Projetos terapêuticos singulares e projetos singulares de gestão: O VER-SUS/São Paulo em Mauá (re)inventando o trabalho em saúde

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Muito se falou no VERSUS/Mauá durante nossa vivência em toda a rede, nas reuniões de gestão, na fala dos gestores e trabalhadores do SUS/Mauá sobre projetos terapêuticos singulares (PTS, para os mais íntimos), estes, dispositivos de produção do cuidado pautado em construções coletivas de prática multiprofissional. Cito, ainda, algumas importantes ferramentas de produção do cuidado, como: educação permanente em saúde, matriciamento – NASF, kamban, equipes de saúde mental, casos traçadores e a política nacional de humanização.

Discussão importantíssima acerca do cuidado em saúde no SUS é a clínica. A clínica tradicional concebida pelo modelo hegemônico de base biologicista e reafirmado pelo modelo de formação das profissões em saúde não é mais suficiente para cuidar das pessoas, visto que as necessidades sociais em saúde das pessoas que buscam os  serviços de saúde são diferentes. Não é como fazer um curativo em uma ferida ou solicitar um exame de colonoscopia (essas necessidades também existem), mas o que eu quero dizer é que o desafio da clínica é de compor trilhas de cuidado para os sujeitos em diferentes ciclos da vida. Clínica ampliada, clínica peripatética, clínica do desvio, clínica compartilhada, clínica ampliada para o território, clínica do olhar, clínica dos afetos são algumas ferramentas de abordagem centrada no usuário. O projeto terapêutico é um dispositivo de mudança das práticas de saúde.

Teorizando um pouco…

Apresento dois vídeos-guia para este texto. Não é necessário vê-los para acompanhar a discussão que será desenvolvida. Os vídeos não seguem uma ordem cronológica de formulação de pensamento, os interesses são formados conforme são despertados: assistindo o vídeo antes, durante ou após. Não tem fórmula!

https://www.youtube.com/watch?v=j8FWMnVZn2Y
Vídeo 1. A produção imaginária da demanda e o processo do trabalho em saúde.

https://www.youtube.com/watch?v=60KL8J7rQc4
Vídeo 2. Em busca da clínica dos afetos

Ambos os vídeos, tão diferentes, produzem conexões importantes sobre o cotidiano do trabalho dos serviços de saúde: é necessário produzir uma nova imagem da demanda para desconstruir a ideia do procedimento e resignificar a ideia do cuidado, ter um cuidado cuidador, atuar sobre as subjetividades dos sujeitos inventando mundos para si e para os outros, compor e compreender a produção da vida e da saúde.

O desafio, no mundo do trabalho em saúde no SUS está posto e é disputar um modelo de produção de cuidado. Ainda é presente o modelo produtor de procedimento. E os projetos terapêuticos singulares podem – e devem – entrar em cena para construir novas práticas em saúde para potencializar o agir cotidiano dos trabalhadores e usuários.

Jogo na roda para discussão o programa Mais Especialidades do Ministério da Saúde, este, com objetivo de garantir o acesso rápido de pacientes a consultas com especialistas. Esse “garantir acesso rápido de pacientes a consultas com especialistas” não seria mais uma oportunidade de trazer a ideia do corpo anátomo-clínico? Porque não investir no matriciamento? Fortalecer a atenção básica? Equipes multiprofissionais? Trabalho em rede? Momento importante para discutir o papel do “Mais Especialidades” nas redes de atenção a saúde e qual modelo de atenção a saúde os municípios e estados do Brasil estão disputando: produtor de cuidado ou produtor de procedimento?

O corpo em sua dimensão estrutural e biológica é necessário para a recuperação do estado de saúde de uma pessoa, isso é inegável! O segundo vídeo, traz um debate do corpo na filosofia: o corpo como objeto do conhecimento. Em busca da clínica dos afetos traz uma reflexão a respeito da saúde e do corpo com intuito de contrapor a visão naturalizada de corpo e, ao mesmo tempo, mostrar de que modo os saberes e as práticas em saúde transformam-se em tecnologias de intervenção sobre o corpo.

Projetos singulares de gestão: até a gestão tem que ser singular?

Imagine, você, compondo uma equipe de gestão diretiva de um município qualquer. Imaginou? Mas, antes de começar a falar sobre projetos singulares de gestão e de qual forma o VERSUS entra neste cenário, explico, minimamente, aos meus olhos, como deveria ser uma gestão municipal.

Além de imaginar, precisamos pensar quais relações estão sendo produzida entre a secretaria de saúde com a população, qual é a história daquele munícipio, o papel do conselho municipal de saúde na cidade, qual é a aposta da gestão? Muitas vezes, vamos encontrar gestões municipais duras, de cima pra baixo, verticalizadas e hierarquizadas. Longe dos territórios e dos serviços de saúde.

O papel de uma gestão municipal é olhar para as necessidades sociais em saúde que surgem, construir relações mais próximas com as pessoas e seus territórios: deixar de lado a ideia da hierarquia e trazer a ideia de construções coletivas com os gestores, trabalhadores, usuários, controle social e movimentos sociais. As expressões e experiências do VERSUS em Mauá, Santos, Guarulhos e Brasilândia/FÓ é de apostar em projetos singulares de gestão.

