 14/01/2015 escrito por Gérard Biard onde ele afirma:
…”todos os que, nesta semana, proclamaram “Eu sou Charlie” devem saber que isso quer também dizer “Eu sou a laicidade”.(**)
Felizmente, a significância que atribuimos, ao longo do debate, à laicidade, nos atentados de Paris, confirmou-se pelo editorial.
(*)   Continuando o debate com Flavio Aguiar sobre Charlie Hebdo, tabu e laicidade.

Comentário de 20 de janeiro de 2015
Caro Telmo
O caso que mais me intriga nisto tudo é o de Amédy Coulibali. Ele gravou um macro-selfie, em vt, confessando sua filiação ao Estado Islâmico. Se ele foi financiado pela Qaïda, foi uma heresia. Um modo de afirmar a sua “individualidade”. Ele sabia que ia morrer, ao contrário da maioria de nós, que sabe que vai morrer… um dia. Não, ele tinha data marcada. Ainda não estava na agenda, mas era para o que ele estava se preparando. Digamos, um suicídio controlado, levando muita gente com ele, como de fato ele fez.

Dentre as teorias que citam a introjeção da inferioridade e a educação para ser um teocrata, fico com a hipótese – quase certeza – de que vivemos a “era dos selfies”, dos “individualismos exacerbados”. Assim como, segundo o Hobsbawm, já vivemos a “Era das Revoluções”, a “Era dos Extremos”, etc. Ele quis sair do anonimato. Conseguiu. Teve seus vários minutos de fama.

Hoje em dia o indivíduo, ou seu simulacro, se olha na tela, telinha ou telão, e vê o mundo à sua frente: sua imagem, para a efêmera eternidade. Isto acontece com o Amédy e também com o cidadão (?) que se olha embaçado no reflexo da tela e se põe a insultar (ao invés de criticar) o governante, o desafeto, a namorada, etc. É o suprassumo do isolamento.

Agora, alguém pôs as armas nas mãos do Amédy. Ele não as conseguiu sozinho. Alguém lhe deu dinheiro para tanto, outro alguém fez a entrega. Outro mais adiante entregou os documentos, e mais ainda um outro fêz vista grossa, ou seja, alguém e alguéns lucraram muito com isto. Dentro e fora do Estado laico. E vão ficar impunes.

Antigamente se dizia, para resolver um crime: “cherchez la famme”. Hoje, se pode dizer: “cherchez la grana”.

Já o caso dos irmãos Couachi é um pouco diferente. Órfãos, fizeram um pacto de morte. Só faltou (talvez, vá se saber) aquele ritual de cortar os pulsos e misturar os sangues, coisa hoje evitada pelo temor de doenças várias. Conseguiram: morreram como a dupla de pistoleiros ao final de “Butch Cassidy”, com o Redford e o Paul Newmann. Correndo e atirando sobre o exército contrário. Pelo menos esta é a versão oficial. Vá se saber quem imitou o filme, se a dupla ou a versão oficial. Ou ambos. Porque depois daquele atirar no policial inerme eles estavam condenados à morte. Extra-oficialmente. (E não estou justificando a covardia deles, quero deixar bem sublinhado).

O que quero sublinhar é que o Estado laico às vêzes não é tão laico assim. É laico na letra da lei, e assim deve ser de fato, mas como o Estado é a ponta (grossa, muito grossa) do iceberg que de fato governa o mundo, há gente na parte visível do iceberg e outros na parte invisível que às vezes se acha e se dá os poderes de Deus. Ou do Diabo, não sei muito bem. Mas tanto faz.

Comentário de 22 de janeiro de 2015

Este comentário do Flávio confirma como esta questão é complexa, multicausal e multifacetada.

Pode-se abordar sob os mais diversos ângulos e só o futuro poderá nos dizer como eles se relacionam.

E cada um ainda pode escolher comentar o que lhe parece mais importante e sobre o que mais entende da questão.

Como médico psiquiatra com interesse pelas discriminações e laicidade, acabo escrevendo com esse foco.

Consigo organizar os episódios de Paris como uma crise.

Com antecedentes, personagens em várias posições, instituições participantes, etc. e consequências.

E usando o conhecimento de algumas pesquisas que envolvem laicidade, discriminação, violência, indicadores de saúde, etc..

Os assassinatos como os de Paris ocorrem, rotineiramente, em países muçulmanos entre as diversas correntes religiosas.

E nos enfrentamentos de grupos e/ou países muçulmanos com seus vizinhos.

Sabe-se, por pesquisas, que países mais religiosos são mais discriminadores.

E a discriminação religiosa é uma das mais importantes.

Esta é a discriminação em relação a outras religiões, aos que não tem crença e aos estados laicos.

Os chargistas seriam ateus e defendiam o estado laico com charges antiteístas.

Satirizando as tres religiões monoteístas.

Algum dia ainda saberemos melhor o porque do tipo de reação de cada grupo religioso.

E aproveitando o “cherchez la grana” do Flávio.

O que esperar de um grupo que numa teocracia tem, ao mesmo tempo, a grana, o controle do poder politico e da religião?

Que tolerem a contestação de seus dogmas religiosos, que saibam conviver com a laicidade, com outras crenças ou com os sem crença religiosa?

Exemplo: no Egito há 866 ateus ( maior número no oriente médio) e um deles foi condenado à prisão por 3 anos.

Por ser ateu.

 

(**) Editorial por Gérard Biard
Tradução de Alexandre Andrade (para Portugal).

Será que ainda haverá muitos «sim, mas»?
Na semana que agora termina, o Charlie, jornal ateu, realizou mais milagres do que todos os santos e profetas reunidos. Aquele que nos faz sentir mais orgulhosos é o facto de o leitor ter entre as mãos o jornal que sempre fizemos, na companhia daqueles que sempre o fizeram. O que mais nos fez rir foi os sinos da Notre-Dame terem tocado em nossa homenagem… Na semana que agora termina, o Charlie ergueu por esse mundo fora muito mais do que montanhas. Na semana que agora termina, como o desenhou magnificamente Willem, o Charlie fez muitos amigos novos. Anónimos e celebridades planetárias, humildes e abastados, incréus e dignitários religiosos, sinceros e jesuítas, aqueles que ficarão connosco para toda a vida e aqueles que estão só de passagem. Hoje, nós aceitamos todos, não temos tempo nem coragem para escolher. Mas não somos ingénuos. Agradecemos do fundo do coração àqueles milhões, simples cidadãos ou representantes de instituições, que estão verdadeiramente ao nosso lado, que, sincera e profundamente, «são Charlie» e que se reconhecerão. E estamo-nos nas tintas para os outros, que de qualquer modo não se importam…
Há uma questão que, ainda assim, nos atormenta: será que vai finalmente desaparecer do vocabulário político e intelectual o detestável qualificativo «laicistóide integrista»? Será que se vai deixar enfim de inventar sábias circunvoluções semânticas para classificar de forma equivalente os assassinos e as suas vítimas?
Nestes últimos anos, temo-nos sentido um pouco sós na tentativa de rejeitar à força do lápis as sabujices explícitas e as bizantinices pseudo-intelectuais que arremessavam à nossa cara e à dos nossos amigos que defendiam convictamente a laicidade: islamófobos, cristianófobos, provocadores, irresponsáveis, lançadores de achas para a fogueira, racistas, estavam-a-pedi-las… Sim, nós condenamos o terrorismo, mas. Sim, ameaçar de morte os desenhadores não está certo, mas. Sim, incendiar um jornal está errado, mas. Nós ouvimos de tudo, e os nossos amigos também. muitas vezes rir do assunto, porque é o que sabemos fazer melhor. Mas gostaríamos muito, agora, de rir de outra coisa. Porque isto está a recomeçar. Numa altura em que o sangue de Cabu, Charb, Honoré, Tignous, Wolinski, Elsa Cayat, Bernard Maris, Mustapha Ourrad, Michel Renaud, Franck Brinsolaro, Frédéric Boisseau, Ahmed Merabet, Clarissa Jean-Philippe, Philippe Braham, Yohan Cohen, Yoav Hattab e François-Michel Saada não tinha ainda secado e Thierry Meyssan explicava aos seus fãs no Facebook que se tratava, evidentemente, de uma conspiração judaico-americano-ocidental. Já se viam, aqui e ali, nalgumas bocas mais delicadas, caretas de cepticismo a propósito da manifestação do domingo passado, assim como, em surdina, os eternos argumentos que visam justificar, aberta ou implicitamente, o terrorismo e o fascismo religioso, e ainda a indignação por, entre outras coisas, termos homenageado agentes da polícia = SS. Não, neste massacre não há mortes mais injustas do que outras. Franck, morto nas instalações do Charlie , e todos os seus colegas abatidos durante esta semana de barbárie, morreram em defesa de idéias que talvez nem sequer fossem as suas.
Vamos mesmo assim tentar ser optimistas, embora os tempos não estejam para isso. Vamos esperar que, a partir deste 7 de Janeiro de 2015, a defesa convicta da laicidade passe a ser um dado adquirido para todos e que se deixe de, por postura, por cálculo eleitoralista ou por cobardia, legitimar ou mesmo tolerar o comunitarismo e o relativismo cultural, que abrem a porta a uma e uma só coisa: o totalitarismo religioso. Sim, o conflito israelo-palestiniano é uma realidade, sim, a geopolítica internacional é uma sucessão de manobras e golpes baixos, sim, a situação social das, como se costuma dizer, «populações de origem muçulmana» em França é profundamente injusta, sim, o racismo e as discriminações devem ser combatidas sem descanso. Existem felizmente diversas ferramentas para tentar resolver estes problemas graves, mas elas são todas ineficazes se faltar uma delas: a laicidade. Não a laicidade positiva, não a laicidade inclusiva, não a laicidade-sei- lá-o-quê, a laicidade ponto final. Só ela permite, uma vez que preconiza o universalismo dos direitos, o exercício da igualdade, da liberdade, da fraternidade, da sonoridade. Só ela permite a plena liberdade de consciência, liberdade essa que é negada, de forma mais ou menos aberta em função do seu posicionamento de “marketing”, por todas as religiões a partir do momento em que abandonam o terreno da intimidade estrita para descer ao terreno da política. Só ela permite crentes e aos demais, ironicamente, viver em paz. Todos aqueles que afirmam defender os muçulmanos ao aceitar o discurso totalitário religioso estão na realidade a defender os seus carrascos. As primeiras vítimas do fascismo islâmico são os muçulmanos.
Os milhões de anónimos, todas as instituições, todos os chefes de Estado e de governo, todas as personalidades políticas, intelectuais e mediáticas, todos os dignitários religiosos que, nesta semana, proclamaram «Eu sou Charlie» devem saber que isso quer também dizer «Eu sou a laicidade». Estamos convencidos de que, para a maioria daqueles que nos apoiam, isso é óbvio. Deixamos os outros desenrascarem-se.
Uma última coisa, mas importante. Queríamos enviar uma mensagem ao papa Francisco que, também ele, «é Charlie» esta semana: só aceitamos que os sinos da Notre-Dame toquem em nossa homenagem se forem as Femen a fazê-los soar.

Fonte da tradução do editorial: Associação República e Laicidade:    https://www.laicidade.org/

Fonte do texto: Saúde Publica(da) ou não
Publicado em 26/01/2015