Os territórios são de um jeito, os serviços de saúde são de outro, as pessoas carregam em si formas de ser/estar no mundo e nessas idas e vindas de cada um ser de um jeito, tanto o cuidado quanto a gestão no SUS precisam ser singulares para compreender a produção social da saúde e da vida.

(Re)inventando o trabalho em saúde: os estudantes do VERSUS como inventores de um  olhar sensível.

O trabalho em saúde é um processo coletivo – na assistência e na gestão – construído pelo os trabalhadores de saúde, a fim, de proporcionar um atendimento mais resolutivo. Compartilhando, refletindo e apontando problemas, soluções, angústias e alternativas para o trabalho em saúde.

Um dos espaços de grande potência do SUS (grifo meu) em Mauá é a rede de saúde mental. A republica terapêutica infanto juvenil de Mauá é um dispositivo importante de construção de vínculos: (re)criar laços familiares, aproximar, de volta, as pessoas em situação de rua com a sociedade e resgatar de cada adolescente sua potência de vida. O que fica, da nossa passagem, pela república é que existem excelentes profissionais (re)pensando diariamente a clínica em saúde mental, e esta, não é uma clínica de órgãos/biológica/anátomo-clínica, é uma clínica de afetos, ampliada e dialógica com os contextos de vida de cada adolescente. Admiramos a postura de cada trabalhador, que, com diferentes formações e vindo de distintos lugares, conseguem produzir um cuidado transdisciplinar sempre próximo às possibilidades da invenção e da criação, afastado dos saberes próprios e individuais que cada um possui. Um cuidado que, guiado pela política de redução de danos, exclui as possibilidades de correção ou culpabilização do jovem que reside na República, e juntos – trabalhadores e adolescente – buscam a construção de um projeto terapêutico singular. De maneira mais concreta, a ida a um sebo ou a visita ao bairro da Liberdade, em São Paulo, são parte de um projeto terapêutico processual, que se constrói aos poucos e de maneira espontânea, sempre respeitando os singulares cuidados que cada um demonstra precisar.  Ao mesmo tempo, a natureza do trabalho vivo da república terapêutica é desafiante, não tem rotina, cada dia é um dia. A república, junto com os profissionais e adolescentes permitem (re)inventar o trabalho em saúde.

Ninguém escolhe a hora para sentir algum problema de saúde ou adoecer. Então nas UPAs 24h, as pessoas podem ter um pronto-atendimento para resolver problemas pontuais que apareceram naquele momento. Muitas vezes, as UPA’s se tornam mais efetivas para as pessoas que buscam cuidado rápido, e nessa busca do usuário por um cuidado “em ato” torna-se um problema. Problema porque as pessoas não buscam as UBS’s. Como fazer uma clínica integrada na rede de atenção à urgência e emergência? Fortalecer a atenção básica como coordenadora e ordenadora do cuidado pode funcionar? Apostar no apoio da implementação da educação permanente de forma sistêmica nas UPA’s pode funcionar? Estas questões que coloco em roda, não é um problema exclusivo do SUS em Mauá, é um desafio do SUS em todo o Brasil.

Minha melhor maneira de dar uma devolutiva seja agradecendo. Agradecendo à Mauá e a cada funcionário por nos receber tão bem em seus equipamentos; agradecer pelos ensinamentos, pelo amadurecimento e pela vontade inflamada de se lutar por uma saúde melhor, visualizada em cada serviço visitado; agradecer à gestão por mostrar a construção diária que é o SUS, e que mesmo nas mais difíceis situações, se dedicam à produção de um cuidado humanizado, político, educativo e afetivo; e agradecer todos os participantes desta rede, que de diferentes modos mostraram-me que acreditam no SUS e são compromissadas com as pessoas atendidas por ele. Parte do relato de Caio Possati Campos, estudante de Psicologia/UNIFESP Baixada Santista e vivente do VERSUS/Mauá.

Tudo que foi falado, aqui, é produto de um olhar sensível construído durante os dias de vivência. O olhar sensível está na integralidade, no cuidado e na educação permanente para promover um SUS sensível e generoso para todos/as.

SUS é movimento, inventor de vidas e políticas.

Leituras que norteiam o VERSUS/São Paulo.

1. CAMPOS, G.W.S. e AMARAL, M.A.do. Ciência e Saúde Coletiva vol.12 no.4 Rio de Janeiro July/Aug. 2007.
1. CUNHA, G.T. A Construção da Clínica Ampliada na Atenção Básica. Hucitec, São Paulo, 2005.
2. LANCETTI. A. Clínica Peripatética. Hucitec, São Paulo, 2006.
3. BENEVIDES, R. e PASSO, E. Psicologia Clínica. 13(1):89-99, 2001.
4. FRANCO, T.B e GALAVOTE, H. S. Em Busca da Clínica dos Afetos, in, Franco, T.B. & Ramos, V.C. “Semiótica, Afecção e Cuidado em Saúde”. Hucitec, São Paulo, 2010.
5. FRANCO, T.B e MERHY, E.E. Produção Imaginária da Demanda in Pinheiro, R. & Mattos, R.A. (orgs.) “Construção Social da Demanda”; IMS/UERJ-CEPESC-ABRASCO, Rio de Janeiro, 2005.
6. MERHY, E. E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde.